Coluna O Direito na Sociedade de Consumo/Coordenador Marcos Catalan
O texto desenvolvido a seguir consiste basicamente em uma fração de um estudo ainda em desenvolvimento, o qual, na medida das possibilidades, será apresentado também nesta coluna. Tal investigação procurará elucidar as transformações jurídicas ocorridas contemporaneamente no mundo do trabalho e nas ordens jurídicas estatais, principalmente no que se refere ao enfraquecimento da proteção ao trabalho e trabalhadores frente o desenvolvimento do capital financeiro transnacional. Destarte, cabe esclarecer que esse tema, especificamente, também já foi desenvolvido anteriormente na presente coluna por Jorge Alberto Macedo Acosta Jr. e Felipe Montiel da Silva, entre outros escritos.
Atualmente, o estágio de desenvolvimento capitalista atinge a nível mundial novos patamares, assumindo configurações até então inéditas. É financeirizado, informacional e cognitivo. Nesse contexto, constata-se a capacidade de algumas empresas transnacionais de influenciar o ordenamento jurídico de diferentes países, bem como de impor suas condições em relações de trabalho que envolvem inúmeros funcionários.
O fenômeno chamado “uberização” é um exemplo dessas transformações nas relações sociais do labor. Condiz na conexão entre alguém que precisa de um produto ou serviço e outro alguém que oferece tal produto ou serviço. Todavia, não são repartidos os lucros gerados com os membros da rede. Podemos averiguar claramente a presença de um polo consumidor e um polo fornecedor, assim como a existência de um polo fornecedor da força de trabalho e outro que usufrui desta. O aplicativo de transportes foi pioneiro de uma série de “empresas de economia compartilhada”, as quais criaram desde redes hoteleiras sem nenhum hotel até complexos esquemas de fornecimento de serviços de beleza delivery.
Diante disso, pelo lado da massa trabalhadora, considerando o aumento da precarização e do desemprego, há sensação de insegurança e incerteza no que diz respeito aos efeitos jurídicos e sociais ocasionados por tais mudanças. No cenário brasileiro, especialmente, quando levadas ao judiciário, essas disputas jurídicas podem ter desfechos indeterminados. Por exemplo, a primeira sentença em ação envolvendo Uber e motorista no país decidiu pelo não reconhecimento de vínculo trabalhista [1], logo em seguida, outra sentença decidiu o contrário, reconhecendo o vínculo trabalhista entre motorista e empresa [2]. Em que pese a limitação dos direitos trabalhistas reconhecidos e aplicados por nossa ordem jurídica, essas garantias não estão ao alcance dos “colaboradores” no contexto das empresas de economia compartilhada.
Como aponta o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, “a nova etapa do capitalismo é marcada por desencontros entre a estratégia da grande empresa transnacional e os espaços jurídico-políticos nacionais, espaços ‘desintegrados’ pela aceleração dos tempos de produção e circulação do capital globalizado” [3]. Evidencia-se, desse modo, o descompasso entre as grandes empresas transnacionais e os ordenamentos jurídicos nacionais envolvidos. Não obstante, dada a fragilidade dos Estados nacionais contemporaneamente frente às grandes corporações, podemos presumir para qual lado pesa a balança dos direitos dos cidadãos.
Não podemos deixar de citar que o referido descompasso gerado pelas transformações sistema capitalista e pela política neoliberal também dobra a ordem legal dos países na medida em que se movimenta. Vide a reforma na legislação trabalhista do Brasil colocada em prática pelo atual governo, que não se limita somente à precarização como também tangencia uma forma legal de trabalho escravo e apresenta forma de regulação em que se paga para trabalhar (trabalho intermitente). Trata-se, neste momento, do desmonte do sistema de direitos, sobretudo das leis que ofereciam garantias aos mais desfavorecidos, atingindo também a privatização de bens e empresas estatais mais rentáveis.
Esse movimento da economia neoliberal ainda gera outro resultado: com uma insignificante evolução dos rendimentos dos trabalhadores e a pífia capacidade de gasto dos trabalhadores precarizados e empobrecidos, abre-se espaço para a financeirização do consumo. A queda nos rendimentos das camadas menos favorecidas foi contrabalançada pelo endividamento imprudente das famílias.
“Não é o fim do capitalismo, mas o fim do capitalismo democrático. Antes eles precisavam de milhares de pessoas, hoje a regra mudou e são as próprias corporações quem decidem o que pode e o que não” [4], como diz o sociólogo Ladislau Dowbor. Nesse sentido, apesar do cenário pessimista, procuram-se maneiras de fazer com que o Direito e os cidadãos voltem a figurar entre os elementos de peso nas relações de poder que definem os rumos civilizatórios globais. Para tanto, os próximos passos a serem trilhados na presente investigação versarão sobre estudos de Anselm Jappe (As Aventuras da Mercadoria) e Andreas Fischer-Lescano (Força de Direito).
[1] https://www.conjur.com.br/dl/justica-trabalho-fixa-motorista-uber.pdf
[2] https://www.conjur.com.br/dl/juiz-reconhece-vinculo-emprego-uber.pdf
[3] http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/578354-os-descaminhos-da-globalizacao
[4] Dowbor, Ladislau; Os vazamentos do dinheiro público. Dowbor blog, 2017. Disponível em: dowbor.org. Acesso em: 15 mai. 2018.
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