Breve roteiro sobre estudos do constitucionalismo latino - americano: a importância da pesquisa empírica

22/07/2016

Por Enzo Bello – 22/07/2016

Ao invés de seguirem a tradição colonial/servil e dogmática/acrítica que caracteriza a maioria dos tradicionais juristas brasileiros, que repetem modelos clássicos ou criam modismos ao se limitarem a importar ideais, conceitos, teorias, institutos e autores europeus e estadunidenses, diversos pesquisadores brasileiros vêm se preocupando em conhecer e explicar o contexto em que estamos inseridos: a América Latina. A despeito do processo narrado por Aníbal Quijano de colonialidade do poder, do ser e do saber, os estudos realizados no Brasil sobre o direito - e, mais recentemente, o constitucionalismo - no âmbito da América Latina ganharam maior (porém, ainda não a merecida) ênfase na última década.

Tais investigações podem ser agrupadas em três fases, num olhar retrospectivo identificado de modo cronológico, que atualmente se mostram justapostas em alguns trabalhos. São elas: (i) de compreensão da conjuntura latino-americana em termos de história, economia, sociedade, política, cultura, direito e constitucionalismo; (ii) de apresentação das recentes normatividade e dogmática constitucionais; e (iii) de conhecimento da realidade latino-americana e suas relações com a nova normatividade constitucional.

Na primeira fase, há estudos de perfil interdisciplinar - articulando filosofia, política, sociologia e antropologia - que visam a compreender e apresentar a construção histórica do fenômeno jurídico no ambiente latino-americano, considerada a heterogeneidade de experiências nos diversos países da região[1]. Observando-se suas características peculiares, notadamente em termos de infraestrutura econômica, sujeitos políticos, dinâmicas sociais, instituições políticas públicas e privadas, culturas e tradições ancestrais, tais estudos identificam alguns pontos comuns na formação e transformação de elementos como estado, nação, povo, território, direitos, entre outros. A partir da materialização desses conceitos na prática da história latino-americana, contextualiza-se um percurso tortuoso de alternância entre períodos de democracia e autoritarismo, o que denota os tipos específicos de constituições promulgadas e outorgadas, sobretudo no século XX, até o advento dos textos de índole multicultural, pluricultural e intercultural, respectivamente, nas décadas de 1980, 1990 e 2000.

Na segunda fase, há estudos que vão diretamente aos textos constitucionais, especialmente da Venezuela (1999), do Equador (2008) e da Bolívia (2009), e apresentam o resultado das assembleias constituintes realizadas desde abajo e os projetos de refundación del Estado em termos de Estado Pluricultural e Multinacional, organização institucional, catálogos de direitos fundamentais, referenciais epistemológicos e axiológicos (Pachamama e Bien Vivir), jurisdição especial indígena, autonomia dos povos tradicionais, proteção aos territórios indígenas e recursos naturais. Nesse mesmo contexto, outros textos[2] trazem ao público brasileiro um rol de autores, a maioria até outrora desconhecida no Brasil, que oferecem contribuições teóricas a partir e para além daqueles textos constitucionais. Entre eles, destacam-se os espanhóis Roberto Viciano Pastor e Rúben Martínez Dalmau[3] (assessores nas constituintes de Venezuela e Equador), e Jorge Resina[4], os equatorianos Luis Fernando Ávila Linzán[5], Agustín Grijalva[6], Ramiro Ávila Santamaría[7] e Alberto Acosta[8], o colombiano Ricardo Sanín Restrepo[9], o boliviano Alvaro García Linera[10], a peruana Raquel Z. Yrigoyen Fajardo[11], a estadunidense (há muito radicada no Equador) Catherine Walsh[12], os argentinos Roberto Gargarella e Christian Courtis[13], e Eugénio Raul Zaffaroni[14]. Ademais, tem-se um grande grupo de pensadores latino-americanos inseridos nos debates sobre estudos sobre pluralismo jurídico[15] e pensamentos pós e descolonial[16].

Na terceira fase, advêm investigações empíricas realizadas por pesquisadores que passam a evidenciar a realidade social e as práticas do concreto que denotam a dinâmica dos sujeitos, das instituições e da normatividade nos países do chamado novo constitucionalismo latino-americano. Pesquisas empíricas realizadas, em especial, na Bolívia e no Equador, vêm trazendo o que há de mais importante nesse contexto e que até então pouco ou nunca apareceria nos textos de brasileiros sobre o novo constitucionalismo latino-americano: o olhar, o ponto de vista, a voz, a percepção, a opinião dos sujeitos sociopolíticos, individuais e coletivos, que foram historicamente oprimidos e recentemente conquistaram protagonismo na vida política de seus países. Antes, durante e depois da promulgação desses textos constitucionais, uma pluralidade de sujeitos exerce uma cidadania ativa através de intensa participação política, inclusive com foco na luta por direitos, como se pode observar nos conflitos socioambientais que contrapõem a base social que construiu e apoia o Estado Pluricultural.

Portanto, a partir dessa terceira fase de estudos sobre o novo constitucionalismo latino-americano, com a coleta direta de dados por pesquisadores em imersões no campo, começa-se a se ter acesso aos saberes tradicionais invisibilizados e calados pelo processo de colonialidade. E mais, passa-se a ter conhecimento sobre a real efetividade, ou não, de uma normatividade constitucional elaborada a partir de valores e interesses de classes sociais e/ou grupos étnicos contra hegemônicos.

As pesquisas mais recentes[17] perpassam as três fases antes descritas, com maior ênfase na terceira, oferecendo relevantes dados apreendidos da vivência dos pesquisadores, especialmente na Bolívia, onde têm tido a oportunidade de estarem em contato direto com muitas autoridades indígenas originárias campesinas, autoridades estatais e cidadãs e cidadãos de cidades urbanas e rurais. Os pesquisadores muitas vezes conhecem essas pessoas de modo informal e são acolhidos com gentileza e hospitalidade. Elas abrem as portas de suas casas e permitem acesso aos seus rituais místicos e às suas reuniões políticas. Além da receptividade, elas ensinam sobre a existência de visões externas ao estado (no caso, o Estado Pluricultural) e sobre como os sujeitos sociopolíticos na Bolívia compõem seus conflitos, com respeito e respaldo na Constituição, mas sem deixar de considerar suas demandas, interesses e tradições como anteriores e além da normatividade constitucional.

Como demonstra a realidade boliviana, retratada a partir dessas e outras pesquisas, há algo que deve ser considerado pelos estudiosos (principalmente, os entusiastas efusivos) do novo constitucionalismo latino-americano. Apesar das inovações e reformulações normativas e institucionais, continua-se a tratar, em essência, do constitucionalismo, ou seja, estruturalmente do mesmo fenômeno proveniente da Europa, dos EUA e de seus influxos de colonialidade do poder, do ser e do saber. Apesar da relevância do processo popular que culminou na promulgação (aprovação parlamentar sucedida de referendo popular) da Constitución Política del Estado Plurinacional de Bolivia, é preciso ter claro se o Estado cumpre as diretrizes normativas não apenas por meio de teóricos e jurisprudências, mas, sobretudo, a partir dos sujeitos de direito envolvidos. Este é o verdadeiro cerne democrático.

Há um projeto político e de sociedade em disputa em países como a Bolívia e o Equador. A depender dos rumos dessa disputa, a Constituição pode percorrer diferentes caminhos, desde (i) o projetado por seus artífices, com a sua manutenção longeva e implementação efetiva, podendo (ii) continuar a viger com pouca efetividade (caso brasileiro), ou mesmo (iii) ser derrogada e substituída por outra menos progressista num eventual contexto de mudança de correlação de forças (vide o histórico antigo e recente de golpes na região). Os melhores medidores dos ventos e da pressão atmosférica para aferir os graus de materialidade desse constitucionalismo são os seus formuladores e destinatários: as cidadãs, os cidadãos e os grupos étnico-sociais originário campesinos.

Nesse sentido, os seguintes temas são importantes pautas que estão na ordem do dia e carecem de mais investigações empíricas por pesquisadores críticos brasileiros, a partir da realidade social e do plano do concreto, em termos de visões alternativas ao estado e efetividade das normas constitucionais: pluralismo jurídico, descolonialidade, interculturalidade, conflitos socioambientais, autonomia dos povos e comunidades tradicionais, direitos indígenas, funcionamento da jurisdição especial indígena, exploração de recursos naturais e obras estatais de infraestrutura versus proteção aos territórios indígenas e direitos culturais, intensidade do espaço que o Estado Pluricultural de Direito abre e mantém para a participação política da sociedade civil, níveis de representação indígena nas instituições, entre outros.

Um espaço importante no qual têm sido desenvolvidos debates a partir de pesquisas, inclusive empíricas, sobre os temas acima abordados é o dos congressos da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano[18], que terá sua sexta edição, intitulada “Constitucionalismo Democrático e Direitos: desafios, enfrentamentos e perspectivas”, nos dias 23 a 25 de novembro de 2016, na cidade do Rio de Janeiro (UFRJ).

Em razão da importância e atualidade desses temas e discussões, é preciso avançar e a pesquisa empírica mostra-se imprescindível para se conhecer a dimensão material do constitucionalismo - através de uma visão crítica do direito e de fontes de conhecimento originárias da realidade social -, de modo a se vislumbrar possíveis influxos para a transformação da realidade brasileira.


Notas e Referências:

[1] Por todos, veja-se o nosso: BELLO, Enzo. A cidadania no constitucionalismo latino-americano. Caxias do Sul, EDUCS, 2012.

[2] Por todos: BRANDÃO, Pedro. O novo constitucionalismo pluralista latino-americano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015; e WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters (Coords.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013.

[3] VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rúben. Estudios sobre el nuevo constitucionalismo latino-americano. Valencia: Tirant lo Blanch, 2012.

[4] RESINA, Jorge. La transformación del Estado y el rol del movimiento indígena durante el Gobierno de Correa. Quito: Abya Yala, 2015. Disponível na internet em: http://montecristivive.com/wp-content/uploads/2016/05/LA-TRANSFORMACION.pdf

[5] ÁVILA LINZÁN, Luis Fernando; UBIDIA, Santiago Andrade (Eds.). La transformación de la Justicia. Quito: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos, 2008.

[6] SANTAMARÍA, Ramiro Ávila; JIMÉNEZ, Agustín Grijalva; DALMAU, Rubén Martínez (Eds.). Desafíos constitucionales. La Constitución ecuatoriana del 2008 en perspectiva. Quito: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos, 2008.

[7] SANTAMARÍA, Ramiro Ávila. El Neoconstitucionalismo transformador: el Estado y el Derecho en la Constitución de 2008. Quito: Abya Yala, 2008. Disponível na internet em: http://www.rosalux.org.ec/attachments/article/239/neoconstitucionalismo.pdf

[8] ACOSTA, Alberto; MARTÍNEZ, Esperanza (Comps.). La naturaleza con derechos: de la filosofía a la política. Quito: ABYA-YALA, 2011. Disponível na internet em: http://www.rosalux.org.ec/es/serie-nuevo-constitucionalismo/254-derechos-naturaleza.html.

[9] SANIN RESTREPO, Ricardo. Teoría Crítica Constitucional. Valencia: Tirant lo Blach, 2014.

[10] GARCÍA LINERA, Álvaro. A Potência Plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia. São Paulo: Boitempo, 2010; _____. Las empresas del Estado: patrimonio colectivo del pueblo boliviano. La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional, 2012; _____. Las tensiones creativas de la revolución: la quinta fase del Proceso de Cambio. La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional, 2012.

[11] FAJARDO, Raquel Z. Yrigoyen. (Ed.). Pueblos indígenas: constituciones y reformas en América Latina. Lima: IIDS, 2010.

[12] WALSH, Catherine. Interculturalidad, Estado, Sociedad: Luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Abya Yala, 2009.

[13] GARGARELLA, Roberto; COURTIS, Christian. El nuevo constitucionalismo latinoamericano: promesas e interrogantes. Políticas Sociales. Santiago de Chile: Naciones Unidas, 2009. Disponível na internet em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/6162/1/S0900774_es.pdf

[14] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La naturaleza como persona: Pachamama y Gaia. In: Bolivia – Nueva Constitución Política del Estado: conceptos elementales para su desarrollo normativo. La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional, 2010, p. 109-132. Disponível na internet em: http://vicepresidencia.gob.bo/IMG/pdf/ncpe_cepd.pdf.

[15] BALDI, Cesar Augusto (Coord.). Aprender desde o Sul - novas constitucionalidades, pluralismo jurídico e plurinacionalidade. Belo Horizonte: Fórum, 2015.

[16] BELLO, Enzo; VAL, Eduardo Manuel (Orgs.). O pensamento pós e descolonial no novo constitucionalismo latino-americano. Caxias do Sul: Educs, 2014. Disponível na internet em: <http://www.ucs.br/site/midia/arquivos/pensamento_pos.pdf >

[17] Por todas, veja-se: LEONEL JR. Gladstone. O novo constitucionalismo latino-americano: um estudo sobre a Bolívia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015; OLIVEIRA FILHO, Gabriel Barbosa Gomes de. Constitucionalismo Boliviano e Estado Plurinacional: solução de conflitos e autogoverno nas autoridades indígenas originárias campesinas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016; VALENÇA, Daniel Araújo. Disjuntivas do Proceso de cambio: o avanço das classes subalternas, a Constituição de 2009 e os limites do Estado Plunacional da Bolívia. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal da Paraíba. No prelo.

[18] https://constitucionalismodemocratico.direito.ufg.br


Enzo BelloEnzo Bello é Pós-doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Faculdade de Direito e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Editor-chefe da Revista Culturas Jurídicas (www.culturasjuridicas.uff.br). Consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior (CAPES).


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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