1 Primórdios da proibição
O primeiro registro de legislação referente a drogas existente no Brasil surgiu durante as Ordenações Filipinas em seu Livro V, Título LXXXXIX, versando-se “que ninguém tenha em sua casa rosalgar, nem o venda nem outro material venenoso” e de 1830 até o código penal republicano de 1890, não houve legislação de nível nacional atinente à matéria. No referido código, era previsto como crime em seu artigo 159 “expor à venda, ou ministrar, substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades prescriptas nos regulamentos sanitários”[1].
Como se verifica, a proibição mencionada destinava-se a impedir a disseminação de substâncias venenosas, não necessariamente de entorpecentes e/ou psicotrópicos. Vale ressaltar que tal delito era apenado somente com multa.
Antes de 1914 não há uma sistematização da legislação sobre o tema de drogas no Brasil, uma vez que esta se encontrava ou no modelo supracitado – sem tutelar necessariamente “drogas” do modo que são entendidas hoje, ou seja, substâncias psicotrópicas ou entorpecentes – ou em normas municipais esparsas. Neste sentido, afirma Nilo Batista[2]:
A legislação anterior a 1914, seja aquela inscrita na tradição, que remonta às Ordenações Filipinas (V, XXXIX), das “substâncias venenosas” (expressão empregada no CP 1890, art. 159), com sabor de delito profissional dos boticários, preventivo do venefício, seja aquela esparsa em posturas municipais, como a proibição do “pito-de-pango” pela Câmara do Rio de Janeiro, em 1830, a legislação anterior a 1914 não dispõe de massa normativa que permita extrair-lhe uma coerência programática específica.
Conforme Salo de Carvalho, “no início do século XX o aumento do consumo de ópio e haxixe, sobretudo nos círculos intelectuais e na aristocracia urbana, incentiva a edição de novos regulamentos sobre o uso e a venda de substâncias psicotrópicas”[3].
Em 1912 o Brasil subscreveu o protocolo suplementar de assinaturas da Conferência Internacional do Ópio ocorrida em Haia e em decorrência desse fato, foi baixado o Decreto no 11.481 de 10 de Fevereiro de 1915[4] após a incorporação do protocolo suplementar no ordenamento jurídico através do Decreto no 2.961 de 1914. O decreto tratava do “abuso crescente do ópio, da morfina e seus derivados, bem como da cocaína”[5]. Segundo Nilo Batista, a política de drogas brasileira começou neste momento a obter um formato mais definido, na direção do “modelo sanitário”, o qual prevaleceria até a década de 50[6].
O modelo sanitário caracterizava-se primeiramente, em relação ao consumidor de drogas, pela utilização de técnicas higienistas com a atuação de autoridades policiais, sanitárias e judiciais, onde o dependente era tratado como doente através de métodos similares aos utilizados nos casos de febre amarela e varíola, época na qual este indivíduo não era criminalizado, mas estava sujeito a internação compulsória mediante decisão judicial acompanhada de parecer médico[7].
Já em relação ao tráfico, este modelo (sanitário) possuía influência principalmente no que dizia respeito à importação de substâncias entorpecentes, as quais eram regularmente comercializadas por farmácias – durante as décadas de 1920 e 1930, houve intensa produção legislativa no intuito de normatizar a entrada e comercialização das mesmas, onde a importação das substâncias proibidas sem o referido certificado de importação acarretaria em crime de contrabando[8]. Diante deste cenário, é possível traçar um claro paralelo com a figura do traficante, que surge a partir do modelo bélico. Segundo Nilo Batista[9]:
O que se depreende com clareza de tais normas é uma concepção sanitária de controle do tráfico, de um tráfico que se alimenta do desvio da droga de seu fluxo autorizado. As drogas estavam nas farmácias ou nos “stocks” de uma indústria que apenas suspeitava do seu futuro sucesso comercial, e boticários, práticos, facultativos, fiéis de armazém e funcionários da alfândega são os personagens que abastecem de opiáceos ou cocaína grupos reduzidos e exóticos, intelectuais, filhos do baronato agroexportador educados na Europa, artistas: um hábito com horizonte cultural bem definido, sem significação econômica.
Vale salientar o recorte de classe da época no que diz respeito ao comércio e consumo de drogas. Ainda conforme o autor[10], “a maconha, embora contemplada na listagem dos artigos primeiros, estava fora desse circuito, porque era consumida pelos pobres (...) era a ‘erva do norte’”.
Em 1932, começa a surgir uma nova tutela sobre a matéria, expandindo-se o prévio artigo 159 do código de 1890 para abarcar uma nova gama de condutas. Substâncias entorpecentes entram no lugar de substâncias venenosas e à pena de multa é adicionada a pena de prisão. Nestes moldes começou a se delinear um novo modelo repressivo de drogas no Brasil[11].
2 Convenções e tratados internacionais
Em relação ao surgimento das Convenções internacionais a respeito de drogas, a Europa e os EUA começaram a enfrentar problemas com a importação de substâncias psicoativas tais como o ópio, por exemplo, posto que comercializadas e consumidas como mercadorias desde a Guerra do Ópio promovida pela Inglaterra, sem os pressupostos culturais dentro dos quais o consumo destas drogas se desempenhava sem se tornar um problema em larga escala[12].
De todo o imbróglio, como já visto anteriormente, surgiu a Convenção do Ópio em 1912 na qual os signatários comprometeram-se a regular o comércio de morfina, cocaína e heroína dentro de seus próprios ordenamentos jurídicos, a qual foi incorporada no Brasil por meio do Decreto 2961 de 1914.[13] Os EUA foram o principal país a promover a política proibicionista a nível internacional ao fomentar no início do século XX o controle do comércio de ópio para fins não medicinais, não só no intuito moralista de adaptar imigrantes ao molde ocidental como também para obter poder econômico no mercado oriental que, conforme Moreira da Silva, era até “então dominado pelos ingleses”.[14]
Como o consumo de ópio estava até então associado a grupos considerados à margem da sociedade (principalmente imigrantes orientais no ocidente), criou-se o estereótipo de consumidor – que se amoldou à visão moralista que a sociedade tinha sobre os indivíduos tipicamente entendidos como usuários da droga – ao lado do crescimento das leis penais que tratavam do assunto, surgindo assim o “discurso ético-jurídico”, conforme Salo de Carvalho[15].
Ainda segundo o autor[16]:
O principal mecanismo de divulgação do discurso ético-jurídico, em nível internacional, será o Protocolo para Regulamentar o Cultivo de Papoula e o Comércio de Ópio, promulgado em Nova Iorque (1953). Contudo o ingresso definitivo do Brasil no cenário internacional de combate às drogas ocorrerá somente após a instauração da Ditadura Militar, com a aprovação e promulgação da Convenção Única sobre Entorpecentes pelo Decreto 54.216/64, subscrito por Castello Branco.
Com a reação da sociedade à contracultura dos hippies que se instaurou na década de 60 – a qual era intrinsecamente ligada ao consumo de substâncias psicoativas tais como a maconha e o LSD – verificou-se um endurecimento das leis penais já existentes sobre drogas tendo por fundamento um rechaço moral da cultura belicista dominante, principalmente nos Estados Unidos[17].
Isto, por sua vez, contribui para o surgimento de um novo modelo para a sistemática legal referente a drogas, o modelo bélico – sucessor do modelo sanitário vigente desde o início do século XX –, o qual “opõe-se à droga com métodos de guerra”[18] e diferencia consumidor de traficante, concedendo tutela penal diferenciada a ambos. Conforme Salo de Carvalho[19]:
Passa a ser gestado, neste incipiente momento de criação de instrumentos totalizantes de repressão, o modelo médico-sanitário-jurídico de controle dos sujeitos envolvidos com drogas, fundado em duplo discurso que estabelecerá a ideologia de diferenciação. A principal característica deste discurso é traçar nítida distinção entre consumidor e traficante, ou seja, entre doente e delinquente, respectivamente. Assim sobre os culpados (traficantes) recairia o discurso jurídico-penal do qual se extrai o estereótipo do criminoso corruptor da moral e da saúde pública. Sobre o consumidor incidiria o discurso médico-psiquiátrico consolidado pela perspectiva sanitarista em voga na década de cinquenta, que difunde o estereótipo da dependência.
Na década de 70, surge com o governo Nixon uma nova polarização, concretizada na Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de Viena (1971), a qual deu origem, por sua vez, ao conceito de narcotráfico tal qual é compreendido atualmente – os Estados Unidos, diante de seus problemas internos referentes ao consumo de cocaína e heroína, decidem por retirar o foco repressivo do âmbito doméstico e passam a projetá-lo ao exterior e em especial, no que diz respeito ao presente estudo, à América Latina, que tornou-se foco de repressão internacional tanto jurídica quanto belicamente – A “Guerra às Drogas”, podendo se verificar conforme versa Salo de Carvalho a “culpabilização dos países produtores pelo consumo interno, ou seja, a criminalização do estrangeiro reforça a vitimização doméstica”[20].
Sendo assim, há uma verdadeira exportação estadunidense da guerra às Drogas ao “quintal” das Américas.
3 Legislação interna
Houve importante modificação no Brasil a partir de 1968 no que se refere ao discurso de diferenciação entre consumidor e traficante. O STF entendia por punir apenas aquele que comercializasse drogas, não afetando os consumidores pela tutela penal. Todavia, o Decreto-Lei 385/68 modificou o art. 281 do Código Penal, que igualou o tratamento entre consumidor e traficante, punindo penalmente o primeiro tal qual o último era punido, nos seguintes termos: “nas mesmas penas incorre quem ilegalmente: traz consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”.[21]
A referida modificação supostamente foi alterada três anos depois com a Lei 5.726/71, que redefinia os termos da criminalização e instituía um novo rito processual. Todavia, segundo Salo de Carvalho, “o fato de não mais considerar o dependente como criminoso escondia a faceta perversa da Lei, pois continuava a identificar o usuário ao traficante”[22], muito embora em suas definições a Lei tenha mantido o discurso médico-jurídico ao definir o consumidor como dependente e o comerciante como delinquente.
A lei 6.368/76, por sua vez, consolidou as alterações no sistema de segurança público brasileiro pretendidas pela Convenção de Viena de 1971, maximizando-se por sua vez o discurso repressivo belicista de Guerra às Drogas, com a priorização da repressão em detrimento da prevenção. No entendimento de Salo de Carvalho[23]:
No plano político-criminal, a Lei 6.368/76 manteve o histórico discurso médico-jurídico com a diferenciação tradicional entre consumidor (dependente e/ou usuário) e traficante, e com a concretização moralizadora dos estereótipos consumidor-doente e traficante-delinquente. Outrossim, com a implementação gradual do discurso jurídico-político no plano da segurança pública, à figura do traficante será agregado o papel (político) do inimigo interno, justificando as constantes exacerbações de pena, notadamente na quantidade e na forma de execução, que ocorrerão a partir do final da década de setenta.
4 A Lei 11.343/06
Após a reforma da legislação de 1976 em 2002 que ao mesmo tempo aumentou a repressão e tornou a legislação pátria mais receptiva a modelos de intervenção voltados para saúde no que concerne a matéria, a Lei 11.343/06 encontrou um ambiente propício para surgir dentro de um molde mais preventivo, muito embora tenha mantido e em certos aspectos inclusive aumentado a repressão proibicionista[24]. Em seu artigo 28, a Lei deixou de punir o usuário com pena privativa de liberdade, impondo-lhe diversas medidas alternativas que mais se assemelham a medidas de cunho administrativo do que penal, como por exemplo, “I – advertência sobre os efeitos das drogas”[25] ou “III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”[26]. O artigo anterior correspondente (art. 16 da Lei 6.368 de 1976) apenava com detenção de 6 a 2 anos e multa aquele que adquirisse, guardasse ou trouxesse consigo, para o uso próprio, substâncias legalmente classificáveis como drogas[27].
Em seus artigos 19 e 20 seria possível entender que a Lei adotou expressamente a política de redução de danos, conforme versa em seu artigo 20 que “constituem atividades de atenção ao usuário e dependente de drogas e respectivos familiares, para efeito desta Lei, aquelas que visem à melhoria da qualidade de vida e à redução dos riscos e dos danos associados ao uso de drogas”[28]. Todavia, à exceção da despenalização da posse de drogas para o consumo pessoal que deixou de ser punível com pena privativa de liberdade conforme se verifica no artigo 28 da Lei, não foram grandes os avanços trazidos no que diz respeito ao proibicionismo característico no Brasil.
Segundo Salo de Carvalho[29]:
Embora perceptíveis substanciais alterações no modelo legal de incriminação, notadamente pelo desdobramento da repressão ao comércio ilegal em inúmeras hipóteses típicas e pelo processo de descarcerização da conduta de porte para uso pessoal, é possível afirmar que a base ideológica da Lei 11.343/06 mantém inalterado o sistema proibicionista inaugurado com a Lei 6.368/76, reforçando-o.
Mesmo diante de diversas alternativas ao proibicionismo na época de edição e promulgação da Lei 11.343/06 – sendo uma destas a redução de danos –, a escolha legislativa foi a manutenção do ideológico proibicionista vigente desde a década de 70, reiterando uma vez mais a referida política criminal para tutelar a questão das drogas[30].
Sendo assim, resta clara a opção brasileira pela legislação punitivista, nos moldes latino-americanos, difundido durante as últimas três décadas – e ainda não há, no horizonte legislativo, quaisquer prospectos de melhora na legislação de drogas do Brasil.
Notas e Referências
[1] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06, 7ª ed. Ver., atual. E ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014 p. 59-61.
[2] BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n° 20. São Paulo: IBCCRIM/Revista dos Tribunais, 1997. p. 79
[3] CARVALHO, op. Cit. p. 59-61.
[4] BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n° 20. São Paulo: IBCCRIM/Revista dos Tribunais, 1997. p. 79
[5] BRASIL. Decreto no 11.481 de 10 de Fevereiro de 1915. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 10 de Fevereiro de 1915, Seção 1, p. 3597.
[6] BATISTA, op. cit., p. 79
[7] SILVA, Antonio Fernando de Lima Moreira da. Histórico das drogas na legislação brasileira e nas convenções internacionais. Disponível em <https://jus.com.br/artigos/19551/historico-das-drogas-na-legislacao-brasileira-e-nas-convencoes-internacionais> Acesso em 06 de Junho de 2017.
[8] BATISTA, op. cit., p. 81
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06, 7ª ed. Ver., atual. E ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014 p. 59-61.
[12] SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Drogas: histórico no Brasil e nas convenções internacionais. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2934, 14 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19551 Acesso em 15 out 2016.
[13] Idem.
[14] Idem.
[15] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06, 7ª ed. Ver., atual. E ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014 p. 63.
[16] Idem.
[17] SILVA, Antônio Fernando de Lima Moreira da. Drogas: histórico no Brasil e nas convenções internacionais. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2934, 14 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19551 Acesso em 15 out 2016.
[18] BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n° 20. São Paulo: IBCCRIM/Revista dos Tribunais, 1997. p. 85
[19] CARVALHO, op. cit., p. 65-66.
[20] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06, 7ª ed. Ver., atual. E ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 72-73.
[21] Ibidem, p. 68.
[22] Ibidem, p. 69.
[23] Ibidem, p. 74.
[24] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06, 7ª ed. Ver., atual. E ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014, p.118.
[25] BRASIL. Lei 11.343 de 23 de Agosto de 2006. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 24 de Agosto de 2006, p. 2.
[26] Idem.
[27] BRASIL, Lei 6.368 de 21 de Outubro de 1976. Diário Oficial, Poder Executivo, Brasília, DF, 22 de Outubro de 1976, p. 14839.
[28] Idem.
[29] CARVALHO, op. cit, p. 118
[30] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06, 7ª ed. Ver., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014, p. 118
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