Este texto tem por objetivo analisar, de maneira bastante sintética, o ponto 4.2 da decisão proferida pelo Min. Dias Toffoli na MC-ADI 6298/DF, no que toca à incidência da nova regra nos processos em curso[1].
O juiz das garantias, criado pela lei 13.964/19, é uma regra de impedimento judicial que tem por objetivo impedir que o juiz que atuou na fase de inquérito prossiga na fase de instrução e posterior julgamento, de modo a evitar decisões enviesadas (viés de confirmação) nos processos criminais.
Nos termos do art. 3o.-C, caput e §1o.[2], o juiz das garantias terá competência para atuar até o momento do recebimento da denúncia, apontando que a partir daquele momento não poderá mais ter qualquer atuação processual. Trata-se de regra estabelecida para assegurar que o juiz que irá julgar o caso não esteja enviesado pelas decisões adotadas na fase de investigação.
Percebe-se que a Lei inclui, assim, uma regra que estabelece impedimento para atuação do mesmo juiz na fase processual seguinte (após o recebimento da denúncia), mas não houve a necessária previsão de regra de transição específica para a aplicação da nova sistemática pelo sistema das fases processuais.
Essa ausência de regra específica de direito intertemporal leva à utilização da regra geral de incidência normativa processual prevista no art. 2o. do Código de Processo Penal, que prevê a aplicação imediata da lei, nos termos do sistema do isolamento dos atos processuais.
Trata-se de evidente falha legislativa que pode levar a confusão na aplicação da nova lei aos processos em curso, o que já se percebe pelos termos da decisão proferida monocraticamente pelo Min. Dias Toffoli. O Ministro assim assentou na decisão em comento:
“Nesse contexto, em prestígio da garantia constitucional do juiz natural, há que se fazer a advertência de que deverão ser neutralizadas quaisquer modificações de competência que, a pretexto de aperfeiçoar o sistema acusatório, dissimulem eventual intuito de alterar, de forma artificiosa, o juiz natural para o julgamento de determinado caso. Portanto, é fundamental que o Supremo Tribunal Federal determine os exatos termos em que deverá incidir a Lei nº 13.964/19 no que tange aos processos e às investigações que estiverem em curso quando do esgotamento do prazo de 180 dias, como forma de se resguardar o princípio do juiz natural. Nesse sentido, entendo que a incidência da nova lei processual é prospectiva, e não retroativa, não se aplicando, portanto, a atos já praticados. Some-se a isso o disposto no art. 2º do Código de Processo Penal, segundo o qual “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. Por outro lado, uma adequada regra de transição também deve assegurar, na maior medida possível, a segurança jurídica, evitando o surgimento ou o prolongamento de discussões judiciais acerca do tema. Afinal, uma das funções precípuas do STF é promover a segurança jurídica, possibilitando que as normas sejam interpretadas de maneira coerente e previsível. Considerando essas premissas, entendo que:
(i) no tocante às ações penais que já tiverem sido instauradas no momento em que os tribunais efetivamente implementarem o juiz das garantias (ou quando esgotado o prazo máximo de 180 dias fixado por esta decisão), o início da eficácia da lei, ora protraído, não acarretará qualquer modificação do juízo competente. O fato de o juiz da causa ter atuado na fase investigativa não implicará seu automático impedimento, porque, segundo o art. 2º do CPP, a lei processual penal não pode retroagir. Ademais, tratando-se de impedimento superveniente, esse não poderia atingir o juiz já legitimamente vinculado à ação penal, relacionando-se, portanto, com a garantia do juiz natural e o corolário da perpetuatio jurisdictionis. Ressalte-se, inclusive, que se assim não fosse, teríamos a necessidade de redistribuição de grande parte das ações penais em curso no país. (ii) quanto às investigações que já estiverem em andamento no momento da efetiva implementação do juiz das garantias (ou quando esgotado o prazo máximo de 180 dias), o juiz da investigação continuará a conduzir a investigação do caso específico. Portanto, não será necessário, a partir do início de eficácia da lei, designar novo juiz para oficiar como juiz de garantias na respectiva investigação. Neste caso, uma vez recebida a denúncia ou queixa e instaurada a ação penal, o processo será enviado ao juiz da instrução e do julgamento. Nessa hipótese, do mesmo modo, evita-se a necessidade de redistribuição de inúmeras investigações já em curso no país. Vide que ambas as regras de transição respeitam o disposto no art. 2º do CPP quanto à aplicação imediata da nova regra processual, que deverá produzir efeitos somente prospectivos. Em ambas as hipóteses mencionadas nos itens anteriores, mantém-se o juiz que já estava oficiando no caso (na fase em que se encontra) quando do início de eficácia da nova sistemática processual. Portanto, tais soluções atendem, a um só tempo, as normas acerca da aplicação da lei processual no tempo e os princípios do juiz natural e da segurança jurídica.”
As premissas utilizadas pelo Ministro, com o devido respeito, estão equivocadas. A aplicação imediata da lei não se confunde com a sua retroatividade, de modo que o art. 2o. do Código de Processo Penal não permite chegar à conclusão a que chegou a referida decisão, no sentido de que após a entrada em vigor da lei poderá o juiz que atuou na fase de investigação continuar atuando nas demais fases do processo.
Há, aqui, uma confusão entre “juiz” e “juízo”. A lei estabeleceu nova regra de impedimento do juiz, e não regra de competência de juízo. Assim, no mesmo juízo competente pode haver um juiz impedido (porque participou da fase investigativa) e outro não.
Não há, assim, qualquer relação entre o impedimento do juiz das garantias para atuar nas demais fases do processo criminal e a garantia constitucional do juiz natural. O juiz das garantias, ao revés, viabiliza a imparcialidade judicial, que é premissa fundante do juiz natural.
De outro lado, com relação à aplicação imediata da lei, é certo que as normas processuais, como todas as normas jurídicas, regem o presente, tendo eficácia imediata. Assim, as normas de direito processual aplicam-se aos processos já em andamento[3], estando aptas a disciplinar atos presentes e futuros nestes processos. É vedada à nova norma, assim, atingir situações devidamente aperfeiçoadas anteriormente[4], que geraram ato jurídico perfeito ou direito adquirido dentro do processo.
Nestes termos, a Constituição Federal assegura a todos segurança e estabilidade nas relações jurídicas, garantindo a manutenção dos efeitos destas relações para momento posterior à entrada em vigor da nova lei, caso o direito haja sido estabelecido sob a égide da pretérita norma, constituindo-se direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada.
Esses institutos têm o objetivo de salvaguardar a eficácia dos direitos e relações jurídicas constituídos em face de determinadas normas, evitando assim a insegurança que futuras alterações legislativas possam acarretar. E mais, por se tratar de normas de índole constitucional, insertas no capítulo dos direitos fundamentais, atuam como limitadoras da atuação estatal, impedindo que qualquer ato do poder público - até mesmo a edição de novas leis - atinjam os direitos subjetivos já incorporados ao patrimônio do sujeito[5], pelo que estabelece a Constituição que somente a norma penal mais benéfica ao réu poderá retroagir[6].
Assim, a partir do momento em que determinado fato ensejador da aplicação de determinada norma ocorre, nasce ao titular o direito adquirido à regência daquele fato por aquela norma – tempus regit actum. A este fenômeno, dá-se o nome de ultra-atividade da lei, já que lei revogada continuará produzindo efeitos, de modo a regular a situação cuja exercibilidade se tornou possível antes da alteração legislativa.
A delimitação da eficácia temporal da nova norma com relação aos efeitos imediatos da lei[7], no que tange aos fatos pendentes,[8] está na proteção que nosso sistema confere ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, o que pode ocorrer por meio da incidência direta da norma constitucional ou por meio de regras de transição previstas nas próprias leis e permitem a ultra-atividade das leis revogadas.
Na doutrina, encontramos diversos sistemas e teorias acerca das possíveis maneiras de aplicação das novas normas nos processos que estão em curso. De maneira sintética, são três os principais sistemas relacionados à incidência de novas regras nos processos em curso:
Sistema da unidade processual: este sistema considera o processo como um todo indissolúvel, de maneira que a lei que regulamenta o início do processo deverá ser a mesma que regerá todo o curso do processo. Ou seja, de acordo com este sistema, não haverá incidência de novas normas nos processos que estiverem em curso.[9]
Sistema das fases processuais: por esta sistemática, o processo é considerado por suas distintas fases, quais sejam, a fase postulatória, instrutória, recursal, etc.[10]
Sistema do isolamento dos atos processuais: Este sistema considera o processo como um conjunto de atos concatenados, sendo que cada ato poderá ser isolado para fins de incidência de novas regras. É este o sistema adotado pela ordem processual brasileira, consoante se denota pelas disposições contidas no art. 3o. do CPP e art. 1046 do CPC, ambos respaldados pelo art. 5o., XXXVI da CF. Assim, as novas regras irão incidir nos processos em curso, consoante expressa previsão legal, respeitados os atos já realizados, em atenção e respeito ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito.
A previsão contida na Lei 13.964/19, com a criação do juiz das garantias e o consequente estabelecimento de impedimento para o processo criminal, configura nova hipótese de regra de impedimento, cujo descumprimento leva à nulidade dos atos processuais.
A incidência imediata da norma nos processos em curso, ao contrário do quanto afirmou o Min. Dias Toffoli na decisão monocrática, não ofende a previsão constitucional do juiz natural, em especial porque a mudança da regra de competência foi realizada de maneira geral e abstrata, abrangendo todos os processos criminais e tem como consequência a remessa dos autos ao juízo competente de acordo com as regras estabelecidas, respeitando-se os atos anteriormente praticados.
Não há qualquer tipo de privilégio ou prejuízo com a aplicação da alteração legislativa aos processos em curso capaz de afetar a norma constitucional garantidora do juiz natural. Se há ofensa ao juiz natural na previsão da regra do juiz das garantias, haverá igual ofensa toda a vez que houver alteração de regra de competência funcional ou material com incidência nos processos em curso – como a criação de novas varas e redistribuição de processos -, o que não nos parece razoável.
Assim, em inexistindo qualquer inconstitucionalidade na aplicação imediata da nova regra, deve-se seguir o disposto no art. 5o., XXXVI da CF e art. 2o. do CPP, que determinam a incidência da nova regra nos processos em curso, respeitando-se os atos já praticados.
Notas e Referências
[1] Essa análise partirá da premissa de que o juiz das garantias trata de norma estritamente processual, pois dada a ausência de regra de transição e ante a previsão constitucional de retroatividade máxima da lei penal mais benéfica[1], seriam anulados todos os processos em que tivesse ocorrido a atuação do mesmo juiz na fase de inquérito e na fase de instrução e julgamento, o que geraria verdadeiro caos no sistema processual penal.
[2] Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código. § 1º Recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento.
[3] art. 1046, CPC/15: Ao entrar em vigor este Código, suas disposições se aplicarão (sic) desde logo aos processos pendentes, ficando revogada a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973.
[4] Neste sentido é o art. 14, CPC/15.
[5] Só poderá haver mitigação da proteção constitucional contra a retroatividade se no próprio texto constitucional houver exceção a esta regra. (Jorge, Didier Jr. e Rodrigues, 2002, p. 129)
[6] Art. 5o., XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
[7] O limite do efeito imediato é o Direito Adquirido. (FRANÇA, 1968, p. 309)
[8] “A chamada eficácia imediata das leis não se refere apenas aos fatos presentes. Aliás, ao contrário, por força, mais uma vez, da influência doutrinária de Roubier, os efeitos imediatos costumam ser associados aos fatos pendentes e não aos fatos presentes.” (BATALHA, 1980, p. 32)
[9] Este sistema não é o previsto como regra no Brasil tanto no Processo Civil quanto no Processo Penal, mas é adotado excepcionalmente quando previsto expressamente em regras de transição, como ocorreu na Lei do Inquilinato (Lei 8245/91) - que previu expressamente, em seu art. 76, que as normas ali prescritas não seriam aplicáveis aos processos que estivessem em curso - e no CPC/15, que previu no art. 1054, que a ampliação objetiva dos limites da coisa julgada, prevista no art. 503, §1o., aplica-se apenas aos processos iniciados a partir da vigência do código.
[10] Também não é o sistema adotado como regra, mas foi o sistema adotado pelo art. 90 da Lei 9099/95, quando se instituiu o Juizado Especial Criminal. Com relação à aplicação do dispositivo, houve interpretação conforme a Constituição na ADI 1719/DF, com relatoria do Min. Joaquim Barbosa, julgada pelo Pleno do STF em 18/06/2007, assim ementada: “PENAL E PROCESSO PENAL. JUIZADOS ESPECIAIS. ART. 90 DA LEI 9.099/1995. APLICABILIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA EXCLUIR AS NORMAS DE DIREITO PENAL MAIS FAVORÁVEIS AO RÉU. O art. 90 da lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis aos processos penais nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada. Em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal. Interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réus contidas nessa lei.”
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