Breve análise dos institutos de responsabilização dos sócios na Falência e na Recuperação Judicial

24/03/2020

A responsabilização dos sócios na Recuperação Judicial e na Falência perpassa pela análise de três institutos distintos, que na prática judicial, acabam sendo confundidos, quais sejam: (i) a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica; (ii) a responsabilização dos sócios e administradores da falida e (iii) a extensão dos efeitos da falência.

No que se refere à desconsideração da personalidade jurídica, é imperioso destacar que embora este instituto não esteja previsto na Lei de Recuperação Judicial e Falências (Lei nº 11.101/05), a jurisprudência e a doutrina admitem a instauração do referido incidente (CPC, arts. 133 a 137) no transcurso do procedimento falimentar/recuperacional[1].

A desconsideração da personalidade consiste no afastamento da autonomia patrimonial de determinada sociedade empresária para atingir os bens do sócio ou administrador, em razão do mau uso da pessoa jurídica[2].

Deste modo, a desconsideração surge como espécie de relativização dos efeitos da autonomia patrimonial, mas restrita a situações em que ocorra a verificação de fraude ou abuso de direito na utilização da personalidade jurídica[3].

Conforme dispõe o artigo 50 do Código Civil, a desconsideração da personalidade jurídica pode ser requerida pela parte interessada ou pelo Ministério Público[4], cabendo-lhes a comprovação do ato abusivo ou da fraude perpetrada pelos sócios na condução da atividade empresarial[5].

Contudo, embora a Lei de Recuperação Judicial seja silente, a jurisprudência e a doutrina tem admitido a instauração de incidente de desconsideração por meio do Administrador Judicial, nomeando-se, em determinados casos, gestor judicial para fiscalização da companhia.

Nesta linha de raciocínio, configurou-se como emblemático o caso envolvendo a recuperação judicial da MMX Sudeste S/A, empresa cujo sócio é o empresário Eike Batista. Neste processo, o próprio Administrador Judicial instaurou o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, colhendo diversas provas sobre os atos abusivos práticos por Eike e pela MMX, obtendo fortes indícios de ocultação patrimonial realizada pela sociedade e pelos controladores no exterior[6].

Consoante estatuído no artigo 64 da LFRJ, durante todo o procedimento de recuperação judicial, o devedor ou seus administradores serão mantidos na condução da atividade empresarial, sob a fiscalização do Comitê, se houver, e do administrador judicial, salvo se qualquer deles “agir com dolo, simulação ou fraude contra os interesses de seus credores”.

O artigo 65 do aludido diploma legal afirmar que quando do afastamento do devedor, nas hipóteses previstas no artigo 64, o juiz convocará a assembleia geral de credores para deliberar sobre a nomeação de gestor judicial, que assumirá a administração das atividades do devedor, aplicando-se-lhe, no que couber, todas as normas sobre deveres, impedimentos e remuneração do administrador judicial, estabelecendo o parágrafo 1º do referido artigo, que o administrador judicial exercerá as funções de gestor enquanto a assembleia geral não deliberar sobre a escolha deste.

Portanto, pela leitura do art. 65, §1º, da LFRJ, o próprio administrador judicial pode atuar como gestor judicial, razão pela qual é ele sim parte legítima a representar a devedora no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, possuindo capacidade processual.

Diferentemente do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, outro procedimento que visa a responsabilização dos sócios na falência é o que está estabelecido no artigo 82 da Lei nº 11.101/2005, que possui prazo prescricional de dois anos, contados do trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência.

A principal diferença do incidente de desconsideração para o instituto da responsabilização pessoal dos sócios e administradores, é que neste procedimento, a responsabilidade dos controladores será apurada por meio de ação judicial própria, a ser distribuída para o juízo universal da falência.

Ou seja, em casos como os tais, o sócio ou o administrador da sociedade será condenado a indenizar a massa falida por eventuais atos ilícitos que tenham causado, desde que demonstrado o nexo causal entre o dano e o ilícito imputado ao sócio ou ao administrador, tudo isto a ser apurado por meio de ação judicial que seguirá o rito comum.

Desta feita, ao que se vê, a ação ordinária a que alude o artigo 82 do LRF, constitui meio de responsabilização do sócio no Direito Falimentar brasileiro, não tendo qualquer relação com o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, eis que “a apuração de eventual responsabilidade do sócio de responsabilidade limitada, dos controladores, ou do administrador, deverá (e somente assim poderá) ser fixada com base no direito material da lei societária aplicável; ou seja, no caso de sociedade limitada, os dispositivos correspondentes no Código Civil; e na hipótese de S/A, a Lei 6.404/1976[7].

O mesmo ocorre com a extensão dos efeitos da falência, estampado no artigo 81 da LRF, eis que tal instituto somente é aplicado ao sócio de responsabilidade ilimitada da sociedade, de modo que todo o patrimônio será atingido pelos efeitos estendidos da quebra, o que não ocorre com a desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilização pessoal na falência, pois para estes institutos, a responsabilidade patrimonial é restrita ao valor correspondente ao benefício indevido que resulta para aquele que praticou o ato[8].

O artigo 82-A do Projeto de Lei Substitutivo de nº 6.229/2005, que vista alterar a Lei de Recuperação Judicial e Falências, estabelece que para extensão dos efeitos da falência, o juiz deve aplicar o artigo 50 do Código Civil, que remete aos requisitos ensejadores à desconsideração da personalidade jurídica.

O parágrafo único do artigo 82-A do supramencionado Projeto de Lei, ainda informa que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica poderá ser instaurado de ofício pelo juiz, não se aplicando a suspensão prevista no parágrafo terceiro do artigo 134 do Código de Processo Civil.

Diante de todo o exposto, pode-se notar que há importantes distinções entre os institutos jurídicos que visam a responsabilidade dos sócios na Falência e na Recuperação Judicial, esperando-se que o presente artigo possa auxiliar os operadores do Direito a utilizarem devidamente cada um dos aludidos institutos, com o objetivo de salvaguardar os interesses dos credores previsto no artigo 47 da Lei nº 11.101/2005.

 

Notas e Referências

[1] Na falência e na recuperação judicial, como regra, a desconsideração da personalidade jurídica será formulada por meio de incidente. Entretanto, nada impede que o juízo da execução singular ou o juízo trabalhista decretem a desconsideração da empresa-recuperanda, desde que os bens a serem perseguidos pelo credor singular não atinja o patrimônio da empresa que está em recuperação judicial ou falida. Neste sentido, confira-se o seguinte julgado: STJ - AgInt no CC: 152680 MG 2017/0134803-5, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 11/10/2017, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 17/10/2017.

[2] Quanto aos pressupostos de incidência da desconsideração, tem-se duas categorias: teoria maior e teoria menor. A teoria maior não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade, ou a demonstração de confusão patrimonial. Já para a teoria menor, aplicada ao Direito do Consumidor e ao Direito Ambiental, faz-se mister que ocorra apenas a situação de insolvência da sociedade empresária para que haja afastamento de sua autonomia patrimonial. Nos processos falimentares e na recuperação judicial, será aplicada a teoria maior da desconsideração.

[3] Rubens Requião, ao definir natureza jurídica da desconsideração, ensina que: “A disregard doctrine não visa anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar, no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem. É o caso da declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo, todavia, a mesma incólume para seus outros fins legítimos” REQUIÃO, Rubens. Aspectos Modernos de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 69. No mesmo sentido, preceitua Humberto Theodoro Júnior: “A ineficácia que se pretende ver configurada ao se desconsiderar a personalidade jurídica é a relativa, pois somente ocorre a desconsideração quando o negócio jurídico for ineficaz para determinada pessoa e eficaz para as demais, e deve-se ter em vista também que a ineficácia relativa não se confunde com a anulabilidade, porquanto o ato anulável é dotado de eficácia até o instante em que for desconstituído (com efeitos ex tunc). Na ineficácia relativa, o ato jurídico produz seus efeitos, mas não são efeitos que se produzam perante terceiros, ilimitadamente. O direito estatui a validade do ato, mas sua eficácia subjetiva é delimitada” THEODORO JÚNIOR, Humberto. Negócio Jurídico. Existência. Validade. Eficácia. Vícios. Fraude. Lesão. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 780, outubro, 2000.

[4] O professor Flávio Tartuce entende que, em determinados casos, a desconsideração da personalidade jurídica pode ser decretada até mesmo de ofício pelo juiz. São as palavras do culto jurista: “o presente autor entende que, em alguns casos, de ordem pública, a desconsideração da personalidade jurídica ex officio é possível. Citem-se, de início, as hipóteses envolvendo os consumidores (…) também é viável (…) nos casos de danos ambientais (…). A conclusão deve ser a mesma nas hipóteses envolvendo corrupção, por força da recente Lei 12.846/2013, de interesse coletivo inquestionável” TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil - Volume Único. 7ª ed. São Paulo: Gen, 2017, págs. 192-193.

[5] Sobre a prova da fraude, colhe-se os seguintes ensinamentos do professor Fábio Ulhoa Coelho: [...] deve-se presumir a fraude na manipulação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica se demonstrada a confusão entre os patrimônios dela e de um ou mais de seus integrantes, mas não se deve deixar de desconsiderar a personalidade jurídica, somente porque o demandado demonstrou ser inexistente qualquer tipo de confusão patrimonial, se caracterizada, por outro modo, a fraude. (COELHO. Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 2. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 44-45).

[6] Processo nº 0549539-70.2017.8.13.0024, em trâmite perante à 01ª Vara Empresarial da Comarca de Belo Horizonte/MG.

[7] Paulo Fernando Campos Salles deToledo e Adriana Valéria Pugliesi, in Modesto Carvalhosa (coord.), Tratado de Direito Empresarial, vol. V, 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2018, p. 290-291.

[8] As diferenças entre os institutos da desconsideração, da extensão dos efeitos da falência e da responsabilização pessoal do falido ficaram claras no julgamento realizado pelo TJ-SP no Agravo de Instrumento nº 2138025-95.2019.8.26.0000, Relator: Grava Brazil, Data de Julgamento: 06/12/2019, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 06/12/2019.

 

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