Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz
Em uma entrevista coletiva com o governo da Espanha na última quarta-feira (09/06), o presidente argentino Alberto Fernández fez a seguinte afirmação: "os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros vieram da selva, mas nós, os argentinos, chegamos em barcos. Eram barcos que vinham da Europa”. É curioso pensar que o representante - um nome da esquerda progressista! - de um país que sofreu, assim como o Brasil, um processo de colonização formado por lutas e genocídios dos povos nativos contra os europeus, tenha, ainda hoje, uma postura dependente da validação e reverenda de seus “ex” colonizadores.
Os projetos teóricos pós-coloniais e decoloniais, assim como a lutas pelas descolonização, surgem, justamente, como uma resposta aos mecanismos que teceram meios de impor, tanto epistemológica quanto socioeconomicamente, uma suposta superioridade do Norte Global (aqui representado pelos colonizadores) em oposição a nós, do Sul Global (as colônias exploradas).
Fica explícita, nesse momento, a ideia trabalhada pelo peruano Aníbal Quijano sobre a colonialidade de poder. O teórico, falecido em 2018, afirma que a colonização europeia subalternizou os povos originários da América Latina partindo de uma hierarquização das raças, em que eles, os europeus, seriam seres ideais, e os povos daqui seriam selvagens e incivilizados. Dispensa-se continuidade nesse ponto para demonstrar no que essa categorização racial resultaria na modernidade - os noticiários nos lembram todos os dias das "balas perdidas".
Pois bem, quando nos deparamos com afirmações como a do presidente da Argentina, percebemos que ainda ocorre um fenômeno que a teórica indiana Leela Gandhi chama de "amnésia colonial", ou seja, um certo esquecimento e desdém com as histórias de opressão (e de luta anticolonial) que formaram as nações do mundo.
Revoltante, nesse sentido, lembrar que a afirmação - moderna - do imperialismo partiu do maior representante político do Estado argentino, figura essa que deveria agir opondo-se a qualquer forma de discriminação contra seu povo e seu território. Seria esse pensamento do presidente, então, uma forma neocolonial de apregoar ilusões eurocentradas nos povos latino-americanos? Ou seria uma tentativa de aproximação socioeconômica com as potências “primeiro-mundistas”?
Na contramão desse discurso, o legado colonial vem sendo quebrado e questionado pelos estudos pós-coloniais, pelos feminismos negros e indígenas e por um conjunto de práticas de resistência anticolonial que partem dessa ferida do genocídio colonial para promover independências epistemológicas e políticas. Nesse sentido, a artista portuguesa Grada Kilomba, em uma reportagem para o jornal El País, afirmou, em relação ao desmantelamento das estruturas de poder, que "normalizamos palavras e imagens que nos informam quem pode representar a condição humana e quem não pode. A linguagem também é transporte de violência, por isso precisamos criar novos formatos e narrativas. Essa desobediência poética é descolonizar".
As lutas por reconhecimento e insurgências latino-americanas contribuíram, nas últimas décadas, por buscar formas de emancipação do colonialismo interno (confrontando as branquitudes, por exemplo), ainda presente nos países, e que moldam as formas como as pessoas pensam e se percebem. Se ser brasileiro(a) é ter consciência de onde viemos e de toda a história ancestral dos ameríndios que aqui habitavam - e de tantas outras lutas de resistência -, então viemos mesmo da selva, nosso sangue é latino-americano e nosso norte é o Sul!
Imagem Ilustrativa do Post: brown dirt road between green plants during daytime // Foto de:Isaac Quesada // Sem alterações
Disponível em: brown dirt road between green plants during daytime photo – Free Plant Image on Unsplash
Licença de uso: https://www.pexels.com/creative-commons-images/