BRASIL E ESTADOS UNIDOS: UM IMPEACHMENT CONTRA TEMPOS SOMBRIOS E HOMENS SOMBRIOS   

25/01/2021

Coluna Por Supuesto / Coordenador Pietro Alarcón

Dizia Hannah Arendt que a história conhece períodos de tempos sombrios, em que o âmbito público se obscurece e o mundo se torna tão dúbio que as pessoas deixam de pedir qualquer coisa à política, além de que mostre a devida consideração pelos seus interesses vitais e liberdade pessoal. [1]  As palavras da filósofa reapareceram há alguns dias quando um aluno de graduação indagou abertamente numa conversa informal: o que faz falta para o impeachment do presidente brasileiro?

A origem da conversa era o impeachment de outro presidente, o dos Estados Unidos. De fato, no momento de escrever esta coluna – a primeira deste ano – toma posse na presidência daquele país o Sr. Joe Biden, do partido democrata – vale ressaltar: conforme a Seção II da Emenda XX de 1933 da Constituição - e deixa o cargo o Sr. Donald Trump, depois da condenada invasão de um grupo dos seus apoiadores no Capitólio.  Tendo em vista especialmente este fato, agitado e apoiado abertamente pelo ocupante da cadeira presidencial, na segunda feira 11 de janeiro a bancada do partido democrata no Congresso apresentou pedido de impeachment, é dizer, o presidente foi, antes do fim do seu mandato, acusado de crime de responsabilidade.

Também devo advertir que, de fato, - e a isto exatamente se reportou a indagação do jovem - no momento de escrever esta coluna - como já tem sido noticiado com todas as letras e sinais possíveis - há 61 pedidos de impeachment protocolados contra o presidente brasileiro pelas mais diversas razões, dentre elas, mais recentemente, pela maneira como na qualidade de diretor, com o auxílio dos ministros de Estado, da Administração Pública Federal, não enfrentou a crise sanitária instalada no país por causa do Covid19. O resultado são mais de 214 mil falecimentos.

Na verdade, o abandono dos critérios científicos e a ausência de uma política sanitária, capaz de conter o alastramento do vírus, desembocou no desconhecimento do direito fundamental à saúde e, obviamente, do direito à inviolabilidade da vida humana. Há uma conexão lógica entre os artigos 5º e 196 da Carta da República e um mandamento constitucional expresso, que foi violentado, no artigo 198, que cria o SUS, porque um dos seus vértices – o federal – deixou de coordenar e dar prioridade às atividades preventivas e de atendimento integral à população.  As políticas econômicas e sociais foram ou inexistentes ou insuficientes e não houve, portanto, uma redução do risco da doença, senão seu agravamento.

À gestão desastrada deve ser somado o descaso com relação às recomendações para rapidamente elaborar uma vacina e iniciar uma campanha de vacinação em massa da população brasileira. O Executivo desertou das ações para a “promoção, proteção e recuperação” da saúde dos brasileiros, que são mandamento constitucional.

O presidente não somente fala ou se expressa em tom de deboche, não é isso o que ocasiona o crime de responsabilidade, senão as consequências diretas e nefastas da sua omissão, devidamente enquadrada no artigo 85, III da Constituição Federal e no artigo 7º, numeral 9 da Lei 1079 de 1950.

Voltando aos Estados Unidos, o processo de impeachment, conforme a XXV Emenda de 1967, na seção IV, se origina quando o Vice-Presidente declara por escrito que o Presidente está impossibilitado de exercer os poderes e os deveres de seu cargo. Cabe então ao Congresso decidir,

“(...) reunindo-se dentro de 48 horas com esta finalidade, se não estiver em sessão. Se o Congresso, dentro de 21 dias após ter recebido a última declaração por escrito, ou, se o Congresso não estiver em sessão, dentro de 21 dias após o Congresso ser convocado, decidir por dois terços dos votos de ambas as Casas que o Presidente está impossibilitado de exercer os poderes e os deveres de seu cargo, o Vice-Presidente continuará a exercer os mesmos direitos e deveres como Presidente Interino; em caso contrário, o Presidente reassumirá os poderes e os deveres de seu cargo.

Na situação atual, o processo de impeachment pode concluir inclusive após a posse de Biden para tornar inelegível ao ex-presidente Trump para qualquer cargo. Segundo The Washington Post, o documento enviado ao Senado acusa ao Presidente de: a) engajamento em insurreição ou rebelião. Este argumento é forte e está atrelado à 14ª Emenda, que proíbe expressamente que uma pessoa culpabilizada por tais cargos possam ocupar cargo público; b) fraude eleitoral; c) atentar contra a segurança nacional; d) ameaçar a integridade do sistema democrático; e) interferência na transição pacífica da presidência; f) colocação em perigo da harmonia dos poderes. O conjunto da obra levaria o título de traição á confiança depositada em Trump como presidente dos Estados Unidos. 

Tanto no caso brasileiro como no dos Estados Unidos é necessário mais que um enquadramento jurídico da conduta presidencial. Em ambos isto requer um exercício de interpretação de cláusulas constitucionais e legais. Contudo, a meu juízo, é mais difícil encontrar argumentos jurídicos de defesa dos presidentes que argumentos para sustentar a inelegibilidade de um e a abertura do processo de impeachment em terras brasileiras. Ainda assim, a questão implica outras considerações. Um juízo de conveniência e oportunidade que precisa ser determinado pelo Congresso. Por isso, na análise há que, portanto, delimitar os espaços entre orientação jurídica e ação política. A Câmara dos Deputados brasileira precisa decidir a abertura do processo, admitindo a acusação por dois terços dos seus membros.

Nesta sucessão de expectativas, ocasionam preocupação jurídica e política alguns fatos conjunturais. Por exemplo, as palavras ameaçadoras do presidente, afirmando que no Brasil poderia se repetir no 2022 o que aconteceu neste mês no país do Norte. A relação que constrói entre democracia e forças armadas na qual as últimas seriam as garantidoras da primeira. O Presidente parece abonar o terreno a uma saída de força, na contramão da Constituição.

Igualmente, a errática e inoportuna manifestação do Procurador geral da República, que postula a possibilidade de que o presidente decrete estado de defesa, que nos termos constitucionais inclui o cerceamento de liberdades democráticas, - artigo 136, § 1º, I - ou quando se preparam e abrem inquéritos na Polícia Federal por causa de opiniões emitidas em programas de televisão ou em redes sociais. Há desde logo, causas jurídicas que justificam o impeachment do presidente brasileiro que são anteriores à pandemia e que se originam na sua constante atuação perturbadora da democracia, como quando conclamava o retorno do AI5.  

Trump e Bolsonaro são homens sombrios de tempos sombrios. O que podemos e devemos exigir em tempos tão complicados, como dizia a pensadora alemã, tempos sem luzes sobre a vacinação, atrasados e “parias” no Mundo - para usar a expressão lamentável do ministro das relações exteriores - é que o Congresso comece a agir, em função de interesses vitais e da liberdade, porque se algo caracteriza o presidencialismo contemporâneo é que não pode ser irresponsável, ilimitado, imoral ou absoluto. Me atrevo a dizer que, por supuesto, para o Brasil o impeachment, o canhão de cem toneladas de Lord Bryce, muito bem lembrado pelo saudoso Paulo Bonavides, [2]passou a ser condição para poder avançar a uma nova realidade política e jurídica para o país.   

 

Notas e Referências

[1] Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das letras. 2003. P. 20

[2] Ciência Política. 10ª ed. São Paulo: Malheiros. 1997.  P. 312.    

 

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