Borges e a fantasia ideológica do Mercado

27/04/2015

Por Augusto Jobim do Amaral - 27/04/2015

Mergulhar no universo de Jorge Luis Borges – anjo do bairro de Palermo que se serviu da cegueira como um dom – em seus jogos e truques, onde sonho e realidade se complementam e se suportam, é vacilar permanentemente entre verdade e fantasia.

Ainda que não cite uma única vez a Freud[1], é sobre o sonho que vai aspirar a legitimidade de sua ficção, quase fazendo dele um gênero literário, sobretudo seguindo ao pé da letra o insight shakespeariano de que “somos feitos da matéria dos sonhos”. Abrir polêmicas, levantar questões, às vezes até mesmo confundir: neste terreno aberto por Borges, é que partimos em caminhada.

O conto, como forma privilegiada de narrar, traz consigo uma densidade narrativa peculiar, algo que, em Borges sobremaneira, permite ter o máximo de conteúdo no mínimo de expressão. No seu espetáculo literário, difícil retirar uma frase sem prejudicar o conjunto. De todo conto de Borges, contudo podemos retirar ares de ensaio, principalmente quando da sua estrutura lógica ou matemática. Seus argumentos, em si problematizantes, embalam toda a narrativa literária. Neste livre trânsito de empréstimos que tal reflexão sobre o Mercado repousa, exatamente frente a um autor que poderia ser visto como emblema do século XX[2], não apenas pelo fôlego que propicia à superação dos antagonismos entre criação e crítica, mas, sobretudo, por acreditar sempre no caráter inventivo da teoria e na força teórica da ficção.

Aterrissamos, assim, numa de suas obras primas: El Aleph publicado em 1949. Dentro deste livro precioso, junto ao conjunto de contos, um interessa para o momento em especial: El Zahir. Para muitos, talvez nem seja o mais destacado. De fato, cremos que não, mas sua argúcia e profundidade própria ao tema do Mercado acabam justificando sua ênfase. Por certo, do conto propriamente que dá título ao livro poderíamos nos valer para o mesmo propósito, já que no Aleph[3] se encena um objeto que resume todas as coisas do universo (uma esfera furta-cor de dois ou três centímetros de diâmetro onde está contido todo o espaço cósmico, sem diminuição de tamanho: a ilimitada e pura divindade). Mas paremos pouco antes.[4]

A pequena e profunda história trata do narrador (o próprio Borges) encontrado diante de si com algo de infinita grandeza, apesar de refletir-se numa moeda, o Zahir – moeda comum portenha de vinte centavos. Assim se inicia o conto. Outras formas o objeto toma noutros lugares e tempos: um tigre, um cego, um astrolábio, um pedaço de mármore, o fundo de um poço etc. Mas em certo dia que chega às mãos do narrador Borges o Zahir, um dia depois da morte de seu amor Teodolina Villar, linda mulher que estampava capas de revistas e que “buscava o absoluto no instantâneo”. Ao sair do velório da amada é que Borges, indo tomar uma canha num armazém nos arredores, recebe de troco o Zahir. Esta trajetória apenas ilustra os contornos do que temos de essencial a partir daí. Borges começa a refletir sobre aquele objeto. Dirá:

pensé que no hay moneda que no sea símbolo de las monedas que sin fin resplandecen en la história y la fábula. (...) pensé que nada hay menos material que el dinero, ya que cualquer moneda (una moneda de veinte centavos, digamos) es, en rigor, un repertório de futuros posibles. El dinero es abstracto, repetí, el dinero es tiempo futuro.[5]

Percebe naquele momento de inexplicável importância que toda moeda permite infinitas conotações. Isto começa a atormentá-lo e tenta se desfazer da moeda que o inquietava. Sentimento próximo a este é que nossa inspira nossa presente provocação: a fabulação de um objeto que se tornou pura representação, materialidade quase incorpórea, que assume para si inclusive a possibilidade de futuro, deificação fantasmagórica de uma força que suga tudo o que a ele não se subjuga. O dinheiro, metáfora do fetiche pelo Mercado, não terá assumindo a propriedade de deter a qualidade das coisas mesmas, humanas ou não tornadas intercambiáveis, arrogando-se um papel central na estrutura de significação social?

Borges descobre a raiz da maldição quando encontra um manual de documentos sobre histórias acerca da superstição do Zahir. Descobre neste livro que, além de Zahir em árabe querer dizer “notório, visível”, es uno de los noventa y nueve nombres de Dios; la plebe, en tierras musulmanas, lo dice de «los seres o cosas que tienen la terrible virtud de ser inolvidables y cuya imagem acaba por enlouquecer a la gente». Outro testemunho relatado, o do persa Lutf Ali Azur, diz que havia um astrolábio de cobre num colégio em Shiraz «construido de tal suerte que quien lo miraba una vez no pensaba en otra cosa y así el rey ordenó que lo arrojaran a lo más profundo del mar, para que los hombres no se olvidaran del universo».[6]

Borges escreve que o Zahir é a “sombra da rosa” e a “rasgadura do véu”, fadado aquele que o encontrar a ter a visão absoluta, simultaneamente do verso e reverso. Se a poesia, mais do que privilegiar a criação de novidades ao universo, pode ter a nobre força de recordar algo esquecido, estamos todos tais qual o narrador da história. Frenético homem tentando esquecer a moeda que passou adiante, sem sucesso. Até existem momentos, aparentemente em que isto se dá, noches hubo en que me creí tan seguro de poder olvidarla que voluntariamente la recordaba,[7] parece que se cambia esta idéia fixa, mas em vão.

O Zahir, em resumo, é qualquer objeto que visto uma vez, toma conta da memória e da consciência dos indivíduos que o veem – e os leva depois a uma compreensão absoluta do universo. Mais que o próprio objeto, que assume formas variadas, importa sua realidade de mente absoluta. É este lastro que nos serve a genialidade de sua literatura para questionar, mais por vontade do que por talento, sobre o pensamento único que assola as relações sociais entregues aos ditames de uma ideologia de mercado: como esta fantasia se comporta e se investe de crivo na formação da realidade.

Com Borges a escuta é que ousamos dispor seu conto tal como um espelho sobre nós mesmos, refletir sobre uma instância (mercadológica) enlouquecedora que tenciona engendrar o próprio homem no mundo a partir dela. Sob sua realidade, todo mundo concreto vem selecionado, senão esquecido ou posto como recurso distante. Mercado que, tal como o Zahir, num misto de loucura e santidade, tudo é capaz de (ante)ver, dono da visão total que faz o próprio ser humano esquecer-se de si em razão do olhar operado. Não terá encontrado o homem no Mercado seu Zahir? Será o Mercado, via sua aperfeiçoada atualização neoliberalismo, aquilo que se põe tal como objeto absoluto diante de nós? Seremos crentes todos nós do seu poder de dar conta do mundo? Estará se operando no fantasma da ideologia do Mercado o Zahir que nos faz esquecer o mundo e elaborar a realidade a seu preço? Enfim, não será apenas desde Si que a realidade será, e viver só não fará questão ao homem por Ele?

Assustadoramente presente é a interrogação do escritor em sua escritura. Ainda arrematará Borges, frente ao seu terrível destino ao final, depois de condenado a ter de encontrar e viver o Zahir eternamente: cuando todos los hombres de la tierra piensen, dia y noche, en el Zahir,¿cuál será un sueño y cuál una realidad, la tierra o el Zahir? Borges termina o conto, e com o mesmo anseio encerramos – aludindo, quem sabe, que somente poderemos “gastar El Zahir” à força de (re)pensá-lo, (re)discuti-lo, sem esquecer que quiçá, detrás de la moneda, este Dios.


Notas e Referências: 

* O texto é a parte introdutória revista de trabalho maior já referido em outras colunas nossas do Empório chamado “O Zahir de Borges e a Fantasia Ideológica do Mercado: um Estudo de Antropologia Dogmática”InDireitos Fundamentais, Economia e Estado: reflexões em tempo de crise. MARCELINO Jr., Julio Cesar et. al. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, pp. 37-85.

[1] SOUZA, Eneida Maria de. O século de Borges. 2ª ed.. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 20.

[2] SOUZA, Eneida Maria de. O século de Borges, p. 28.

[3] BORGES, Jorge Luis. El Aleph. Primera edición, revisada, en «Biblioteca de autor»: 1997. Decimocuarta reimpresión: 2008. Madrid: Alianza Editorial, 2008, p. 192.

[4] Sobre os chamados “infinitos discursivos”: conjuntos totais que ao mesmo tempo contêm a si próprios – O Aleph contém a totalidade do universo, que contém O Aleph, que contém o universo... Cf. RIVERA, Tânia. O Infinito Literário In: DITCHUN, Ricardo (ed.). Borges (Entre Clássicos; 10). São Paulo: Duetto Editorial, 2009, pp. 73-77.

[5] BORGES, Jorge Luis. “El Zahir” In: El Aleph, pp. 122-123.

[6] BORGES, Jorge Luis. “El Zahir”, p. 127.

[7] BORGES, Jorge Luis. “El Zahir”, p. 126.


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Augusto Jobim do Amaral é Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS; Professor da Faculdade de Direito da PUCRS.    

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