Por Julia Santi Fischer - 27/01/2017
Aproximando do espectador mais questionamentos do que respostas, o segundo episódio da segunda temporada do seriado Black Mirror traz em sua narrativa situações alusivas à tortura como meio de punição, ao papel da mídia e ao uso indiscriminado da tecnologia, assim como chama a atenção sobre o ponto de vista e comportamento da sociedade, dentro de um senso comum, no que concerne ao crime e aos meios punitivos.
Inicialmente, no enredo do episódio, o espectador se depara com Victoria Skillane acordando amarrada a uma cadeira, sem memória alguma, de frente para uma televisão que expõe um símbolo incomum. Perdida, sem orientação alguma, desesperada, decide sair da casa em busca de ajuda e se depara com uma gama de estranhos, agindo com uma frieza descomunal, munidos de smartphones, filmando-a e a seguindo.
Em seguida, Skillane começa a ser perseguida por um grupo de cidadãos não identificáveis, mascarados, com armamentos e sem remorso de utilizá-los. No decorrer, nenhum dos cidadãos voyeurs toma atitude alguma, apenas continuando o encalço e o registro de tudo que ocorre por meio de seus aparelhos celulares.
Em dado momento, Victoria consegue uma aliada, que transmite a ela informações sobre a suposta situação na qual estão inseridas: todos, exceto por elas e um outro rapaz, estão sob a influência de um sinal, proveniente de um transmissor, e a missão que cabe às duas é desativá-lo. No momento em que ambas ficam próximas de completar sua tarefa, a história gira cento e oitenta graus, revelando ao espectador que quase nada ali é o que parece.
Skillane é uma criminosa, culpada pelo tribunal por agir dolosamente ao raptar uma criança, chamada Jemima Sykes. Essa teria sido morta em razão de tortura realizada pelo namorado de Skillane, Iann Ranoch, que se enforcou em sua cela prisional. Esse ato, de acordo com o noticiário televisivo da UKN, ocorreu buscando se "evitar a justiça". Skillane teria, então, filmado toda a situação que degradara a criança, e, assumira durante o processo que agira daquela forma em razão da pressão e por estar sob um “feitiço” de seu parceiro, discurso esse que não convencera o júri.
É curioso analisar o nome do local onde tudo acontece: em tradução livre, “Parque de Justiça Urso Branco”, que na verdade mais parece um parque temático, de entretenimento. Outro fator interessante é a necessidade do público necessitar pagar para ingressar no parque, e, ao adentrar neste, receber instruções para manter alguns metros de distância, não se comunicar com ninguém, salvo em emergências, além de, descrita pelos orientadores como a mais importante regra, divertir-se.
Nos minutos finais do episódio, assim como no início do mesmo, a imagem de um calendário com dias riscados é apresentada, o que induz o espectador a pensar que esta situação de vivência, trauma e esquecimento se repete de forma diária.
É importante salientar que, apesar dos vários indícios apresentados de que ela, além do marido morto, sejam os únicos responsáveis pelo crime, não há nenhuma outra testemunha que estivera na cena do crime, ou seja, não há ninguém que tenha a ciência do que de fato ocorreu. Após a primeira “lavagem cerebral”, Skillane também não é mais uma fonte confiável de informações, estas que são passadas à população por meio da televisão, certamente abordadas de forma tendenciosa. Isso faz com que a sociedade seja levada a ver o mundo através da perspectiva que interessa a determinados grupos detentores ou ambiciosos por controle e poder; percebe-se então que a mídia transfigura-se em um mecanismo de controle através das imagens e discursos veiculados. De acordo com Deleuze e Guatarri (1995),
os jornais, as notícias, procedem por redundância, pelo fato de nos dizerem o que é "necessário" pensar, reter, esperar, etc. A linguagem não é informativa nem comunicativa, não é comunicação de informação, mas — o que é bastante diferente — transmissão de palavras de ordem, seja de um enunciado a um outro, seja no interior de cada enunciado, uma vez que um enunciado realiza um ato e que o ato se realiza no enunciado.[1]
O episódio não indica se o Parque da Justiça é pertencente ao Estado, mas, considerando que os espectadores precisam investir dinheiro para ter acesso a este e que nele há apenas uma pessoa, o que não é vantajoso do ponto de vista econômico, é mais provável que o Urso Branco seja propriedade de alguma companhia. Essa situação é problemática porque tira do caráter estatal a função leviatânica de punir, ou de remover temporariamente do meio social o indivíduo criminoso, restringindo sua liberdade e, então, de reinserir o indivíduo nessa mesma sociedade, o que remonta à rentabilização do crime e a uma concordância dos entes estatais com tornar as transgressões um espetáculo.
Ademais, a atitude dos consumidores não é tão diferente de Victória, entretanto, diariamente, com a ajuda de uma entidade, esses seres “humanos”, registrando todos os passos da criminosa, levando sua humilhação a níveis extremos, a fazem sofrer muitas vezes mais do que deveria, inclusive porque, numa cena, ela chega a suplicar para que a matem.
A “pena” aparenta ser embasada numa espécie de lei de Talião elevada a expoentes extremos, portanto, desproporcional, até pelo fato da punição não ter como objetivo a retirada da criminosa do meio social, tampouco sua reinserção no mesmo meio; a personagem vira mero brinquedo, forma de entretenimento para outros seres que, por mais que se sintam diferentes, superiores, culminam se tornando seres sádicos, assim como mesma supostamente era.
Dado o exposto, em face dos aspectos observados, entende-se que o episódio explicita a confusão entre justiça e vingança que ocorre nos tempos atuais, onde o cidadão identifica-se como paladino da justiça, agindo de forma descabida, pautada em incertezas e conclusões precipitadas. Essa situação gera um ciclo vicioso e difícil de ser rompido, que denota o gradativo afastamento da sociedade em relação a ideais essenciais para a concretização dos direitos humanos, como o pacifismo e a fraternidade.
Notas e Referências:
[1] DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol 2. São Paulo: Ed. 34, 1995
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. Julia Santi Fischer é acadêmica do Curso de Direito da UNIJUÍ e bolsista de Iniciação Científica no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto. . .
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