Por Henderson Fürst - 03/02/2015
“A bioética é a mais depressiva das especialidades filosóficas. Seus manuais são uma coleção de situações médicas trágicas que geram dilemas sem solução feliz.”[1]
Os primeiros registros da palavra Bioética ocorreram na Alemanha, quando algumas ideias polêmicas já habitavam o imaginário de uma sociedade periclitante – em 1920, por exemplo, foi publicada a bíblia da eugenia[2] e, em 1925, o Mein Kampf[3]. Talvez a Bioética tenha sido cunhada, nessa época, exatamente como reação a tais ideias. Fritz Jahr, pastor protestante, em 1927[4] publicou uma nota editorial na conhecida revista científica Kosmos, Bioética: um panorama da ética e as relações do ser humano com os animais e plantas[5].
De qualquer modo, as circunstâncias não foram nada propícias à divulgação da ideia e apenas em 1971 é que o neologismo se torna mundialmente conhecido com Van Rensselaer Potter em sua obra Bioethics: bridge to the future[6], propondo uma nova disciplina que unificasse duas culturas, a biológica e a humanística, para assegurar o futuro da humanidade. É assim que surge a bioética: uma semente de sequóia que não poderia antever os futuros desdobramentos que teria[7]; um neologismo com profundo significado, mas sem corpo de doutrina[8].
De lá para cá, diversos paradigmas foram criados, seja com fundamento principiológico ou não, como forma de desenvolvimento doutrinário da disciplina que se formou. E, paralelamente a isso, interessado no mesmo suporte fático – que é o questionamento do desenvolvimento científico e biotecnológico perante a vida – o Direito também começou a engatinhar e a doutrina passou a formular o chamado Biodireito.
Se a bioética é um ramo da ética aplicada, com um método que se origina na filosofia moral[9] e objeto que apresenta atividades e descobertas multidisciplinares com abordagens teóricas diferenciadas[10], não me parece que o Biodireito criado por aqui esteja maduro epistemologicamente para responder qual metodologia jurídica traz consigo[11].
Como tudo o que se estuda pouco e se escreve muito no Direito, o Biodireito apresentou todos os efeitos do pamprincipiologismo[12] que o desenvolvimento doutrinário recente manifestou. Ou seja, quando não se criou um princípio[13], pegou-se algum paradigma principiológico da bioética e, sem qualquer discussão acerca do enxerto epistemológico, juridicizou-o e o tornou um novo princípio do Biodireito. Isso quando não pregou o mantra da ponderação!
Mas, qual o problema disso tudo? Num mundo em que o suporte fático demonstra-se cada vez mais complexo, em que diversos ambientes que antes eram restritos a pesquisadores, médicos e pacientes passam a ser abertos aos juristas[14], o Biodireito apresenta poucas respostas que se sustentam a qualquer exame mais aprofundado de coerência, lógica e fundamento jurídico.
Se a afirmação de Schwartsman choca quando diz respeito à Bioética, ela não poderia ser mais oportuna ao Biodireito. E é por isso que iniciamos essa coluna aqui no Empório do Direito: para tratar de Bioética, Biodireito, e outros tantos problemas que perpassam à discussão desses temas!
Henderson Fürst é Doutorando em Direito pela PUC/SP. Mestre em Bioética pelo CUSC. Bacharel em Direito pela UNESP. Editor jurídico e Advogado.
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Notas e Referências:
[1] SCHWARTSMAN, Hélio. Balbúrdia Teológica. Folha de São Paulo. Publicado em 16.08.2014. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2014/08/1501422-balburdia-teologica.shtml
[2] BINDING, Karl; HOCHE, Alfred. Die Freigabe der Vernichtung lebensunwerten Lebens: Ihr Mass und ihre Form. Leipzig: Felix Meiner, 1920.
[3] Consultamos a edição de 1936 que unificou o volume 1, de 1925, e o volume 2, de 1927: HITLER, Adolf. Mein Kampf. München: Franz Eher, 1936.
[4] A primeira vez que o neogolismo Bioética foi publicado, no entanto, foi em 1926, também por Fritz Jahr: Wissenschaft vom Leben und Sittenlehre (Alte Erkenntnis in neuem Gewande). Die Mittelschule. Zeitschrift für das gesamte mittlere Schulwesen. n.40, p. 604-605, 1926
[5] JAHR, Fritz. Bioethik: eine Übersicht der Ethik und der Beziehung des Menschen mit Tieren und Pflanzen. Kosmos: Gesellschaft der Naturfreunde. Stuttgart, Franckh'sche Verlagshandlung, n. 24, p. 2-4, 1927
A proposta de Jahr era que se ampliasse o imperativo categórico kantiano para abranger toda forma de vida, de modo que se respeitasse cada qual com a mesma dignidade que se atribui a si – criando, assim, um “imperativo bioético”. É possível que Jahr só pretendesse propor algo próximo a uma ética ambiental, como também é possível cogitar que, diante do contexto pré-nazista, ele se preocupasse com os caminhos que a ciência tomava, não só aumentando os riscos ao meio ambiente como também reduzindo a dignidade humana.
[6] POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, 1971, p. 4.
[7] PRATA, Henrique Moraes. Enfermidade e infinito: direitos da personalidade do paciente terminal. Tese de doutorado em Direito. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Direito, 2012, p. 151, nota de rodapé 386.
[8] HOSSNE, William Saad; PESSINI, Leo; SIQUEIRA, José Eduardo de; BARCHIFONTAINE; Christian de Paul de. Bioética aos 40 anos: reflexões em tempos de incerteza. Bioethikos, 4 (2), p. 130-143 (139). São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2010.
[9] Cf. BRANZ, Fabio. Scienza medica e diritto, fra dialogo e condivisione. In: CASONATO, Carlo; PICIOCCHI, Cinzia. Biodiritto in dialogo. Padova: CEDAM, 2006, p. 35.
[10] Cf. BENNETT, Rebecca et al. Bioética, genética e ética médica. In: BUNNIN, Nicholas; TSUI-JAMES, E. P. Compêndio de filosofia. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2007, p. 539.
[11] O que dissemos anteriormente acerca da doutrina autoimune do Direito se aplica aqui. O corpo doutrinário de interpretação e construção científica do Direito passa a destruí-lo com fundamentos teórico-argumentativos de reforço recíproco de opiniões, num vicioso círculo hermenêutico. A esse respeito, primeiramente abordamos em Editar em tempos de cólera, na coluna “Salsichas, livros e Direito”. Disponível em: http://www.publishnews.com.br/telas/colunas/detalhes.aspx?id=80277.
[12] Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
[13] Recentemente criticamos esse uso da doutrina no artigo Guia prático da redação jurídica óbvia, publicada em nossa coluna “Salsicha, livros e Direito”, no PublishNews, em 27.11.2014. Disponível em: http://www.publishnews.com.br/telas/colunas/detalhes.aspx?id=79773
[14] A presença de novos atores, como o jurista, no leito do enfermo, que antes era apenas ocupado pelo médico e paciente, é demonstrada em FREITAS, Márcia Araújo Sabino de. Capacidade, transtorno mental e consentimento: as novas fronteiras do discurso médico-jurídico. Dissertação. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Direito, 2012, p. 49.
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Imagem Ilustrativa do Post: Valentine Baby
Foto de Cody, disponível em: https://www.flickr.com/photos/codyr/2308635786/in/photolist-4w1mZh-e3Poet-anyXUs-bnYBvA-9oRyg5-5gwEHt-7ZfA9B-7QiQQP-9YPaih-6NuyiB-gNRJ8-fQu9ej-a7qwXV-6Q9o4H-4QBnz-ow8w7j-fqvhcQ-ctmZy-6afRd9-768ywK-3fiLe3-98WRr6-uqN7V-3U8t4j-5wS7RV-4CnDqd-Dqzja-owFQCU-daVaTm-6SerbY-e2dQD1-7CLEkh-5Lus5L-f69PS-6p4gkN-9KWUUm-8zrK6G-njdwTM-8KGNQ4-7nDmSi-dKRSi-Q55gU-6Mhp4M-gX2E2-7ywDuL-6BQANA-77in8x-3AmPqU-dwgYN1-ae6oSz
Sem alterações
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