Bem-vindos à nova eugenia: o transhumanismo    

29/03/2019

 

Coluna O Direito e A Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

O humano aperfeiçoado, edição gênica, órgãos sintéticos, criogenia, inteligência artificial, fusão homem-máquina. A explosão das tecnologias emergentes NBIC – termo em inglês para nanotecnologia, biotecnologia, tecnologia da informação e ciência cognitiva –, ora reservada aos universos de ficção científica, está efetivamente inserida nos grandes laboratórios de pesquisa.

Simultaneamente, a corrente de pensamento transhumanista apresenta uma filosofia que busca o melhoramento da condição humana através do uso da ciência e tecnologia (NBIC), com o propósito de aumentar a capacidade cognitiva e superar limitações físicas e psicológicas intrínsecas ao ser humano, enquanto proclama a liberdade e acessibilidade na escolha dos recursos pós humanos de modificação. Trata-se da busca pela libertação da própria finitude e de emancipação da menoridade biológica estrutural.

O termo transhumanismo foi difundido pelo biólogo Julian Huxley (1887-1975), em seu ensaio New Bottles for New Wines (1957)[1]. Eugenista desde o período pré-Segunda Guerra Mundial, estava convencido de que manipulação biológica e movimentos reformistas possibilitariam o aprimoramento das condições da classe trabalhadora. Após o Holocausto, o termo eugenia adquire tom pejorativo, o que levou J. Huxley a contornar a situação com o uso de um neologismo[2]. No entanto, o significado contemporâneo do termo transhumanismo foi prenunciado por um dos primeiros professores de futurologia, FM-2030[3], que ensinou os “novos conceitos de humano”, na New School (NY) durante a década de 1960, quando começou a identificar pessoas que adotam tecnologias, estilos de vida e visões de mundo transicionais para a “pós-humanidade” como ditos “transhumanos”[4].

Um dos espectros que ronda as discussões do movimento transhumano trata do processo de eugenia. Que os ditos aperfeiçoamentos da raça humana pela supressão dos mais fracos estariam invariavelmente associados com os crimes cometidos pelo regime nazista. Em sua defesa, o transhumanismo afirma representar uma versão humanista da eugenia, focada no aperfeiçoamento individual de cada ser. Seus defensores advogam por uma visão radical dos direitos humanos, onde cada cidadão é um ser autônomo que pertence somente a si mesmo e deverá decidir sozinho sobre quais modificações deve submeter seu cérebro, DNA e corpo. A mercê das tecnologias NBIC, o ser humano se encontraria em um estado perpétuo de evolução, capaz de aprimorar-se e modificar-se por conta própria cotidianamente. O humano do futuro seria, portanto, sempre uma “versão beta” de si mesmo, em constante update[5].

O debate “ficcional” ganha espaço nos meios de comunicação, a medida que os defensores do aperfeiçoamento humano se organizam institucionalmente. Por exemplo: o Transhumanist Party (Partido Transhumanista) nos Estados Unidos pelo político e futurista, Zoltan Istvan; a Future of Humanity Institute (Instituto do Futuro da Humanidade) da Universidade de Oxford, pelo filósofo Nick Bostrom; e a Singularity University, de Raymond Kurzweil, diretor de engenharia da Google.

Há como antever os resultados dos avanços?

Em apelo aos reflexos literários de nossas previsões, encontramos no gênero da ficção científica – também conhecida como literatura da antecipação – um ramo que lida com a reação dos seres humanos às mudanças tecnocientíficas. Importa ressaltar, que a ficção científica difere fortemente da fantasia. O gênero de fantasia se relaciona com o que a opinião comum considera como impossível (sem explicação lógica); a ficção científica envolve aquilo que a opinião comum considera como possível sob as circunstâncias certas. A essência do mundo de ficção é que este deve distinguir-se do nosso em pelo menos um caminho, que originará eventos que não poderiam ocorrer dentro de nossa sociedade (contanto que o deslocamento seja uma ideia coerente), de modo que o resultado é uma nova sociedade (alternativa)[6].

A partir dessa perspectiva, em 1932, Aldous Huxley publica sua visão alternativa do futuro. O Admirável Mundo Novo denuncia o culto ao “progresso” científico, a repressão e o controle social promovido pelo Estado biototalitário, em um mundo terrivelmente perfeito, onde o prazer está na palma da mão (pílula soma) e cada cidadão é “condicionado” a uma casta social específica.

Há como escaparmos de um admirável mundo tecnológico?

Nas palavras do filósofo Ricardo Bins di Napoli, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos, “entre a fé cega na tecnociência e a sua demonização há um caminho de responsabilidade que deve buscar o controle e regulamentação do seu uso das novas tecnologias. Para isso, precisa-se que filósofos, juristas e cientistas trabalhem juntos, sem, contudo, dissociar-se da sociedade”. Como movimento, o transhumanismo apresenta uma “posição democrática” – ao menos em seu discurso. Portanto, ao invés de falarmos em proibição ou banimento da inovação tecnológica, é melhor que seja devidamente discutida e regulada. E acrescenta: “a sobrevivência da espécie implica, ao mesmo tempo, perceber-se que o homem perdeu a sua centralidade na natureza. Ele também é fruto da evolução”[7].

O aprimoramento científico traz consigo um dilema moral: devemos ou não o levar adiante? Nas vias de um governo democrático, é de imaginar que, em tese, o Estado exerça seu papel como agente regulador na inserção das tecnologias emergentes no meio social, prezando pela segurança, precaução e extensão dos benefícios obtidos a todos os indivíduos – evitando, assim, a armadilha de uma eugenia liberal destinada à minoria.

Embora os debates bioéticos sirvam como instrutores no julgamento e tomada de decisão, “corre-se o risco de dar uma aparência de discurso moral às nossas deliberações, que podem resultar na ilusão de que se está fazendo escolhas éticas dentro dos procedimentos da biomedicina”[8].

A aparência do discurso transhumano traz a sensação de empoderamento (aperfeiçoamento pessoal, maximização da felicidade, erradicação de sofrimentos, etc.), que pode obscurecer a conscientização frente ao impacto das tecnologias emergentes. Posto isso, deve-se, sobretudo, pensar em como nossos valores serão alterados pela influência de novas tecnologias.

Neste êxtase das promessas de emancipação e liberdade, convém recordar que ciência e tecnologia não são neutras ou objetivas, e, muito pelo contrário, mostram valores e interesses comerciais, assim como toda uma lógica de poder, própria de nosso contexto social e temporal[9].

Criaremos um mundo voltado à função social da tecnologia, onde todos terão oportunidades e consciência das próprias capacidades de escolha?

Difícil acreditar.

Não nos deixemos levar pela fantasia.

Deixemos essa para os livros.

 

 

 

Notas e referências:

[1] Conforme “Harrison, Peter & Wolyniak, Joseph. (2015). The History of 'Transhumanism”, a primeira referência a "transhumanismo" aparece em um artigo escrito pelo jurista e filósofo canadense, W.D.Lighthall, "The Law of Cosmic Adaptation: An Interpretation of Recent Thought" (1940). Huxley fez a apropriação do termo e, por mais que sua associação tenha resultado no curso atual do termo, ele não foi seu criador.<https://www.researchgate.net/publication/281298815_The_History_of_'Transhumanism'>.

[2] Alexandre, Laurent & Bernier, Jean-Michel. (2018). Do Robots Make Love?: Transhumanism in 12 questions. Cap.7. Cassell Publisher.

[3] Fereidoun M. Esfandiary, escritor de ficção científica, filósofo transhumanista e professor, mudou legalmente seu nome para FM-2030, buscando enfatizar sua causa transhumanista. Em suas próprias palavras: "Nomes convencionais definem o passado de alguém: ancestralidade, etnia, nacionalidade, religião. Eu não sou quem eu era há 10 anos atrás e certamente não sou quem eu serei daqui a 20 anos. [...] O nome 2030 reflete minha convicção de que a década de 2030 será uma época mágica. Em 2030 não teremos idade e todos terão uma excelente chance de viver para sempre. 2030 é um sonho e objetivo." (referência)

[4] HUGHES, James (2004). Citizen Cyborg: Why Democratic Societies Must Respond to the Redesigned Human of the Future. Westview Press.

[5] Alexandre, Laurent & Bernier, Jean-Michel. (2018). Do Robots Make Love?: Transhumanism in 12 questions. Cap.7. Cassell Publisher.

[6] Definição de ficção científica de acordo com as constatações do autor Philip K. Dick. Retirado do Prefácio de The Collected Stories of Philip K. Dick, vol. 1. Carol Publishing, 1999.

[7] Ricardo Bins di Napoli em entrevista à IHU Online (dez/2010). Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/3694-ricardo-bins-di-napoli-2>. Acesso em 23 de março de 2019.

[8] Ricardo Bins di Napoli em entrevista à IHU Online (dez/2010). Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/3694-ricardo-bins-di-napoli-2>. Acesso em 23 de março de 2019.

[9] ALEGRÍA, Jonathan Piedra. Transhumanismo: um debate filosófico. Praxis. Revista de Filosofia. p.14.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Where will they lead me? // Foto de: Tomasz Baranowski // Sem alterações

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