Bela, recatada e do lar: ainda precisamos refletir (e muito) os papeis de gênero na sociedade

25/04/2016

Por Guilherme Wünsch – 25/04/2016

Na última semana, as redes sociais foram dominadas pela hashtag #belarecatadaedolar como uma resposta à publicação efetuada por uma revista de circulação nacional, que elogiava a esposa do Vice-Presidente da República, considerando ambos como pessoas de sorte: ela, por estar casada com um homem que lhe proporciona finos e caros jantares em restaurantes sofisticados, além de poder ocupar sua rotina com momentos de cuidados de sua beleza; ele, estar casado com uma mulher discreta e que prefere usar vestidos até o joelho. Alguns comentários sobre a notícia e publicações nas redes foram bem colocados; outros, parecem não ter entendido o sentido real desta publicação: o problema não está em ser recatada e do lar. O problema está em considerar que um homem de sorte é aquele que encontra uma mulher deste perfil. Situações como esta demonstram o quanto ainda se precisa estudar e refletir os papeis de gênero na sociedade e compreender o que efetivamente significa falar em feminismo.

Carole Vance considera que as feministas acadêmicas e ativistas implementaram o projeto de repensar o gênero, o que teve um impacto revolucionário sobre as noções do que é natural, de modo que os esforços feministas se concentram em uma revisão crítica das teorias que usavam a reprodução para ligar o gênero com a sexualidade, explicando, dessa forma, a inevitabilidade e a naturalidade da subordinação das mulheres. Neste contexto, a autora afirma que o reexame teórico levou a uma crítica geral do determinismo biológico baseado na biologia das diferenças sexuais, haja vista que a evidência histórica e o cruzamento de várias culturas minaram a noção de que o papel das mulheres pudesse ser determinado por uma sexualidade e reprodução humana aparentemente uniformes. A facilidade com que essas teorias foram aceitas, sugeria que a ciência era regida e mediada por poderosas crenças sobre o gênero, alcançando uma investigação sobre a conexão histórica entre a dominação masculina, a ideologia científica e o desenvolvimento da ciência e da biomedicina ocidentais.[1]

Neste mesmo sentido, reflete Cláudia Fonseca ao entender que questões como a domesticidade da mulher e a competição entre os homens, bem como outras condutas sexuadas, modificaram-se a partir da década de 1970 com a nova geração da teoria feminista, cujas pesquisadoras passaram a desconstruir a mulher eterna, revendo as perspectivas canônicas que concentravam no corpo biológico a chave da verdade feminina.[2]  Assim, para Fonseca, as feministas foram além na desconstrução das bases biológicas da natureza.

Vale destacar o marco temporal enunciado por Fonseca em relação ao desenvolvimento da teoria feminista no Brasil. Segundo Cynthia Andersen Sarti, o feminismo fundou-se na tensão de uma identidade sexual compartilhada, evidenciada na autonomia, mas recortada pela diversidade de mundos sociais e culturais nos quais a mulher se torna mulher; essa diversidade, depois se formulou como identidade de gênero, inscrita na cultura.[3] Eis assim que o feminismo da década de 1970 é ressaltado como uma experiência histórica que enuncia genérica e abstratamente a emancipação feminina, e, ao mesmo tempo, se concretiza dentro de limites e possibilidades, dados pela referência a mulheres em contextos políticos, sociais, culturais e históricos específicos. A eclosão do movimento feminista, embora tenha se dado nos anos 1970, foi ocasionada por fatores que já se observavam desde a década anterior, especialmente pela situação da mulher no Brasil, em um contexto do processo de modernização pela qual passava o país, colocando em xeque a tradicional hierarquia de gênero. O feminismo militante no Brasil, que começou a aparecer nas ruas, dando visibilidade à questão da mulher, surge, naquele momento, como consequência da resistência das mulheres à ditadura e a contestação às relações de poder entre homem e mulher.

Já na década de 1980, o movimento das mulheres no Brasil era uma força política e consolidada, explicitando um discurso feminista em que estavam em jogo as relações de gênero. Neste período, as idéias feministas difundiram-se no cenário social do país, de sorte que grupos feministas alastraram-se pelo país, havendo significativa penetração do movimento em associações profissionais, sindicatos, entre outros, legitimando a mulher como sujeito social particular.[4] Assim, esta década ficou marcada por uma atuação mais técnica e profissional, com o direcionamento para novas demandas, como os direitos reprodutivos, o qual questionou, sob a ótica feminista, a concepção e os usos sociais do corpo feminino em torno das tecnologias reprodutivas.  E, na década de 1990, verificou-se a emergência em torno dos casos de violência contra a mulher, verificando-se ser um mecanismo relacional, com a necessidade de se trabalhar tanto a vítima quanto o agressor, o que contribuiu para mostrar os intrincados problemas nas relações de gênero, afirmando a necessidade de se trabalhar em termos de identidades que se constituem e são constituídas ma partir de referências sociais e culturais específicas.[5]

Assim sendo, refletir a questão de gênero e das mulheres implica esse resgate histórico da diferenciação sexual que ocorria na organização da vida social em diversos contextos, bem como ressaltar a importância não apenas destes estudos, mas da própria concepção destes com a identidade feminina. A concepção de identidade para a teoria feminista compreende, em seu âmago, um algo definido, uma categoria de mulheres que não apenas deflagra os interesses feministas, mas, como diz Butler, constitui o sujeito mesmo em nome de quem a representação política é almejada.[6] Significa dizer que o termo representação almeja uma extensão de visibilidade e legitimidade às mulheres enquanto sujeitos políticos. Neste contexto, o desenvolvimento de uma linguagem capaz de representá-las seria, para a teoria feminista, uma necessidade, com o intuito de promover a visibilidade política das mulheres.

É que este posicionamento enseja o próprio entendimento dos momentos históricos e dos conceitos que formaram a história do feminismo, já que, como afirma Tina Chanter, as teóricas feministas gastaram muita energia ao tentar combater as ideologias tradicionais de gênero e superar as afirmações naturalizantes acerca da inferioridade inata das mulheres em relação aos homens ou da irracionalidade feminina.[7] O feminismo deste novo século torna-se um grande espectro de discursos sobre as relações de poder que são ancoradas nas diferenças, sejam elas de ordem sexual, de gênero, de classe, de geopolítica ou de quaisquer outros vetores.[8]

Questiona Nicholson, então, como interpretar a mulher, e sugere que se pense no sentido de mulher como palavra cujo significado não é apenas encontrado através da elucidação de uma característica específica, mas através de uma complexa rede de características, que exercem um papel dominante dentro de tal rede por longos períodos de tempo.[9] O posicionamento da autora compreende o sentido de mulher como uma espécie de mapa onde semelhanças e diferenças se cruzam e em que o corpo não desaparece, pois, pelo contrário, ele se torna uma variável histórica cuja importância é reconhecida, de diversas formas, em contextos históricos igualmente variáveis.Resulta, assim, que gênero é um algo complexo cuja totalidade, como refere Judith Butler, é permanentemente protelada, jamais plenamente exibida em qualquer conjuntura considerada.[10] E nessa complexida é que se impõe indagar o que significa a identidade e o que ela significa em um discurso de identidade de gênero. Sendo assim, considera-se como o mais urgente e poderoso conjunto de exigências que reconhecem como morais refira-se ao respeito à vida, à integridade, ao bem-estar e mesmo à prosperidade dos outros. Eis assim que para discriminar com maior discernimento o que há nos seres humanos que os torna dignos de respeito, é preciso sentir o sofrimento humano, o que há no assombro que se sente diante do fato da vida humana.

Segundo a teoria de Pierre Bourdieu, que a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa qualquer tipo de justificação, a visão androcêntrica impõe-se como neutrra e não tem a necessidade de ser legitimada por algum discurso. Assim, a ordem social funciona como uma máquina simbólica cuja tendência é ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça, como, por exemplo, a divisão social do trabalho ou os papéis atribuídos a cada um dos gêneros. Ou seja, a concepção da diferença biológica entre os sexos, entre o corpo masculino e o feminino, que justificaria naturalmente as diferenças sociais construídas sobre os gêneros. Por esses argumentos é que Bourdieu vai afirmar que o corpo tem a sua frente, o lugar da diferença sexual, e as suas costas, sexualmente indiferenciadas e potencialmente femininas, ou seja, algo passivo, submisso.[11] A relação entre o masculino e o feminino é, então, uma relação social de dominação, porque constituída através de um princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, porque cria, organiza, expressa e dirige o desejo masculino de posse e o desejo feminino da subordinação, da dominação masculina. Portanto, a visão androcêntrica é continuamente legitimada pelas próprias práticas que ela determina, porque ela é o resultado do preconceito desfavorável contra o feminino, em que as mulheres nada mais fazem do que confirmar tal preconceito, verificado nas práticas sociais em que se delega à mulher as tarefas ingratas e inferiores.

Então, neste espaço, a dominação masculina encontra todas as condições para o seu pleno exercício, porque permanece se baseando na divisão social do trabalho e na reprodução biológica e social, que se vê investida da objetividade do senso comum. Nas palavras de Pierre Bourdieu, as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às relações de poder em que se vêem envolvidas esquemas de pensamento que são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem simbólica.[12]

Butler irá explicar que a norma feminista da sexualidade tornou-se objeto de uma crítica significativa por parte das teóricas feministas da sexualidade, algumas das quais buscaram uma apropriação especificamente feminista de Foucault. Contudo, a noção utópica de uma sexualidade livre dos construtos heterossexuais, uma sexualidade além do sexo, não conseguiu reconhecer as maneiras como as relações de poder continuam construindo a sexualidade das mulheres. Argumenta, destarte, que a sexualidade é sempre construída nos termos do discurso e do poder, entendido este como os termos das convenções heterossexuais. Se a sexualidade é construída culturalmente no interior das relações de poder existentes, então a postulação de uma sexualidade normativa que seja antes, fora ou além do poder constitui uma impossibilidade cultural e um sonho politicamente impraticável, que adia a tarefa concreta e contemporânea de repensar as possibilidades subversivas da sexualidade e da identidade nos próprios termos de poder.[13] E, novamente Butler, entenderá que a autojustificação de uma lei repressiva ou subordinadora quase sempre baseia-se no histórico de como eram as coisas antes do advento da lei, e de como se deu seu surgimento em suja forma presente e necessária. Eis assim que algumas feministas encontraram traços de um futuro utópico no passado pré-jurídico, fonte potencial de toda subversão ou insurreição que encerraria a promessa de conduzir à destruição da lei e afirmação de uma nova ordem.[14]

Dentre os vários posicionamentos que foram publicizados em redes sociais e sites de notícias, chamou a atenção o que a historiadora Mary Del Priore comentou ao considerar que "no século 19, ser dona de casa era uma característica importante, voltar-se para as atividades domésticas, estar ocupada dentro de casa, essa é uma permanência que está presente até hoje. E é óbvio que tivemos rupturas, especialmente na década de 70, com a chegada da pílula anticoncepcional, a inserção da mulher no mercado de trabalho, o que faz determinadas mulheres que participaram dessas rupturas reagirem a esse modelo de permanência.Mas o que eu acho importante insistir é que o Brasil não é o mesmo. O Brasil das capitais, do Rio de Janeiro, de São Paulo, onde você tem o movimento feminista organizado, mulheres em cargos de comando, mulheres formadas pela universidade – ele não é o mesmo do interior. Em muitas localidades brasileiras, sobretudo no interior do Brasil, onde ainda vive 20% da nossa população, adjetivos como esses fazem a diferença e ainda são considerados características importantes para a escolha do cônjuge."[15]

Em suma, a mulher não é vítima de nenhuma fatalidade misteriosa; as singularidades que a especificam tiram sua importância da significação de que se revestem; poderão ser superadas desde que as apreendam dentro de perspectivas novas. A mulher sente e detesta o domínio do homem. É dentro de um mundo dado que cabe ao homem fazer triunfar o reino da liberdade; para alcançar essa suprema vitória é, entre outras coisas, necessário que, para além de suas diferenciações naturais, homens e mulheres afirmem sem equívoco sua fraternidade.[16] Eis a quebra de um conceito de gênero que, a par das teorias feministas, represente a superação de uma perspectiva do senso comum, que considere a associação do feminino à submissão e à fragilidade, fundamentos que sempre justificaram e mascararam preconceitos contra a mulher.


Notas e Referências: 

[1] VANCE, Carole S. A antropologia redescobre a sexualidade: um comentário teórico. In: Physis Revista de saúde coletiva. v.5. n.1, 1995. p.7-29.

[2] FONSECA, Cláudia Lee Williams. Estudos da ciência na ótica feminista. Disponível em: http://www.comciencia.br.  Acesso em: 23 de abril de 2016.

[3] SARTI, Cynthia Andersen. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória. In: Revista de estudos feministas. v.12. maio-agosto 2004. p.35-50.

[4]Idem. Ibidem.

[5] SARTI, Cynthia Andersen. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória. In: Revista de estudos feministas. v.12. maio-agosto 2004. p.35-50.

[6] BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010.p.18.

[7] CHANTER, Tina. Gênero: conceitos-chave em filosofia. Tradução: Vinicius Figueira. Porto Alegre: Artmed, 2011.p.16.

[8] SCHMIDT, Simone Pereira. COSTA, Cláudia de Lima. (org.). Poéticas e políticas feministas. Florianópolis: Editora mulheres, 2004.p.11.

[9] NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. In: Revista de Estudos Feministas. Florianópolis, ano 8, n.2. jul-dez. 2000. p.9-41.

[10] BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010.p.37.

[11] Idem. Ibidem. p.26.

[12] BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução: Maria Helena Kühner. 9.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. p.45.

[13] BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010.p.54-55.

[14] BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato Aguiar. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010.p.64.

[15] Conforme notícia: Crítica a 'bela, recatada e do lar' é intolerante com Brasil 'invisível', diz historiadora. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160418_marydelpriore_entrevista_marcella_temer_np. Acesso em: 23 de abril de 2016.

[16] BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo II: a experiência vivida.  Tradução: Sérgio Milliet. 2.ed. São Paulo: Difusão europeia do livro, 1967. p.495-500.


Guilherme WunschGuilherme Wünsch é formado pelo Centro Universitário Metodista IPA, de Porto Alegre, Mestre em Direito pela Unisinos e Doutorando em Direito pela Unisinos. Durante 5 anos (2010-2015) foi assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Município de Canoas. Atualmente, é advogado do Programa de Práticas Sociojurídicas – PRASJUR, da Unisinos, em São Leopoldo/RS; professor da UNISINOS e professor convidado dos cursos de especialização da UNISINOS, FADERGS, FACOS, FACENSA, IDC e VERBO JURÍDICO.


Imagem Ilustrativa do Post: Woman's Work is Never Done - Damn Dust! // Foto de: Anne Worner // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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