BATALHA DE WINTERFELL: O DIREITO DE EXIGIR CONTAS DE ALIMENTOS NA “GUERRA FAMILIAR”

26/04/2019

Coluna Processo & Família / Coordenadora Fernanda Sell 

Queridos leitores, espero encontra-los bem. É com grande alegria que retorno a coluna PROCESSO & FAMÍLIA no Empório do Direito. Toda sexta-feira discutiremos temas polêmicos e instigantes envolvendo o Processo Civil e/ou o Direito de Família.

Para retomarmos os trabalhos, trarei uma velha discussão que foi reacesa pelo STJ em julgado publicado em março deste ano. O tema da possibilidade jurídica de exigir contas da verba alimentar sempre foi tema de grande debate. Há anos que, ao lecionar esta matéria para meus alunos de Procedimentos Especiais, a discussão toma grandes proporções.

A questão é simples: o alimentante pode exigir que aquele que administra os alimentos ofertados preste contas do destino desta verba?

O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no  REsp 1637378⁄DF, manteve antigo entendimento do Superior Tribunal, nos seguintes termos:

RECURSO  ESPECIAL.  DIREITO DE FAMÍLIA. ALIMENTOS. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE  CONTAS.  DEVEDOR.  AUSÊNCIA  DE  INTERESSE  DE  AGIR.  CRÉDITO. INEXISTÊNCIA.  ADMINISTRAÇÃO.  VALORES.  GUARDA.  EXCLUSIVIDADE. IRREPETIBILIDADE. UTILIDADE. AUSÊNCIA.

Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).  2.  A ação  de  prestação  de contas tem a finalidade de declarar a existência de um crédito ou débito entre as partes. 3.  Nas obrigações alimentares, não há saldo a ser apurado em favor do alimentante, porquanto, cumprida a obrigação, não há repetição de valores. 4.  A  ação  de  prestação de contas proposta pelo alimentante é via inadequada  para  fiscalização  do  uso  de recursos transmitidos ao alimentando  por  não  gerar  crédito em seu favor e não representar utilidade jurídica. 5. O alimentante não possui interesse processual em  exigir  contas da detentora da guarda do alimentando porque, uma vez  cumprida a obrigação, a verba não mais compõe o seu patrimônio, remanescendo  a  possibilidade de discussão do montante em juízo com ampla instrução probatória. 6. Recurso especial não provido.

Como visto, em síntese, sustentou-se que o alimentante não pode exigir a prestação de contas pelo fato de, uma vez constatado o desvio da verba alimentar, não ser possível a devolução dos valores pagos, já que o princípio da irrepetibilidade impossibilita a devolução dos alimentos.

Para aqueles que desconhecem o procedimento de exigir contas, explico:

A ação de exigir contas desenvolve-se em duas fases. Na primeira, será proposta por pessoa que possui seu patrimônio administrado por outra (esta última terá legitimidade passiva na ação), ou seja, “fulano” pode ingressar com ação de exigir contas para que “ciclano” demonstre a administração do patrimônio de “fulano”. A ação tem por objetivo a garantia de direitos do autor da ação e, não o intuito de fomentar a curiosidade sobre a administração financeira alheia. O réu, então, será citado para, no prazo de 15 dias, prestar contas ou contestar. Caso ele conteste o dever de prestar contas, o juiz irá, nesta primeira fase, analisar a necessidade ou não da prestação de contas. Sendo decidida favoravelmente esta fase, o juiz determinará que o réu apresente no prazo de 15 dias, sob pena de lhe ser defeso impugnar as contas apresentadas pelo autor. Nesta segunda fase, o juiz analisará as contas apresentadas e, verificará a existência de crédito ou débito que constituirá em título executivo judicial para posterior cumprimento.

Com base neste procedimento, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento pela impossibilidade de prestação de contas de alimentos. Ou seja, o fato de ser constatado débito coberto pelo manto da irrepetibilidade macularia o procedimento pela falta de utilidade do provimento jurisdicional.

Equivocado entendimento o adotado pelo STJ!!!

É evidente a impossibilidade de em ação de exigir contas o alimentante ver-se ressarcido de valores pagos “a mais”. Contudo, tal circunstância não pode afastar o direito daquele que oferta alimentos em fiscalizar a destinação da verba.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao contrário do que julgara o STJ, já apoiava a possibilidade jurídica da prestação de contas da verba alimentar:

Entendimento diverso é manifestamente inconstitucional por violar o direito de acesso à jurisdição, na exata medida em que o alimentante haveria de ficar impossibilitado de fiscalizar a pessoa responsável pela administração da verba alimentar no que concerne ao seu adequado destino. Nessa linha, afigura-se inconteste o direito do pai que presta alimentos aos filhos de acompanhar e fiscalizar a correta utilização dos alimentos prestados, donde exsurge o seu direito de pedir prestação de contas daquele que administra os alimentos da prole. (Apelação Cível n. 2007.010023-9, da Capital, Relator Desembargador Joel Dias Figueira Junior, decisão em 13 de novembro de 2007.)

A possibilidade de prestação de contas de alimentos ficou ainda mais evidente com a lei 13.058, de dezembro de 2014, que trouxe modificações substanciais em matéria de guarda. Uma dessas alterações diz respeito à introdução do § 5º no art. 1.583 do CC, com a seguinte dicção: "a guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos". A supervisão e prestação de contas, sem dúvidas, também está relacionada aos alimentos.

Vale lembrar que a fixação da guarda compartilhada (ou alternada) não gera, por si só, a extinção da obrigação alimentar em relação aos filhos, devendo a fixação dos alimentos sempre ser analisada de acordo com o binômio ou trinômio alimentar.

Além disso, quanto à prestação das contas alimentares, passa ela a ser plenamente possível, afastando-se os argumentos processuais anteriores em contrário, especialmente a ilegitimidade ativa e a ausência de interesse processual. Igualmente, não deve mais prosperar a premissa da irrepetibilidade como corolário da inviabilidade dessa prestação de contas.[1]

Importantíssima é a ponderação do Professor Rolf Madaleno: "sabido quão fértil se presta o Direito de Família para a prática do abuso do direito, vedado pela legislação civil (CC, art. 187), inclusive no instituto dos alimentos, quando os filhos são prejudicados pelos desvios ou pela má gestão do seu crédito alimentar, e se existe a intenção de prejudicar, pelo exercício abusivo do genitor administrador da pensão dos filhos, atenta este ascendente contra os interesses superiores das crianças e dos adolescentes, ao encontrar no desvio dos recursos da prole um meio propício às suas vantagens pessoais, e a prestação de contas exigida pelo alimentante não destituído do poder familiar é a grande reserva a favor dos interesses superiores do alimentante. Mas também pode existir abuso por parte do devedor de alimentos ao encontrar na prestação de contas uma maneira de incomodar o ex-cônjuge com reiteradas admoestações processuais, por suspeitas inconsistentes de malversação dos alimentos, devendo ser bem dosada a rendição das contas, cuja solução também pode passar por uma demanda alternativa de inspeção judicial, realizada por assistentes sociais em visita à residência do alimentando, e sua escola, escutando outros familiares, amigos e vizinhos, até onde for possível e discreto, para apurar e avaliar a realidade e dimensão da pretensão processual de rendição de contas, correndo os custos desta diligência pela parte devedora”.[2]

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, novamente de maneira acertada, decidiu em fevereiro deste ano:

   APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. VERBA ALIMENTÍCIA. EXTINÇÃO. AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. RECURSO DO AUTOR.   VIABILIDADE DO GENITOR NÃO GUARDIÃO EM FISCALIZAR O EMPREGO DA VERBA ALIMENTAR. ART. 1.583, DO CÓDIGO CIVIL. POSSIBILIDADE JÚRIDICA DO PEDIDO. INTERESSE PROCESSUAL DEMONSTRADO. SENTENÇA REFORMADA.    ALIMENTOS IN NATURA. IMPOSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO NESTA INSTÂNCIA. AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO DO JUÍZO A QUO.    RECURSO CONHECIDO EM PARTE E, NESTA, PROVIDO. (TJSC, Apelação Cível n. 0300243-75.2018.8.24.0039, de Lages, rel. Des. Ricardo Fontes, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 12-02-2019).

 

Enfim, apesar da Lei 13.058/14 ter firmado entendimento sobre a possibilidade de o alimentante fiscalizar a destinação da verba alimentar, o Superior Tribunal de Justiça insiste em manter posição ultrapassada.

Ressalto, o que se busca não é o incentivo ao litígio, mas sim a garantia do direito dos incapazes alimentados que, em muitas vezes, são “encurralados” em campo de guerra emocional (e até econômico). E nessa grande guerra não há vencedor. Todos serão feridos.

Até a próxima semana!

 

Notas e Referências

[1] TARTUCE, Flávio. Da ação de prestação de contas de alimentos. Breve análise a partir da lei 13.058/14 e do novo CPC. Disponível em: http://migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI222327,11049-Da+acao+de+prestacao+de+contas+de+alimentos+Breve+analise+a+partir+da

[2] MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2010, p. 899-900.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Architecture // Foto de: Maria Eklind // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mariaeklind/17082601199

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura