Balthazar e Carlos: Quando a ficção se confunde com a realidade

29/05/2024

1- A ficção:

BALTHAZAR é o nome de um dos quatro protagonistas interpretado pelo ator JUAN PAIVA na excelente série brasileira Justiça 2 de Manuela Dias em exibição na Globoplay.

Em 2016 na cidade de Ceilândia, BALTHAZAR, jovem, negro, cheio de sonhos que trabalhava como motoboy no restaurante Canto do Bode é parado em uma blitz e revistado por policiais que apesar de nada encontrarem em poder do jovem tiram uma foto dele sem dar qualquer satisfação.

Após enfrentar inúmeros problemas financeiros, BALTHAZAR tem negado seus direitos pela demissão e, posteriormente, acaba sendo acusado pela filha e pelo genro do dono do Canto do Bode de ter participado de um assalto ao restaurante. Na delegacia o jovem negro BALTHAZAR é identificado pela foto que havia sido tirada anteriormente o que acabou levando o mesmo a ser condenado pelo roubo e por um homicídio que também não cometeu. BALTHAZAR somente é colocado em liberdade após ficar sete anos preso.

 

2- A realidade:

Em recente decisão o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou a condenação do jardineiro CARLOS EDMILSON DA SILVA, condenado a 137 anos, 9 meses e 28 dias de prisão em regime fechado por uma série de crimes de estupros após permanecer preso por longos 12 anos.

Preso em 10 de março de 2012 CARLOS EDMILSON, homem negro, foi reconhecido por meio de uma foto como responsável por estuprar 10 mulheres em Barueri e em Osasco, na região metropolitana de São Paulo.

O jardineiro CARLOS EDMILSON só obteve a anulação de suas condenações após exames de DNA do Instituto de Criminalística da Polícia Técnico-Científica comprovarem a sua inocência.

Necessário ressaltar que a anulação ocorreu devido a atuação e o auxílio prestado pelo extraordinário instituto Innocence Project Brasil, uma ONG criada para prestar serviços gratuitos as vítimas de erro judiciais.

A combativa e brilhante advogada FLAVIA RAHAL, diretora e fundadora do Innocence Project Brasil, em entrevista ao UOL reiterou que “as vítimas não mentiram sobre os abusos sofridos, mas destaca que elas foram levadas a acreditar que CARLOS EDMILSON foi o responsável por violenta-las apenas por uma foto e induzidas pela investigação de se tratar de uma pessoa que já estava sendo reconhecida em outros casos analisados pela polícia”.

 

3- Do reconhecimento fotográfico:

Aqui, poderíamos nos referir as falhas humanas e aos erros judiciários que decorrem da realização do reconhecimento fotográfico, bem como da necessidade de seguir, rigorosamente, as regras previstas nos artigos 226 e s. do Código de Processo Penal[1], tanto na fase pré-processual como também processual.

Poderíamos salientar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2023, das 377 decisões tomadas pelo Tribunal que revogaram a prisão temporária ou absolveram réus devido a falhas no seu reconhecimento como autores de crimes, 281 (74,6%) dos casos, tiveram como fundamento a existência de erros na identificação por meio de fotografias.

Poderíamos, também, na esteira do que ensina o processualista AURY LOPES JR. sustentar que o reconhecimento ao qual se refere os artigos 226 e s. do CPP, “trata-se de uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa de que – em matéria processual penal – forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais”.[2]

Poderíamos, ainda, nos insurgir contra uma manifestação nitidamente racista de um membro do Ministério Público de São Paulo numa das ações penais contra Carlos Edmilson afirmou que “o argumento baseado no tipo físico e no rosto comum do acusado é totalmente insubsistente já que o que mais existe nesse país são condenações de estupradores e ladrões com tipo físico e rosto comum. Com efeito, poucas devem ser as vítimas estupradas pelos sósias do Brad Pit, do Daniel Craig e do George Cloney”.

Contudo, concluímos com a frase dita pelo personagem BALTHAZAR, quando vai receber o dinheiro da indenização pelos sete anos que ficou preso sendo inocente, que diz muito sobre a “justiça”. Disse BALTHAZAR: “O sistema errou comigo porque sou preto e pobre”.

 

Belo Horizonte, 24 de maio de 2024.

 

Notas e referências

[1] Artigo 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I- a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

II- a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a aponta-la;

III- se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV- do ato do reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder o reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

[2] Lopes Jr. Aury. Direito processual penal. 13ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2016, p. 506.

 

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