Aylan Kurdi e a insensatez silenciosa do discurso dos direitos humanos nos países centrais

08/09/2015

Por Germano Schwartz - 08/09/2015

Minha irmãzinha vai ter uma filha. A Uda, magistrada no estado do Rio Grande do Sul, será a mãe da Marina. Imagino que o Juliano Fava, o pai, saiba o porquê do nome. Todas as minhas irmãs, com certeza, sentem-se emocionadas, pois a Eva, primeira parte do nome composto da pessoa que a Uda perpetuou a lembrança no tempo, assim como faziam vários povos indígenas cujas crenças diziam que uma pessoa se tornava imortal toda vez que seu nome fosse pronunciado pela eternidade, foi alguém muito querida pelos Doederlein e pelos Schwartz. Para a minha irmãzinha, uma avó (era assim que ela a chamava); para mim, uma mãe. Uma mãe negra. Sim. Tive duas mães. E quando a Eva partiu, eu senti a dor de perder uma delas. A Maria Regina ainda vive e, egoisticamente, quero-a junto a mim o máximo de tempo possível. Não desejo sentir aquela dor novamente. Imagino que somente a perda de um filho possa ser um sofrimento maior.

Poucas cenas, de outro lado, chocaram-me tanto quanto a foto do menino Aylan Kurdi, morto, em uma praia da Turquia. Eu não a reproduzo aqui porque não tenho olhos para esse tipo de imagem. Eu a vi apenas uma vez em meu Facebook. Não queria acreditar. Imaginei que fosse uma pegadinha, daquelas em que a criança se levantaria logo e daria um susto naquele soldado que a recolhia. Ledo engano. Mórbido erro. De quem?

Sempre adorei geopolítica. Não sei qual a razão. Mas adoro estudá-la, em especial no âmbito internacional. Acaso, hoje, eu estivesse em época de vestibular, certamente escolheria o curso de Relações Internacionais para seguir carreira profissional no futuro. E, nesse cenário, com certeza, meu foco seria no discurso dos direitos humanos entre países periféricos e centrais. Impressiona-me o subjetivismo em tais falas a partir da posição central ou periférica de determinada nação. Seja com Luhmann, seja com Boaventura, constata-se a existência de diferenças nessa seara. Nem uma e nem outra é a melhor. São unidades de diferença (Luhmann).

Impressiona-me, por exemplo, o discurso de defesa dos direitos humanos feitos pelos USA quando da invasão do Iraque ou do Afeganistão. Uma retórica inconsistente que se esvai toda a vez em que se percebe, com facilidade, que os interesses americanos em favor dos direitos humanos estão ligados, de uma maneira ou de outra, ao petróleo.

Mas nossos irmãos de continente não estão isolados. Os europeus agem da mesma maneira e os resultados ficaram simbolizados na foto do menino Aylan. Acaso fosse a Síria um país abençoado pelo petróleo, tenho certeza (porque a história assim conta) de que o fenômeno migratório que passa pela Hungria, pela Macedônia, entre outros, não estaria a ocorrer.

Em ambos os lados, o fato é que a Síria está sob a órbita da esfera russa. Os europeus jamais contrariarão a Mother Russia (vide o caso recente da Ucrânia), pois Putin (ou qualquer outro que esteja no poder) pode, a qualquer momento, fechar a torneira do gás ou do petróleo para a Europa; os americanos, por seu turno, têm muito a perder contra um exército, que, ao fim e ao cabo, foi aquele que jamais foi dominado (que o digam Napoleão e Hitler), ainda mais, quando, como nos tempos atuais, Rússia e China realinham interesses em comum. Juntando o número de militares nesses dois países, há mais soldados do que as forças armadas inteiras dos USA.

E a questão da justiça enquanto direitos humanos como uma generalização congruente do sistema jurídico nesse contexto? Bom, como se pode ver, não há generalização e, muito menos, congruência (palavra preferida da Renata Almeida da Costa) na questão. Nesse ponto, há de se concordar com Boaventura de Souza Santos. É preciso sair daquilo que Luhmann denominou de pensamento da Velha Europa e abraçar uma epistemologia do Sul como defende o autor de Coimbra.

É necessário, nessa toada, no mínimo, levar em consideração as alternativas produzidas por nações historicamente colonizadas (periféricas - Brasil) ou dominadas (Síria), inclusive na questão dos direitos humanos, que, bem ou mal, é uma ideia ocidental e cêntrica. Policontexturalidade (Teubner) é a alternativa para uma sociedade global.

Do modo como se encontra, o discurso retórico dos direitos humanos pratica uma seletividade forçada que, de modo algum, reduz complexidade; ao contrário, incrementa a desigualdade, algo que, por conseguinte, traz maior complexidade. É por isso que os europeus restam “surpreendidos” com os imigrantes que lhes batem à porta. A Alemanha prevê receber mais de 800.000 deles, mas o consenso geral é o de que trazer todos esses sírios para o seio da Europa a aniquilaria. Daí as cenas dos corpos no mar.

Interessante, nesse sentido, ver o que se passa na cabeça dos jovens sírios. Uma alternativa, como desde sempre defendo, é procurar esse sentimento na arte, como Warat dizia muito antes de mim, pois ela antecipa o que o Direito, após, vai se interessar. Uma janela para o futuro. A Khebez Dawle, em Aayesh, canta: “você ainda está vivo, sob o cerco?

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Não, Aylan Kurdi não está mais vivo!

Para ser justo, há povos, contudo, que surpreendem. Os islandeses rechaçaram a política de seus governo de receber somente cinquenta sírios. Em comovente vídeo, dez mil cidadãos da Islândia mostram que possuem espaço em suas casa para receberem os refugiados. Segundo eles, essas pessoas poderiam ser suas futuras esposas, seus filhos ou seus queridos amigos. O vídeo em questão está forçando o governo daquele país a mudar sua política.

Retornando ao primeiro parágrafo dessa coluna. A Uda havia publicado, em seu ativo timeline  do Facebook, uma homenagem à Marina. Era a música Silence Lucidity, do Queenryche. Eu fico pensando na felicidade da Marina em ter uma mãe brilhante e um futuro idem. Ao mesmo tempo, todavia, não consigo imaginar o sofrimento do pai do Aylan e, também por isso, infelizmente, é de me cortar a alma a foto de seu afogamento. E tudo isso por causa de uma insensatez silenciosa no discurso dos direitos humanos.

Aylan, copiando a Uda, segue minha homenagem a você - vinda de alguém que viu sua foto e pensou imediatamente em sua filha - e um enorme pedido de desculpas a seu pai pela construção hegemônica de nossa sociedade; culpa, sim, de gerações de juristas que, ao invés de lutar pela justiça, aliam-se ao Poder em escusas intermináveis – e retóricas – de uma ciência desgraçadamente alopoiética e insuficientemente diferenciada (Direito).

Agora fique em silêncio, e não chore

Enxugue a lágrima do seu olho

Você está a salvo, deitado na cama

Foi tudo um sonho ruim

Rondando a tua cabeça

Sua mente te enganou para lhe fazer sentir a dor

De alguém próximo a você, abandonando o jogo da vida

Então aqui está uma outra chance:

Bem desperta, você encara o dia...

Seu sonho terminou... Ou ele apenas começou?

 

Eu estarei cuidando de você

Irei te amparar até o fim

Irei te proteger durante a noite

Estou sorrindo perto de ti, numa silenciosa lucidez

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Germano

Germano Schwartz é Diretor Executivo Acadêmico da Escola de Direito das FMU e Coordenador do Mestrado em Direito do Unilasalle. Bolsista Nível 2 em Produtividade e Pesquisa do CNPq. Secretário do Research Committee on Sociology of Law da International Sociological Association. Vice-Presidente da World Complexity Science Academy.      

Publica na coluna semanal DIREITO E ROCK no Empório do Direito, às terças-feiras.      


Imagem ilustrativa do post: Sem título // Sem alterações

Disponível em: http://www.jyjoo.com/coloriages/coloriages-prenoms/aylan

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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