Por Maurilio Casas Maia – 30/04/2016
Segue pendente de julgamento a ADI nº. 5296, tratando da autonomia da Defensoria Pública da União (DPU). Assim – em um cenário no qual grande parte da doutrina (lamentavelmente) desconhece o histórico e origem defensorial no Brasil –, talvez não exista momento mais oportuno para expor dois motivos para a constitucionalidade da autonomia atual do “Estado Defensor”: (I) Uma promessa Constituinte e (II) a origem remota da instituição no Brasil. Em verdade, são dois motivos, dentre tantos outros, demonstrativos da singularidade da Defensoria Pública para fins de concessão da autonomia no singular Sistema de Justiça Brasileiro (SJB), conforme se deixará registrado ao fim.
Nesse contexto, relembra-se que somente 3 (três) carreiras do Sistema de Justiça – nacionalizadas e interiorizadas –, receberam a inamovibilidade diretamente do constituinte originário: juízes, membros do Ministério Público e defensores públicos. Somente as três. Isso corresponde a uma possível tendência inclusiva (já na redação originária do texto constitucional) da Defensoria em uma nova onda renovatória do acesso à Justiça (para maiores detalhes vide o excelente trabalho de Luiz Felipe Siegert Schuch), cujo objetivo é conferir autonomia (funcional, administrativa e financeira) à Instituição Julgadora e às Instituições postulantes de interesses múltiplos inseridos na sociedade, de maneira independente do Executivo e Legislativo.
Convém sobrelevar que a Constituição, de certo modo, sempre impôs como “composição mínima do Sistema de Justiça da Comarca” a presença de um juiz, um promotor e um defensor público. Tal conclusão se extrai de plano na leitura da redação constitucional original do inciso VII[1] do art. 235 da CRFB/88 – interpretação essa explicitada por meio da EC n. 80/2014 (ADCT, art. 98, § 1º[2]).
Porém, a inamovibilidade e a composição mínima do Sistema de Justiça da Comarca, não são os únicos indícios de tendência à autonomia do “Estado Defensor” já na redação originária – há outros elementos probatórios desse fato, e são mais fortes.
Uma Promessa Constituinte
Em uma das reuniões da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), o constituinte Nelson Carneiro (em 14/9/1987), já alertava para a necessidade de uma Defensoria Pública autônoma através do denominado “Projeto Bernardo Cabral”: "Projeto Bernardo Cabral (...) proclama a necessidade da Defensoria Pública como órgão autônomo dentro do corpo do Poder Judiciário (...)".
Ocorre que a referida autonomia – tanto para o Ministério Público, quanto para a Defensoria Pública –, foi encarada com certo nível de desconfiança pelos membros da ANC. Nesse contexto, a autonomia para a Defensoria Pública não se concretizou já em 1988 por receio. Porém, a autonomia defensorial sagrou-se em uma “promessa do constituinte”. Agregou Plínio de Arruda Sampaio durante a Constituinte Brasileira: “Se amanhã ela se mostrar realmente fundamental e necessária, apresentaremos emenda constitucional nesse sentido.”
Tratava-se ali do receio de se criar concomitantemente duas novidades no modelo de organização estatal: Ministério Público e Defensoria Pública, enquanto entes autônomos. Com efeito, garantiu-se a inamovibilidade aos defensores públicos e remeteu-se ao futuro os debates sobre outras garantias similares a MP/Judicatura (tais como vitaliciedade e a autonomia), por receio (repita-se) de se exagerar em inovação. Semente e promessa lançada.
Perceptivelmente, a tutela dos interesses dos necessitados incomoda. E incomoda não somente em sua atividade-fim, como também na luta por uma carreira forte e que possa atrair e manter juristas de qualidade para a defesa isonômica dos necessitados. A recente propositura de ADI’s no STF contra a legitimidade coletiva, a autonomia e independência da capacidade postulatória dos agentes da Defensoria Pública, ao lado dos geralmente ínfimos investimentos em Defensoria Pública nos estados, demonstram claramente que os “tempos futuros” citados por Plínio Arruda Sampaio chegaram e são presentes.
Em parte, a promessa de autonomia se efetivou a partir da EC n. 45/2004 e fortificou-se com a edição da EC n. 80/2014. Aliás, o constituinte Bernardo Cabral (então Senador e primeiro relator da Reforma do Judiciário, em parecer) – desta vez não mais sobre o texto originário da Constituição, mas sobre a autonomia conferida pela EC n. 45/2004 –, pronunciou-se sobre a necessidade de autonomia: “A atribuição da autonomia funcional e administrativa às Defensorias Públicas, e o poder de iniciativa de sua proposta orçamentária, conferirá a essas instituições uma importante desvinculação do Poder Executivo, com o qual não guardam qualquer relação de afinidade institucional, além de propiciar um fortalecimento da instituição e da conseqüente atuação institucional”.
Autonomia do “Estado Defensor”: um débito histórico quitado
Em avanço da temática, outro ponto (infelizmente) desconhecido até mesmo pelos estudiosos do Direito Constitucional no Brasil é a origem da Defensoria Pública nacionalizada e interiorizada no Brasil: Um órgão de Procuradoria de Justiça via Defesa Pública. Com efeito, o primeiro enfoque para começar a entender melhor o citado debate é histórico.
Embora em São Paulo, por exemplo, a origem da Defensoria Pública seja dentro(!) da Advocacia Pública (PGE/SP), onde fora aglutinada duas carreiras constitucionalmente distintas do art. 132 e 134 da Constituição – modelo paulista esse repelido pelo Constituinte por causar notória situação de risco aos interesses defendidos e patrocinados pelo “Estado Defensor” –, a Defensoria Pública nacionalizada e interiorizada foi pensada a partir do modelo do antigo estado do Rio de Janeiro (e não do antigo estado do Guanabara, ressalte-se). Ou seja, a Defensoria Pública incorporada à Constituição foi pensada como órgão de PGJ (Procuradoria Geral de Justiça). Sim. Curioso, não? Mas é essa a origem e é a partir dela que tal função estatal deve ser lida e interpretada.
No século passado, nas origens da carreira de defensor público que repercutiu na CRFB/88, promotores de Justiça e defensores públicos integravam a mesma Procuradoria de Justiça (PGJ), cada um procurando Justiça por via do seu respectivo ofício (acusação pública ou defesa pública).
A intenção já anunciada de conferir autonomia à Defensoria Pública colocou-a em ladear constitucional isonômico (e harmônico) com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), mas sempre em dispositivos constitucionais distintos (art. 133 e art. 134, CRFB/88). Tal situação de harmonia e isonomia permanece, mesmo após a edição da EC n. 80/2014 – a qual, porém, reforçou a autonomia do Estado Defensor.
É impositivo repensar a autonomia e funções da Defensoria Pública à luz de tais importantes dados históricos, isso tudo sem qualquer necessidade de conflitar com indispensabilidade da advocacia (art. 133, CRFB/88) e a essencialidade ministerial (art. 127, CRFB/88). Aliás, exatamente nesse contexto Luigi Ferrajoli pensou na verdadeira amplitude e essencialidade do defensor público ao Sistema de Justiça (“SJ”) e o fez de modo a compatibilizar seu papel com as demais figuras do “SJ” – esse, porém, será o tema de mais um novo texto em breve.
Breves notas conclusivas
Enfim, claramente, não pode restar qualquer resquício de dúvida no sentido de que a autonomia do Estado Defensor é – além de uma promessa constituinte originária –, um resgate e um reencontro com origem do modelo defensorial adotado em 1988 – um verdadeiro débito histórico quitado –, caracterizando legítima busca de Justiça Estatal via defesa pública.
Ao remate, trata-se de conferir tutela jurídica à autonomia para quem postula na defesa da Justiça Social em um cenário não necessariamente favorável aos demais tentáculos do Estado – sejam estes executivos, legislativos, judiciários, ministeriais etc –, e ao Poder Econômico.
Trata-se, ao fim e ao cabo, de garantir a oitiva da voz dos necessitados e a independência defensorial para um debate democrático nos mais variados campos sociais “com”, “apesar” e mesmo na “omissão” da ordem jurídica.
Notas e Referências:
[1] CRFB/88, Art. 235. Nos dez primeiros anos da criação de Estado, serão observadas as seguintes normas básicas: (...) VII - em cada Comarca, o primeiro Juiz de Direito, o primeiro Promotor de Justiça e o primeiro Defensor Público serão nomeados pelo Governador eleito após concurso público de provas e títulos;
[2] ADCT-CRFB/88, Art. 98. (...) § 1º No prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo.
Maurilio Casas Maia é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-Graduado lato sensu em Direito Público: Constitucional e Administrativo; Direitos Civil e Processual Civil. Professor de carreira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Defensor Público (DPE-AM).
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