AUTODETERMINAÇÃO E A OBRIGATORIEDADE DE VACINAÇÃO CONTRA O CORONAVÍRUS  

22/09/2020

Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Mustafá

A pandemia causada pelo vírus Sars-CoV-2 (Covid-19) reacendeu a discussão, em âmbito global, sobre a compulsoriedade de vacinação de toda a população. No cerne da questão tem-se a busca pela proteção da vida e da integridade da saúde de todos. Em contrapartida, discute-se sobre a esfera de autodeterminação daqueles que se negam a tomar eventual medicamento que venha a ser disponibilizado.

Aliás, o movimento antivacina no Brasil tem apresentado expressivo crescimento e visibilidade após a pandemia da Covid-19, sendo, como destaca o Ministro Luís Roberto Barroso, assunto de relevância política[1].

Diante disso questiona-se: quais os limites da autonomia privada, mais especificamente da autodeterminação do indivíduo, contra imposições estatais que atingem diretamente convicções essenciais da pessoa?

Apesar da atualidade do tema tratado nesse artigo, a gênese da discussão pode ser observada em outros importantes casos debatidos em nossa sociedade, como exemplo, a proibição ou não de transfusão de sangue de Testemunhos de Jeová e, do mesmo modo, o caso levado à apreciação do Supremo Tribunal Federal, por meio do Recurso Extraordinário com Agravo n. 1267879, com repercussão geral (Tema 1103), em que o Ministério Público de São Paulo ajuizou uma ação civil pública contra os pais de uma criança, com cinco anos de idade na época dos fatos, a fim de obrigá-los a regularizar a vacinação do seu filho, não realizada em razão dos pais serem adeptos da filosofia vegana e contrários a intervenções médicas invasivas.

Dessas premissas, extrai-se que a controvérsia constitucional consiste na necessidade de se ponderar sobre os direitos de liberdade do indivíduo em ter sua convicção ideológica, política e religiosa conforme sua própria escolha e, de outro lado, o dever do Estado de proteger a saúde de toda a coletividade, mediante a elaboração de políticas sanitárias preventivas de doenças infecciosas.   

Antes, é mister esclarecer alguns pontos que compõem o debate. Primeiramente tem-se a pessoa natural, titular de direitos e deveres[2], atribuídos desde o nascimento com vida, possuindo, assim, personalidade civil[3].  Nessa perspectiva, o sujeito é titular de direitos da personalidade em razão exclusiva de sua natureza humana. O caráter personalíssimo refere-se à qualidade “sui generis”, única do sujeito que é titular do direito, sendo que a mera condição humana o faz dotado de todas as características referentes à personalidade previstas no ordenamento jurídico pátrio vigente.

A proteção conferida aos direitos de personalidade tem como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, III, da Constituição da República, sendo um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Na mesma vertente, pode-se citar como desdobramento desse princípio, dentre outros, o artigo 5º, inciso X, da Carta Constitucional, ao definir como invioláveis a “intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. Vislumbra-se, portanto, que o legislador constituinte optou por estabelecer pequenas fragmentações dos direitos de personalidade a nível constitucional.

Destaca-se que os direitos personalíssimos são intransmissíveis e irrenunciáveis, admitindo limitação apenas em decorrência da lei ou de ordem judicial, nos termos do artigo 11 do Código Civil[4]. Contudo, tais direitos não são absolutos, ressalta-se, inclusive, que nenhum direito é plenamente absoluto, dependendo do contexto fático jurídico observado.

Por sua vez, o direito constitucional à saúde configura cláusula pétrea, de caráter universal e abrangente, de modo a promover, proteger e recuperar a saúde dos enfermos, conforme previsão dos artigos 6º, 196 e 198, I a III, da CRFB/1988, além de compor os direitos da personalidade. A proteção e os cuidados para com a saúde são de competência concorrente perante os entes federados – União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios.

Todas essas perspectivas de direito estão abrangidas na categoria do “ser”, por esse motivo, “torna-se necessidade lógica reconhecer, pela especial natureza do interesse protegido, que é justamente a pessoa a constituir ao mesmo tempo o sujeito titular do direito e o ponto de referência objetivo de relação”[5], sendo sua tutela preservada pela unidade do valor da pessoa, dessa maneira, a personalidade é, “não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz sua incessantemente mutável exigência de tutela”[6].

Por oportuno, a questão da vacinação sempre gerou debates de gama científica e política na história brasileira, apresentando posicionamentos contrários e favoráveis. Todavia, com o desenvolvimento das ciências da saúde, entendeu-se que a vacinação é o meio mais eficaz e seguro para erradicação de doenças, minimização de mortes e demais sequelas contra diversas patologias.

 

As vacinas nos protegem contra doenças terríveis, capazes de causar sofrimento, sequelas e morte. Este fato não pode ser refutado. Há 60 anos as vacinas têm se mostrado eficazes e seguras[7].

 

Sob o ponto de vista filosófico,

 

O conhecimento científico, com o escopo de prevalecer sobre eminentes fontes enclausuradas de pensamento, procura opor-se às representações ideológicas e as representações metafísicas, distinguindo a verdade do erro, distanciando o sentido referencial de suas evocações conotativas, como também, diferenciando as opiniões comuns (a doxa) do conhecimento científico (a episteme)[8].

 

Tais discussões repercutem na seara jurídica a partir do momento que o direito à saúde individual – direito personalíssimo – e coletivo passam a colidir. De um lado temos o artigo 15 do Código Civil como norma infraconstitucional decorrente de paradigma da dignidade da humana, cujo conteúdo estampa que ninguém será constrangido ou submetido a tratamento médico ou intervenção cirúrgica contra sua vontade. De outra forma, há o direito comunitário à saúde, ao acesso à convivência sem restrições ocasionadas pelo protocolo sanitário de combate à propagação disseminada da Covid-19.

Como destaca Carlos Roberto Gonçalves, a vida é o bem supremo, devendo ser compreendido o direito ao respeito à vida do próprio titular, assim como a de todos os demais[9]. Nessa perspectiva, a saúde e a segurança pública podem justificar limitações da liberdade individual. Isso esclarece o “porque a partir de uma ponderação de valores constitucionais, os interesses da coletividade quanto à evolução científica devem prevalecer sobre os interesses individuais ou de determinados grupos”[10].

Logo, diante do contexto instaurado pela Covid-19 na saúde pública brasileira, tendo em vista a situação emergencial e muitas vezes caótica, não se mostra plausível privilegiar a vontade de um ou de poucos indivíduos de não se submeterem à vacinação, agindo em detrimento da coletividade. A peculiaridade do Sars-CoV-2, além de seus efeitos ainda desconhecidos pela ciência internacional, é o alto risco de contágio, ocorrendo de forma sintomática e assintomática. Este é um vetor de elevado risco, em que um indivíduo é capaz de, involuntariamente, contaminar outras pessoas.

No tocante às crianças sujeitas ao poder familiar dos pais ou à tutela de responsável legal, ou ainda todo àquele sujeito à curatela - apesar do tema ainda estar em discussão no Supremo Tribunal Federal - encontra-se na jurisprudência o entendimento de que a manifestação de vontade dos responsáveis não deve ser absoluta. A incapacidade absoluta dos menores de 16 (dezesseis) anos de idade e dos interditados por sentença declaratória deve ser exprimida por seus representantes legais. Nesta dicotomia ao lume do método hermenêutico da ponderação de valores, ainda que tais representantes sejam contrários à vacinação obrigatória, sendo evidente os benefícios trazidos pela técnica científica em questão, com minimização de efeitos colaterais e teste garantido em seres humanos, poderá o Poder Judiciário, caso reste judicializada, em utilizar os métodos coercitivos que se fazerem necessários para gerar a vacinação ao grupo de manifestação volitiva reduzidos, ante à vulnerabilidade dos mesmos em todos os aspectos.

Nesta toada, colaciona-se o entendimento jurisprudencial:

 

APELAÇÃO CÍVEL - MEDIDA DE PROTEAÇÃO - DIREITO À SAÚDE - VACINAÇÃO OBRIGATÓRIA - DIREITO COLETIVO - MELHOR INTERESSE DO MENOR - LIBERDADE RELIGIOSA - PONDERAÇÃO. A vacinação consiste não apenas em direito individual, mas em direito coletivo, uma vez que tem por objeto a diminuição, ou até mesmo a erradicação de doenças. A interpretação que se faz é que as normas de regência buscam garantir a saúde do indivíduo e, por consequência, de toda a população, sendo, portanto, algo acima da escolha pessoal, vez que envolve a diminuição da exposição ao risco e ao contágio de determinadas doenças e ainda evita o reaparecimento de doenças consideradas erradicas. Em consideração Ao Princípio Constitucional do Melhor Interesse, não podem os genitores se recursarem a vacinar os filhos quando se busca alcançar o pleno desenvolvimento daqueles, o que, por certo, envolve o direito à saúde em todas as suas formas, incluídas as de prevenção por meio da vacinação. O interesse do menor se sobrepõe a qualquer interesse particular dos genitores. A imposição da imunização não fere o direito à liberdade religiosa, uma vez que não sendo esse absoluto, é passível de ponderação e, assim, não há se falar no direito de escolha dos pais, mas no direito da criança à saúde[11]

 

Diante o exposto, e sem a pretensão de esgotar o tema, compreende-se que a vacinação compulsória advém de um pacto social pela proteção da saúde de toda a sociedade. No entanto, para isso, é essencial que a medicação passe por todos os testes estabelecidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), demonstrando-se o meio mais eficaz de controlar a disseminação da doença, além da necessidade de informação sobre todos os resultados verificados e os possíveis efeitos colaterais produzidos. Nesse sentido, a limitação da autonomia privada, em se autodeterminar, justifica-se pelo interesse coletivo de preservação da vida e da saúde pública, assim como, pelo dever-poder-função do Estado em ampará-la.

 

 

[1] STF vai decidir se Estado pode obrigar pais a vacinarem os filhos. Supremo Tribunal Federal, 2020. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=451552

[2] BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Artigo 1º.

[3] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

[4] Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.

[5] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. (Trad.) Maria Cristina de Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 155.

[6] Ibidem, p. 155-156.

[7] TASCHNER, Natalia Pasternak. Por que as vacinas são tão importantes. Jornal da Universidade de São Paulo, 5 jun. 2017, p. ?. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/por-que-as-vacinas-sao-tao-importantes/. Acesso em: 8 set. 2020.

[8] CORTEZ, Gabriel Cavalcante. A aplicação da hermenêutica jurídica no Estado em crise de valores: o ativismo Judiciário como garantia dos direitos fundamentais. In: VIII Seminário Diálogos Filosóficos e Jurídicos: Ética e Compliance nos Negócios Jurídicos. 2017, Londrina. Anais do VIII Seminário Diálogos Filosóficos e Jurídicos: Ética e Compliance nos Negócios Jurídicos – Interlocuções Filosóficas e Jurídicas acerca da crise do Estado Nação. Londrina, p. 10. Disponível em: http://www.uel.br/pos/mestradoemdireito/pages/arquivos/Anais%20Dialogos%20Filososficos%202017/ANAIS%20GT3-1.pdf. Acesso em: 8 set. 2020.

[9] GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. Cit. p. 194.

[10] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 133.

[11] MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível nº 10518180076920001 MG. Relator: Desembargador Estadual Dárcio Lopardi Mendes, 17 de dezembro 2019, Jusbrasil. Disponível em: https://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/793583412/apelacao-civel-ac-10518180076920001-mg?ref=serp. Acesso em: 8 set. 2020.

 

 

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