AUTODETERMINAÇÃO DO BIOGRAFADO E DIVULGAÇÃO DE BIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA: ANÁLISE DA ADIN Nº 4.815/DF  

27/10/2020

Coluna Direito Negocial em Debate / Coordenador Rennan Mustafá

O gênero literário biográfico compreende as inquietudes que as pessoas têm sobre determinado sujeito, o qual elas atribuem maior relevância social por algum motivo, manifestando interesse em saber de detalhes sobre sua vida, profissional e privada, que os levaram a realizar façanhas, proezas, tragédias etc., além de informações de cunho pessoal. Esse tipo de comportamento é recorrente na história, em que “não se pode deixar de reconhecer que o Novo Testamento, por exemplo, é, de certo modo, a biografia não autorizada de Jesus Cristo”[1].

A curiosidade com seus ídolos e a descoberta de novos aspectos da vida de homens destacados têm atraído cada vez mais os historiadores profissionais com as potencialidades estilísticas da biografia. Não só de grandes homens se nutre o trabalho biográfico. A história do personagem pequeno, invisível no contexto social e político tem, também, atraído a atenção dos historiadores.

[...]

A biografia é uma narrativa oral, escrita ou visual dos fatos particulares das várias fases da vida de uma pessoa ou personagem[2].

Todavia, ao analisarmos essa questão nos deparamos com a seguinte problemática: quais as limitações das liberdades de manifestação artística e de informação frente ao direito de privacidade do indivíduo?

Partindo da análise das liberdades, tem-se que a origem da liberdade civil e política é fruto da conquista burguesa na Revolução Francesa, resultando, essencialmente, em direitos de oposição à atuação do Estado perante os indivíduos, pois, o ente estatal era reconhecido na época como grande opressor das autonomias individuais, correspondendo à primeira geração de direitos fundamentais[3].

Neste viés, insere-se a liberdade de criação intelectual, referente a toda expressão artística, cultural e científica do pensamento, vedado o anonimato, conforme artigo 5º, IV, da Constituição Federal de 1988. Todavia, ainda que seja um direito fundamental, o mesmo não é absoluto, de modo que sua fruição encontra limites nos direitos de outrem.

Sob esta ótica, erige-se a questão das biografias não autorizadas. Em um primeiro plano, estabelece o artigo 20 do Código Civil que a divulgação de qualquer material que envolve a imagem de alguém está condicionada à autorização da mesma, sem prejuízo da indenização cabível quando houver mácula à honra, à imagem, à respeitabilidade ou se destinar a fins comerciais, diante da não divisão nos lucros. A norma infraconstitucional estabelece, pois, caráter semi-absoluto no que tange à publicação de obras referente a terceiros, havendo a exigência da autorização do sujeito responsável, sob pena de incorrer nas penas legais.

A imagem ganha efetivo regramento atinente à inviolabilidade, em atenção aos artigos 5º, X, da Constituição Cidadã e 21 do Código Civil.

Na forma do texto codificado, a utilização da imagem deve ser autorizada, sob pena de proibição da sua divulgação, sem prejuízo de pedido de indenização, se a veiculação atingir a honra, boa fama, respeitabilidade ou destinar-se a fins comerciais. É bem verdade que o art. 20 do Código Civil prevê a desnecessidade de autorização da veiculação da imagem para a administração da justiça ou manutenção da ordem pública. Não sendo esta a hipótese, a violação à imagem autorizará reparação civil[4].

A visão de que a veiculação da imagem de outrem depende de autorização expressa de seu titular vigorou por muito tempo enquanto direito “erga omnes”, isto é, de eficácia contra terceiros e não admitindo interpretação em contrário. Porém, passou-se a surgir o conflito entre duas gamas de direitos fundamentais: direito individual à imagem e direito à liberdade de criação intelectual.

Para este impasse, primeiramente houve a edição do Enunciado nº 4 da I Jornada de Direito Civil, proveniente do Conselho da Justiça Federal (CJF) em que “O exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”[5]. Aparentemente, a interpretação orientativa entendeu por uma flexibilização temporária do direito de personalidade, aplicado à presente discussão, por determinado período temporal.

Não obstante, a prática jornalística começou a publicar edições intituladas de biografias não autorizadas de celebridades e pessoas de renome, com o intuito de causar polêmica e ampliar a divulgação e a aquisição das obras. E com este cenário adveio a controvérsia a respeito da (im)prescindibilidade da prévia autorização do indivíduo objeto dos escritos quanto à produção e comercialização de produto que contenha partes de sua vida pública e privada.

Em complemento ao Enunciado anterior, o CJF entendeu por maximizar a proteção ao direito de liberdade de imprensa em detrimento da censura ocasionada pela restrição à autorização das pessoas responsáveis pelo interesse na escrita da obra. Assim, advém a IV Jornada de Direito Civil, ocorrida em 2007, cujo Enunciado nº 297 é auto explicativo:

Enunciado nº 297. A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações[6].

Diante da questão controvertida no caso concreto é que se pode trabalhar a ponderação de valores constitucionais.

Contudo, a quantidade de casos relacionados ensejou a propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº 4.815/DF, para que fosse solucionado o problema diante da insegurança jurídica instaurada, a qual ocasionava efeitos nas searas dos direitos da personalidade, obrigações, negócios jurídicos, sucessões e responsabilidade civil.

Nesta toada, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu pela inaplicabilidade da autorização do biografado referente à disponibilização de partes de sua vida pública e privada. Do contrário, estar-se-ia configurado o denominado Estado de exceção, onde a censura calaria a liberdade de expressão.

Neste julgamento que se valeu da regra hermenêutica de ponderação de valores, preponderou o direito coletivo à liberdade em detrimento do direito individual de personalidade, embora nem este nem aquele sejam absolutos. Assim sendo, resta dispensada a prévia autorização do biografado e de terceiros mencionados na obra para disponibilização do conteúdo à população, tendo em vista que “Biografia é história. A vida não se desenvolve apenas a partir da soleira da porta de casa”. Não houve o afastamento de mecanismos materiais e processuais referentes à reparação de danos com relação ao conteúdo publicado, mas sim tão somente à prescindibilidade de autorização para a publicação da biografia até então não autorizada.

Ressalta-se que a ADIN nº 4.815/DF conferiu a dispensa de autorização do biografado no que tange aos fatos públicos de sua vida, de modo que acontecimentos particulares, restritos ao seu cotidiano, de interesse individual, quando expostos indevidamente não merecem prosperar sob a proteção do manto da liberdade de imprensa.

Colaciona-se trecho da Ministra Carmen Lúcia a respeito da temática:

A intimidade, a privacidade, a honra e a imagem da pessoa constituem conteúdos insujeitos ao desrespeito de alguém, a configurar agir ilegítimo. No art. 5º, inc. X, da Constituição da República, preceitua-se a forma de se reparar dano advindo da transgressão a tal comando porque se reconhece que a contrariedade pode ocorrer.

[...]

Não ignoro a bisbilhotice e o incômodo do olhar obsessivo do outro sobre a vida de certa pessoa. A vida de todos compõe a sociedade. A vida do outro, singular, deve ser o quanto mais deixada em paz. Mas quem sai à rua deixa-se ver. No mundo em que a praça virtual é mais intensa e mostra o que se passa na cama e até debaixo dela, não se há de pretender que o que prega no largo da cidade queira depois esconder-se daquele que o tenha encontrado.

[...]

E a terceira e última razão é que a liberdade de expressão é essencial para o conhecimento da história, para o aprendizado com a história, para o avanço social e para a conservação da memória nacional.

Por tais razões, a biografia constitui gênero literário e histórico, pois permite conhecer não somente o sujeito biografado, como também a relação de determinada sociedade, classe social, bens, desígnios e alhures relacionadas à pessoa sob o enfoque da investigação. Através da biografia é possível conhecer feitos de diversos nomes relevantes na História da Humanidade; permite, ainda formar identidade de feitos do biografado e também de um povo.

A controvérsia instaurada foi analisada sob o plano abstrato da norma jurídica, não configurando um regime de regra ou exceção, visto que a depender do caso sob análise pode haver a preponderância dos interesses públicos ou privados, não havendo uma espécie de tutela genérica para tanto.

De uma forma geral, os pretórios nacionais pronunciam-se pela preponderância da liberdade de imprensa (esfera pública), sobre os direitos da personalidade (esfera privada), em função da negativa à censura e verificação do interesse público na informação veiculada. A isso se denomina de critério da acumulação de interesses, pois o interesse público traduz soma de vários interesses privados, havendo de prevalecer (doutrina de Rabindranath Capelo de Sousa).

O fato, porém, é que a verificação do tema não deve ser realizada de forma abstrata, ao passo que, hodiernamente, a supremacia do interesse público sobre o privado não mais é absoluta[7].

 

O conteúdo da obra e a repercussão na vida dos interessados determinará eventual sobrepujança de vontades.

Não obstante, a autonomia do biografado é restringida em detrimento da liberdade de criação artística, cultural e científica com base em sua vida pública, não sendo necessária autorização para tanto. A decisão emanada pelo STF mostra-se acertada, considerando a ponderação de valores e a possibilidade do biografado valer-se de meios judiciais contra o biógrafo.

 

Notas e Referências

[1] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: vol. 1: parte geral e LINDB. 15. ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 197.

[2] ALMEIDA, Francisco Alves de. A biografia e o ofício do historiador. Revista Dimensões, Vitória, n. 32, v. ?, p. 292-313, 2014. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/dimensoes/article/view/8338 . Acesso em: 20 set. 2020. ISSN: 2179-8869.

[3] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 33. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 44.

[4] FIGUEIREDO, Luciano L.; FIGUEIREDO, Roberto L. Direito Civil: parte geral. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 323.

[5] BRASIL. Conselho da Justiça Federal. I Jornada de Direito Civil. Enunciado nº 4: O exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral. Brasília, 2003. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/i-jornada-de-direito-civil.pdf . Acesso em: 20 set. 2020.

[6] BRASIL. Conselho da Justiça Federal. IV Jornada de Direito Civil. Enunciado nº 297: A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações. Brasília, 2007. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/IV%20Jornada%20volume%20II.pdf. Acesso em: 20 set. 2020.

[7] FIGUEIREDO, Luciano L.; FIGUEIREDO, Roberto L. Ob. Cit., p. 326.

 

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