AUTODECLARAÇÃO DE GÊNERO DE PESSOAS LGBTI+ NO SISTEMA CRIMINAL: UMA REFLEXÃO A PARTIR DA RESOLUÇÃO 348/2020 DO CNJ    

09/07/2021

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Este texto propõe uma reflexão a respeito das diretrizes apontadas pela Resolução 348/2020 do CNJ, que trata de procedimentos a serem observados pelos órgãos do sistema criminal com relação ao tratamento de toda pessoa LGBTI+ “que esteja custodiada, acusada, ré, condenada, privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitorada eletronicamente”[1]. A normativa leva em conta a situação de desigualdade vivida por pessoas LGBTI+ no sistema prisional, tendo como objetivo eliminar as violações de direitos sistematicamente direcionadas a esse público.

Considerando o cenário político marcado pelo conservadorismo e, por vezes, pelo retrocesso em determinadas áreas, chama a atenção a publicação de uma normativa pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que estabelece diretrizes para o tratamento adequado da população LGBTI+ privada de liberdade. Por isso, importa analisar a forma como determinadas “políticas penitenciárias” foram desenvolvidas no Brasil para compreender de que forma encaramos uma Resolução que prevê o direito à autodeclaração em relação à orientação sexual e identidade de gênero, identidades que agora devem ser consideradas no tratamento penal conferido a essas pessoas.

Tendo em conta as muitas violações de direitos experimentadas pela população LGBTI+ as passar pelos diferentes espaços do sistema criminal, documentadas inclusive no âmbito da administração pública federal[2], o Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução nº 348, de 13 de outubro de 2020, de modo a estabelecer diretrizes sobre o tratamento penal voltado para essa população. Em seu segundo artigo, a resolução aponta seus objetivos: i) garantir o direito à vida, à integridade física, mental e sexual de pessoas LGBTI+, e assegurar a livre expressão da identidade de gênero e orientação sexual; ii) reconhecer o direito à autodeterminação, ou seja, a faculdade pessoal de identificar a si mesmo e declarar sua identidade de gênero e orientação sexual; c) garantir que pessoas LGBTI+ não serão discriminadas no acesso a direitos sociais, bem como a garantia de direitos específicos dessa população.

O principal avanço apresentado pela Resolução 348/2020 do CNJ no que diz respeito aos direitos humanos da população LGBTI+ privada de liberdade é o direito à autodeterminação em relação à sua orientação sexual ou identidade de gênero. Isso quer dizer que, no âmbito do sistema de justiça, as pessoas LGBTI+ em persecução penal e/ou execução penal poderão autodeclarar sua identidade de gênero ou orientação sexual e essa declaração deverá ser considerada pelos operadores do direito para definir o tratamento penal desses sujeitos.

A autodeclaração é o ato em que a pessoa LGBTI+ poderá exercer o direito de autodeterminação da sua identidade de gênero ou orientação sexual. A Resolução 348/2020 determina que o reconhecimento da pessoa como integrante da população LGBTI+ será feito exclusivamente por meio da autodeclaração colhida pelo magistrado, em qualquer fase da persecução penal ou execução da pena.

Um dos efeitos da autodeclaração é a possibilidade de escolha do estabelecimento penal no qual a pessoa ficará reclusa. Para isso, deverá ser colhida a autodeclaração, informando-se expressamente à pessoa LGBTI+ o direito à manifestação de preferência sobre o local de custódia. A Resolução prevê que o(a) magistrado(a) deve informar se existe, na comarca, estabelecimentos prisionais com alas, galerias, celas ou outros espaços de vivências específicos para a custódia LGBTI+.

Ainda, a normativa explica que “algumas pessoas transgêneras querem passar por cirurgias ou por terapia hormonal para alinhar o seu corpo com a sua identidade de gênero”, outras não. Tendo isso em conta, o(a) magistrado(a) não poderá condicionar a manifestação de preferência de pessoas transexuais à realização desses procedimentos. A leitura conjunta do caput do artigo 3º, combinada com sua alínea d, nos dá o entendimento de que pessoas autodeclaradas mulheres transexuais e travestis não possuem diferença além da sua identificação com essas categorias culturais. Trata-se de uma diferença meramente conceitual e discursiva. Logo, entendemos que o direito de manifestar preferência pela custódia em unidades masculinas ou femininas deve ser estendido às pessoas travestis.

Além disso, a resolução determina, em seu artigo 13, que os tribunais deverão criar e manter um cadastro com informações sobre as unidades prisionais específicas para LGBTI+ ou aquelas que possuam celas, alas, galerias ou espaços de vivência específicos para essa população, a fim de dar subsídio aos magistrados nas suas decisões e informar as pessoas custodiadas sobre as opções de local de privação de liberdade. De acordo com o artigo 7º da Resolução, a decisão que determina o local de privação de liberdade deverá ser fundamentada pelo magistrado, ouvida a pessoa autodeclarada LGBTI+.

Outra determinação importante trazida pela Resolução é a garantia de as pessoas transexuais, travestis e intersexo custodiadas terão o direito à expressão de sua identidade de gênero por meio do uso de vestimentas e acessórios para a manutenção de caracteres secundários de acordo com o gênero que se identificam, independentemente do tipo de unidade em que estejam custodiadas. Para isso, o artigo 11, inciso IV indica que mulheres transexuais e travestis têm o direito de usar vestimentas femininas, mesmo quando custodiadas em unidades masculinas. Esse direito se estende ao uso de cabelos compridos (inclusive extensão capilar ou apliques), ao acesso controlado de pinças para extração de pelos, maquiagem e cosméticos

O mesmo inciso indica que homens transexuais têm o direito de usar vestimentas tipicamente masculinas, bem como o uso de acessórios para compressão das mamas ou binder. Ainda, pessoas intersexo têm o direito ao uso de vestimentas de acordo com o gênero declarado, bem como ao acesso controlado a outros acessórios de manutenção dessas características.

Em casos de violência ou grave ameaça a pessoas LGBTI+ custodiadas, o artigo 9º aponta que o(a) magistrado(a) deverá dar preferência à análise dos pedidos de transferência que beneficiem essa população, ouvida a parte interessada. Tratando do mesmo tema, o artigo 11, inciso VII, alínea a estabelece que é vedada a transferência compulsória entre locais de custódia como forma de sanção, punição ou castigo da pessoa autodeclarada LGBTI+. Essa é uma determinação importante porque são poucos os estabelecimentos prisionais que contam com espaços específicos para as pessoas LGBTI+ privadas de liberdade. Pode-se dizer que, muitas vezes, essa população é dificilmente aceita e tratada com respeito nos espaços comuns, motivo pelo qual ficam vulneráveis às mais diversas formas de violências.

A Resolução 348/2020 determina, em seu artigo 7º, parágrafo 3º, que a autodeclaração e a custódia em espaços específicos não poderão prejudicar o acesso aos serviços e o exercício de direitos nos espaços de privação de liberdade, não podendo resultar na perda de quaisquer direitos relacionados à execução penal em relação às demais pessoas custodiadas no mesmo estabelecimento, especialmente quanto ao acesso a trabalho, estudo, atenção à saúde, alimentação, assistência material, assistência social, assistência religiosa, condições da cela, banho de sol, visitação e outras rotinas existentes na unidade.

No documento, encontramos a previsão de procedimentos que garantem a atenção às necessidades especiais de cada grupo da população LGBTI+, para que os direitos sociais na privação de liberdade (aqueles previstos na Lei de Execução Penal) sejam efetivados sem qualquer forma de discriminação em razão de orientação sexual ou identidade de gênero. Ou seja, particularidades da população LGBTI+ que devem ser consideradas para que tais direitos sejam materializados sem prejuízo.

A Resolução do CNJ prevê, no artigo 10, que os direitos assegurados às mulheres cis são estendidos às mulheres lésbicas, travestis, mulheres transexuais e homens transexuais. No inciso I, a normativa destacou que a prisão provisória deverá aplicada em caráter excepcional às pessoas LGBTI+ gestantes, lactantes, mães e responsáveis por crianças menores de doze anos ou pessoas com deficiência, nos termos dos artigos 318 e 318-A do Código de Processo Penal e do acórdão proferido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC nº 143.641/SP. Além disso, a progressão de regime prevista no art. 112, §3º da Lei de Execução Penal (garantida às mulheres gestantes ou responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência) foi estendida às mulheres lésbicas, transexuais, travestis e homens transexuais, de acordo com o inciso II do mesmo artigo.

Esse texto teve como objetivo analisar as diretrizes apontadas pela Resolução 348/2020 do CNJ, que trata de procedimentos a serem observados pelos órgãos do sistema penal com relação ao tratamento da população LGBTQIA+ em custódia do estado. O estudo dessa normativa permitiu perceber uma importante modificação no que diz respeito ao tratamento de pessoas LGBTI+ privadas de liberdade: a previsão da Resolução é para que, a partir da autodeclaração, elas possam escolher o local onde vão cumprir sua pena. Considerando as “políticas penitenciárias” de criação de alas, galerias e celas específicas como respostas para aliviar o sofrimento que essa população experimenta e a problemática que se visualiza no contexto prisional quanto à decisão de onde alocá-las, a normativa do CNJ toma destaque com a apresentação da possibilidade de escolha pela própria pessoa custodiada, além de outras garantias que antes sequer eram previstas.

 

Notas e Referências

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 348, de 15/10/2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3519. Acesso em: 15 abr. 2021.

BRASIL. MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS. LGBT nas prisões do Brasil: diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/fevereiro/TratamentopenaldepessoasLGBT.pdf. Acesso em: 11 abr. 2021.

[1] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 348, de 15/10/2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3519. Acesso em: 28 jun. 2021.

[2] BRASIL. MINISTÉRIO DA MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS. LGBT nas prisões do Brasil: diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/fevereiro/TratamentopenaldepessoasLGBT.pdf. Acesso em: 29 jun. 2021.

 

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