Audiências virtuais x Devido processo legal constitucional: uma contradição aparente  

18/09/2020

Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

As audiências por videoconferência foram instituídas pela Resolução nº 314 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como forma de dar continuidade aos processos, enquanto as políticas de isolamento social se fizerem necessárias, em razão da pandemia da Covid-19.

Embora, desde 2006, com a instituição do processo judicial eletrônico pela Lei nº 11.419/2006, já fosse possível a prática de atos eletrônicos, as audiências ainda ocorriam, primordialmente, de forma presencial.

O aumento da produtividade do Poder Judiciário está sendo comemorado pelo CNJ. Segundo dados apresentados no seminário online “Trabalho remoto no Judiciário: resultados do uso da plataforma Webex[1], mais de 366 mil videoconferências foram realizadas no âmbito do Poder Judiciário e 19.616 salas de reuniões foram criadas.  Em alguns tribunais, como é o caso do TJMG, registrou-se um aumento de 40% da produtividade.

Alguns aspectos positivos podem ser apontados pela instituição dessas audiências: aumento da produtividade dos órgãos do Poder Judiciário, celeridade processual e avanço tecnológico.

Entretanto, o aumento da produtividade deve ser analisado criteriosamente, pois a quantidade não necessariamente representa a qualidade. Enquanto magistrados e órgãos do Poder Judiciário comemoram os resultados promovidos pelas plataformas virtuais, advogados apontam algumas questões a serem aprimoradas, com base em experiências nas audiências telepresenciais.

Recentemente, foi noticiado que a juíza da 2ª Vara do Trabalho de Cabo Frio (RJ) silenciou o microfone de um advogado, enquanto ele se manifestava em uma audiência por videoconferência. Segundo foi noticiado, o advogado Marcos Chehab Maleson teve o microfone silenciado “enquanto fazia uso autorizado da palavra para pedir que fosse registrado em ata o fato de uma das testemunhas da outra parte estar acompanhada durante a oitiva”[2]. A justificativa para o ato foi no sentido de que a audiência estaria sendo gravada e que os requerimentos do advogado não precisariam ser registrados no termo de audiência.

As audiências de instrução e julgamento telepresenciais têm sido alvo de críticas por parte da doutrina, tendo muitos defendido a sua inviabilidade. As principais dificuldades apresentadas para a sua realização são: a) a ausência de publicidade; b) dificuldade de manutenção de incomunicabilidade no depoimento pessoal; c) dificuldade de identificação das testemunhas; d) dificuldade de intimação, incomunicabilidade e inquirição das testemunhas; e) valoração da prova pelo magistrado; e f) instabilidade de tráfego de dados[3].

O art. 459 do CPC/2015 prevê que o juiz não poderá admitir perguntas que puderem induzir a resposta. Entretanto, quando se trata de audiência telepresencial, há uma enorme dificuldade de fiscalização por parte do magistrado, pois, como aponta a doutrina especializada, poderá o advogado fazer uma pergunta, e, logo após, fora do espectro da câmera, passar a resposta para a testemunha[4].

Em que pese a justificativa da magistrada do caso narrado, não há qualquer relação entre o fato de as audiências estarem sendo gravadas e o direito de o advogado solicitar o registro, no termo de audiência, dos motivos pelos quais a prova deveria ser desconsiderada. Isto porque a prova seria registrada pelo documento eletrônico (gravação), mas a argumentação do advogado não, já que seu microfone foi desligado.

O princípio do contraditório deve ser interpretado segundo duas garantias: a) de participação (de ser ouvido) e; b) de possibilidade de influência na decisão (ter a oportunidade de desenvolver argumentação capaz de influenciar no julgamento)[5].

O fato de a juíza desligar o microfone do advogado durante a sua fala em audiência por videoconferência violou o contraditório em suas duas garantias: participação e possibilidade de influência na decisão.

Segundo Humberto Theodoro Júnior[6], devem ficar consignados no termo de audiência: a) as presenças dos sujeitos do processo; b) todos os requerimentos formulados durante os trabalhos; c) as decisões do juiz com relação aos requerimentos; d) o debate oral; e, se for o caso; e) a sentença.

O termo de audiência possui a função de assegurar a perpetuação da memória do conteúdo do ato processual, bem como facilitar a reapreciação da prova oral produzida quando do eventual exercício do duplo grau de jurisdição[7].

Conforme prescreve o inciso X, do art. 7º do Estatuto da Advocacia, é direito do advogado usar da expressão “pela ordem” em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento.

Portanto, o ato da juíza de se silenciar o microfone do advogado, representa uma afronta ao devido processo legal constitucional.

Conforme Brêtas, a mais importante das garantias processuais constitucionais é o devido processo legal que deve ser compreendido como um:

“(...) bloco aglutinante e compacto de vários direitos e garantias fundamentais e inafastáveis, ostentados pelas pessoas nas suas relações com o Estado, quais sejam: a) direito de amplo acesso à jurisdição; b) garantia ao juízo natural; c) garantia do contraditório; d) garantia de plenitude de defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, aí incluído o direito da parte à produção da prova e à presença do advogado ou defensor público; e) garantia da fundamentação racional das decisões jurisdicionais, com base no ordenamento jurídico vigente (reserva legal); f) garantia de um processo sem dilações indevida”[8].

Assim, a garantia fundamental do devido processo legal se integra na principiologia normativa maior do devido processo constitucional. Logo, o processo constitucional é metodologia de garantia de direitos fundamentais. Portanto, qualquer processo que viole tal metodologia estará apartado do que a Constituição de 1988 previu em seu art. 5º (incisos LIII, LIV e LV), como premissa para garantia de direitos fundamentais.

Quando tais fatos, como o que ocorreu na 2ª Vara do Trabalho de Cabo Frio (RJ), de desrespeito a direitos e garantias fundamentais, acontecem, concretiza-se inarredável violação à garantia fundamental do devido processo legal e se confirma a necessidade de ressaltar a importância do contraditório, como garantia de influência e não surpresa, e da ampla defesa, como o legislador do CPC/2015 fez.

Lamentavelmente, atitudes autoritárias por parte de magistrados têm ocorrido desde de que foi reconhecido, pela Lei n.13.979/2020, o estado de calamidade pública no Brasil em razão da pandemia do Corona vírus[9]. No que tange à função jurisdicional do Estado, o CNJ regulamentou a suspensão de prazos processuais, as práticas processuais durante o período de pandemia, a fluências dos prazos dos processos eletrônicos – Resoluções n. 313/2020, 314/2020 e 322/2020[10]. Regulamentou, ainda (art. 6º, Resolução n. 314/2020), a possibilidade de realização de audiências e de sessões de julgamento por juízos e tribunais via videoconferência, recomendando a utilização da plataforma “Cisco Webex”. Ressalte-se que o CPC/2015 já previu a realização de atos processuais por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, no art. 236, §3º.

Mais especificamente, o TRT da 1ª região, circunscrição jurisdicional em que o fato narrado ocorreu, disciplinou, em 04 de maio de 2020, por meio do Ato Conjunto n. 6/2020[11], a adoção de meios telemáticos para a realização de audiências e sessões de julgamento, em caráter excepcional e em decorrência da pandemia causada pelo Coronavírus. Em tal Ato - art. 1º, §1º -, consta expressamente que tais ferramentas telemáticas “observarão os princípios do devido processo legal, da duração razoável do processo e o do contraditório e ampla defesa”, indubitavelmente violados na audiência realizada na 2ª Vara em Cabo Frio (RJ). Ademais, o art. 2º do mencionado Ato Conjunto n. 6/2020 evidencia que não basta que as audiências sejam gravadas. Além da gravação, deve haver o registro dos atos processuais praticados em ata.

Ademais, a incessante busca pela efetividade processual e pela produtividade do Poder Judiciário não pode implicar na supressão dos direitos e garantias processuais constitucionais e infraconstitucionais, sob pena da promoção de um verdadeiro retrocesso no âmbito do devido processo legal constitucional.

A ampliação da prática de atos processuais de forma eletrônica promovida em razão da pandemia do Covid-19 tem demonstrado que a utilização dos meios eletrônicos pode ser uma aliada na relação da produtividade dos órgãos do Poder Judiciário. Entretanto, este avanço não deve ser comemorado sem que se considere a qualidade da atuação dos sujeitos do processo e da maneira como os atos processuais estão sendo praticados.

Após a Constituição de 1988 ter instituído um verdadeiro projeto teórico-constitucional-democrático, é inaceitável que se pratiquem atos processuais sem o adequado respeito às premissas do devido processo legal constitucional, sobretudo em momento de pandemia, em que se possibilitou sua prática por meios virtuais para que o cidadão não ficasse prejudicado. Ademais, experiências como a descrita neste texto motivam sérias reflexões acerca da real necessidade de se realizar audiências, sobretudo audiências de instrução probatória, durante o período de isolamento social. Isso porque, o direito de provar passa a ser garantia constitucional inafastável, concretizadora do devido processo legal, em conexão direta com os princípios institutivos do processo (contraditório, ampla defesa e isonomia)[12].

Toda e qualquer audiência, assim como os atos processuais, devem ser realizados sob o manto do devido processo legal constitucional, a fim de que nenhum direito ou garantia fundamental possam ser violados.

 

Notas e Referências

[1] Seminário promovido pelo Conselho Nacional de Justiça, em 7 de agosto de 2020, em seu canal no Youtube. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=XI3bgkBRSTA>. Acesso em 14 set. 2020.

[2] Revista Consultor Jurídico. Juíza do RJ desliga microfone de advogado em videoaudiência. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2020-ago-27/juiza-rj-desliga-microfone-advogado-videoaudiencia>. Acesso em 14 set. 2010.

[3] ALVES, Lucélia de Sena; SOARES, Carlos Henrique. Audiências telepresenciais na Justiça Cível e sua compatibilidade com o devido processo constitucional. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/331078/audiencias-telepresenciais-na-justica-civel-e-sua-compatibilidade-com-o-devido-processo-constitucional>. Acesso em 14 set. 2020.

[4] ALVES, Lucélia de Sena; SOARES, Carlos Henrique. Audiência telepresencial e devido processo constitucional. No prelo. Belo Horizonte: Editora D’Plácido. 2020.

[5] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 21. edição. Salvador: Jus Podivum, 2019, p. 107.

[6] THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: procedimentos especiais. Vol. I. 60ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 889.

[7] CÂMARA, Alexandre Freitas. Atos de cooperação judiciária devem ser documentados (e o Enunciado 687 do FPPC). Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-abr-10/alexandre-camara-documentacao-atos-cooperacao-judiciaria#_ftn2>. Acesso em 14 set. 2020.

[8] BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018. p. 90-91.

[9] Em 06 de fevereiro de 2020 entrou em vigor a Lei n.13.979, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.

[10] Resolução CNJ n.313/2020, disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3249>; Resolução CNJ n.314/2020, disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3283>; Resolução CNJ n.322/2020, disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3333>, todas acessadas em: 13. Set. 2020.

[11] Ato Conjunto n. 6/2020 do TRT da 1ª Região (RJ), disponível em: <https://bibliotecadigital.trt1.jus.br/jspui/bitstream/1001/2253571/4/Ato2020-0006_PresCorreg_Rep-C.htm>. Acesso em: 13. Set. 2020.

[12] BORGES, Fernanda Gomes e Souza. A prova no processo civil democrático. Curitiba: Juruá, 2013. p. 32 e 50.

 

 

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