AUDIÊNCIA PÚBLICA NO CASO DO ROL TAXATIVO DA ANS: COMPLEXIDADES E POTENCIALIDADES  

05/07/2022

Cerca de 50 milhões de pessoas. Esse é o número aproximado de beneficiários de planos de saúde no Brasil, logo, o número de afetados diretos pela decisão da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, no dia 8 de junho, fixou o entendimento de que o rol de procedimentos estabelecido pela Agência Nacional de Saúde (ANS) é taxativo.

Julgando os EREsp 18869-SP e EREsp 1889704-SP, o STJ decidiu que as operadoras de planos de saúde não estão mais obrigadas a fornecer tratamentos não previstos na lista definida pela agência reguladora[1].

A decisão foi sucedida de grande controvérsia e repercussão, algo previsível, não apenas pelo grande número de afetados, como também por envolver serviços de saúde, que possuem, reconhecidamente, alto índice de judicialização.

Poucos dias depois da decisão do STJ, a disputa sobre a taxatividade da lista da ANS já era levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) por duas ADPFs (986 e 990), a primeira, ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e o partido Rede Sustentabilidade, e a segunda, pelo Partido Democrático Trabalhista.

Na verdade, a controvérsia não é nova no STF. Quando do ajuizamento dessas ADPFs, o Min. Luís Roberto Barroso já era Relator de três Ações Diretas de Inconstitucionalidade com objeto similar (ADIs 7088, 7183 e 7193), gerando, inclusive, a distribuição das ADPFs para sua relatoria, por prevenção[2].

Assim, os autores das ADPFs somam-se ao Comitê Brasileiro de Organizações Representativas das Pessoas com Deficiência (CRPD), à Associação Brasileira de Proteção aos Consumidores de Planos e Sistema de Saúde (Saúde Brasil), e ao partido Podemos, entidades autoras das 3 referidas ADIs, na impugnação constitucional do rol taxativo da lista da ANS.

A pluralidade de ações de constitucionalidade no STF e o perfil coletivo e representativo das entidades autoras ressaltam a amplitude social da questão sob julgamento, com repercussão sobre o acesso a prestações, por vezes, imprescindíveis para a proteção dos direitos fundamentais à saúde e à vida de milhões de pessoas.

Resta patente, portanto, que a questão sobre a função e o efeito normativo do rol de referência de procedimentos estabelecido pela ANS encontra-se sob profunda divergência jurídica e social. Exemplificativamente, mesmo após a decisão do STJ, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) vem proferindo decisões reiteradas pela manutenção da prestação de tratamentos não contemplados pela ANS[3].

Diante de questão jurídica de tal complexidade técnica e amplitude social, faz-se adequada, e mesmo necessária, a realização de audiência pública pelo STF para subsidiar o julgamento da controvérsia. Assim, acertadamente, no último dia 01/07, o Min. Luís Roberto Barroso convocou audiência pública para subsidiar o julgamento das 5 ações[4]

Com o advento das Leis nºs 9.868/99 e 9.882/99, regulamentadoras do processamento e julgamento de ADI, ADC e ADPF, foi introduzida possibilidade de realização de audiências públicas pelo STF, como forma de a Corte obter informações especializadas a respeito dos temas sob sua análise. O instituto permite ao STF, por exemplo, obter esclarecimentos técnico-científicos sobre os mais diversos temas, contornando, assim, a vedação à dilação probatória característica dos tribunais superiores. A Corte realizou em 2007 sua primeira audiência pública, referente à ADI 3510, sobre as pesquisas científicas com células-tronco embrionárias, quando ouviu 22 geneticistas.

Paulatinamente, o STF foi ampliando o uso do instituto, identificando-o como uma via de abertura democrática da jurisdição constitucional brasileira, que permite ouvir avaliações de entidades representativas de segmentos sociais interessados, ampliando e pluralizando a construção do juízo decisório da Corte. As audiências públicas passaram a ser vistas como uma estratégia de abertura institucional do Tribunal, para, em certa medida, integrar a sociedade civil na interpretação da Constituição.

Como sabido, as audiências públicas (em sentido amplo) foram destacadas pela Constituição de 1988 como uma das vias institucionais para a consecução do projeto de superação de uma democracia exclusivamente representativa, estimulando a participação direta da sociedade nos processos decisórios estatais[5].

A previsão do instituto nas Leis nºs 9.868/99 e 9.882/99 e sua posterior extensão pelo art. 927, § 2º, do CPC/2015, evidenciam que o processo judicial não permaneceu à margem desse projeto constitucional integrador, enfatizando um processo judicial mais colaborativo.

A concepção desse uso pluralizante e democratizante das audiências públicas pelo STF está, por certo, relacionada à conhecida proposta do constitucionalista alemão Peter Häberle de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição[6]. O autor defende que o processo de legitimação democrática de uma Constituição não se esgota no momento constituinte, mas se estende pelos processos de interpretação e aplicação de seu texto. Häberle defende, inclusive, a existência de um status activus processualis, um direito subjetivo das cidadãs e cidadãos a procedimentos institucionais que viabilizem a participação da sociedade civil nos processos decisórios sobre questões de interesse público.

A controvérsia jurídica em questão, de alto interesse público, centra-se na interpretação a ser dada ao rol de procedimentos e eventos em saúde, previsto na Lei nº 9.961/2000 e fixado, atualmente, pela Resolução Normativa nº 465/2021, da ANS.

Pelo exposto, fica claro que o tema não pode ser avaliado como estritamente formal ou técnico-jurídico, uma vez que ele contém potenciais repercussões econômicas, políticas e sociais que ultrapassam a seara jurídica e o interesse dos contratantes. A controvérsia envolve inegável interesse público relevante, requisito previsto nos arts. 13, XVII, e 21, XVII, do Regimento Interno do STF[7] (RISTF) para a convocação de audiência pública.

Ademais, é inerente à categoria dos serviços de saúde seu efeito sobre os direitos fundamentais à saúde e à vida, os quais, por sua vez, possuem uma centralidade pragmática, na medida em que sua proteção é condição necessária para o exercício dos demais direitos.

Se a exemplificatividade da lista otimiza a proteção do consumidor e os referidos direitos fundamentais correlatos à dignidade da pessoa humana, por certo, a ausência de qualquer parâmetro limitativo pode inviabilizar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato e a segurança jurídica quanto às prestações de saúde devidas pela operadora; ponto destacado pelo Min. Relator ao fundamentar a convocação da audiência.

Diante dessa controvérsia complexa, a realização da audiência pública pode permitir ao STF a oitiva de especialistas, de representantes do poder público e de segmentos da sociedade civil, a fim de obter informações técnicas e avaliações diversas, que subsidiem uma construção mais completa, plural e colaborativa (e melhor fundamentada) da decisão sobre a questão. No despacho convocatório da audiência, o Min. Barroso parece fundamentar nesse sentido, ao definir os critérios de seleção dos expositores: “(i) representatividade, (ii) especialização técnica e expertise do expositor, e (iii) garantia da pluralidade da composição da audiência e da paridade dos diversos pontos de vista a serem defendidos.”[8].

Controvérsias envolvendo os direitos fundamentais à vida e à saúde têm sido objeto destacado de audiências públicas no âmbito do STF, como aquelas que subsidiaram os julgamentos da ADPF 54 (Interrupção da gestação de fetos anencéfalos); da “Judicialização do direito à saúde”[9]; das ADIs 5.035 e 5.037 (Programa ‘Mais Médicos’); e do RE n° 581.488 (Internação hospitalar com diferença de classe no SUS).

Assim, a audiência pública no STF pode ser uma oportunidade de que se expressem, em alguma medida, os elementos constitutivos da complexidade (jurídica, econômica, técnica, política e social) da questão sob julgamento, contribuindo para uma mais completa avaliação da controvérsia pelo Tribunal.

Contudo, apenas os próximos eventos revelarão se os potenciais informativo e pluralizante da audiência pública serão efetivados e, principalmente, se as contribuições dos expositores serão realmente consideradas e assimiladas na construção do entendimento da Corte.

 

Notas e Referências

[1] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Notícias, de 08 de junho de 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/08062022-Rol-da-ANS-e-taxativo--com-possibilidades-de-cobertura-de-procedimentos-nao-previstos-na-lista.aspx. Acesso em: 24 jun. 2022.

[2] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Notícias e Textos, 15 de junho de 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=489010&ori=1. Acesso em: 24 jun. 2022.

[3] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento nº 2069959-58.2022.8.26.0000, Voto nº 33629. Outras 3 decisões no mesmo sentido foram proferidas nos autos 2128952-94.2022.8.26.0000, 2129515-88.2022.8.26.0000 e 2127987-19.2022.8.26.0000.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decisão. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7088. Min. Rel. Roberto Barroso. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADIs70887183e7193ADPFs986e990DecisoMLRBConvocaodeaudinciapblica.pdf.

[5] ANDRADE, Mario Cesar da S. Audiências Públicas no Supremo Tribunal Federal como seara argumentativa: cientificismo, comunicatividade, discursividade e democracia na abordagem dos argumentos pelos Ministros. 2015. 354f. Dissertação (Mestrado). Programação de Pós-graduação em Direito e Inovação, da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora/MG, 2015.

[6] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. A contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.

[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Regimento Interno. Atualizado até a Emenda Regimental n. 57/2020.

[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decisão. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7088. Min. Rel. Roberto Barroso, p. 15.

[9] Sob o tema amplo da “judicialização da saúde”, o Min. Gilmar Mendes, à época Presidente do STF, convocou audiência pública para subsidiar o julgamento de diversas ações, a saber, SL 47, SL 64, STA 36, STA 185, STA 211, STA 278, SS 2361, SS 2944, SS  3345 e SS 3355.

 

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