Por Deise Helena Krantz Lora – 11/08/2016
O deslocamento espaço tempo é algo fascinante. A tecnologia desenvolvida pelo homem já nos permite percorrer novecentos, mil quilômetros em menos de uma hora... Tanto no plano físico quanto no cognitivo, é realmente impressionante o que o ser humano consegue e também o que não consegue fazer.
A regulamentação da audiência de custódia no Brasil insere-se no plano do que não se tem feito. Ou do que se faz, mas pela metade... É como se alguns assuntos jurídicos viajassem de jatinho e outros, coitados, “andassem” a pé.
Edgar Morin há muito tem explorado a complexidade[1] do mundo da vida e da ciência, revelando a organização da desordem. Tudo bem, isso significa que somos, pensamos e sentimos de maneira diferente. Daí porque o conflito e o debate são previsíveis...
Para Morin, o pensamento complexo e a dinamicidade acompanham tudo, de forma que alcançam também o Direito, embora em diferentes velocidades. Algo que pode ser bom ou trágico, mas nem por isso menos real.
Neste sentido, a história de tudo que é jurídico revelou inúmeros giros teóricos. O problema é que muitos dos nossos intérpretes não captaram a ruína de corpos que lhe é inerente. Walter Benjamin bem a ilustrou ao referir o “anjo da história”, presente na nona de suas teses de crítica ao progresso[2] “[...] O que se apresenta a nós como uma cadeia de acontecimentos, ele [anjo] vê como uma catástrofe única que sem cessar acumula ruínas sobre ruínas [...]”[3].
O mundo e o Direito tem se mostrado assim, um desastre ou uma grande vitória, dependendo do referencial. Isso talvez ocorra em razão da complexidade, ou ainda porque a indiferença constitui a faceta mais obscura da humanidade. Afinal, em nome da humanização, suplícios e castigos corporais foram substituídos por novas formas de controle: do corpo para a mente, como afirmou Foucault.
E este é apenas um dos exemplos de que os “avanços” sempre estiveram eivados de contradições. Estabelecemos regras protetivas ao ser humano, descortinamos seu mínimo existencial, mas continuamos brigando com estes mesmo parâmetros. Claro, o mundo é complexo e está em constante mutação.
Mas mudar algo implica em conhecimento. E o conhecimento é complexo. Ocorre que a complexidade de Morin representa muito mais uma atitude ativa e de continuidade da busca, do que o desespero que nasce da imobilidade. Ainda, complexidade para Morin não é retrocesso...
Certo, em que tudo isso se relaciona a audiência de custódia?
Primeiro, a audiência de custódia é um tema complexo.
Segundo, ela integra a dinâmica do direito de punir, um ponto em que a “ruína de corpos” benjaminiana é flagrante, nem por isso menos ignorada...
Apenas p/ ilustrar e antes de abordar especificamente a questão, relata-se uma situação real, semelhante a muitas outras que constantemente ilustram os estabelecimentos prisionais: em investigação relativa ao crime de tráfico de drogas, a polícia invadiu determinada residência e encontrando no local uma quantidade significativa de drogas efetuou a prisão de todas as pessoas ali presentes. Dentre eles estava Dona Maria, uma senhora negra de 82 anos de idade, mãe de um dos acusados e que se encontrava de passagem, a passeio, na casa da família do filho. Dona Maria tinha como comprovar que residia em outro município e que estava, na hora errada, no lugar errado. Não obstante, Dona Maria foi presa em flagrante e assim permaneceu durante 4 meses, até a data da audiência de instrução e julgamento, quando foi liberada pelo juiz e absolvida de todas as acusações. Dona Maria faleceu 6 meses após e, no seu último ano de vida, conheceu a realidade da prisão.
Muitos questionamentos decorrem da complexidade de casos como esse, destaco dois, relacionados à legalidade da prisão e à sua evitabilidade... No mundo da vida, Dona Maria recebeu tais respostas que, não obstante, chegaram tarde. Em consequência, talvez essa também seja uma das questões, encontrar uma metodologia que permita a esta discussão andar de jatinho e não “a pé”...
Neste contexto, juristas e legisladores levantam suas vozes para afirmar que o Projeto de Lei do Senado Federal n. 554/2011 está em tramitação, além de ter sido aprovado em primeiro turno, agora, em julho de 2016.
A par da questão temporal, a polêmica que permeia a audiência de custódia é vasta, tanto porque, mesmo antes de concluído o processo legislativo, o Conselho Nacional de Justiça “acordou” sua implantação, quando pelo fato de que tratados internacionais firmados pelo Brasil são olvidados repetidamente, apesar de ser matéria decidida, inclusive, em sede do Supremo Tribunal Federal (ADI 5240).
Dito de outra fora, o silêncio do CPP é irrelevante. O fundamento jurídico da audiência de custódia é produto da interpretação sistemática da legislação, compreendidos os direitos e garantias fundamentais expressos na constituição e os tratados internacionais como a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 7, item 5) e Pacto de Direitos Civis e Políticos (art. 9º, item 3), entre outros.
Bem, é claro que a regulamentação ainda não veio, mas apesar de a Constituição Federal estabelecer que somente a União tem competência para legislar sobre processo penal, a mesma norma dá aos Estados o poder de dispor sobre procedimento.
Porém, esta discussão é desimportante perto da força da Constituição e de seu bloco de constitucionalidade. O mínimo existencial está lá e o grande debate, portanto, deve ser o da efetividade, sob pena de ser ampliada, mais e mais, a ruína de corpos... Corpos e mentes que devem ser protegidos pela jurisdição. Afinal, quem mais do que a autoridade judicial para avaliar a flexibilização, ainda que temporária, de um direito fundamental?
Agora, isto não significa que a postura do CNJ deva receber apoio irrestrito até porque as razões que levaram o órgão a investir na iniciativa são extremamente incompletas. Em documentos e pronunciamentos oficiais sobre o assunto é recorrente o argumento do déficit de vagas no sistema prisional e do elevado número de presos provisórios. Entretanto, o questionamento é: e se nossos cárceres fossem adequados e suficientes, todas as prisões provisórias seriam legais, justas e inevitáveis?
Lembrem-se da Dona Maria... para ela, faria diferença?
E mais, somos humanos, cometemos falhas, nos equivocamos, nos excedemos... É tão terrível averiguar a correção de atos que afetem os direitos das pessoas? Esse parece ser o ponto: o direito e os erros possíveis... Aliado ao fato de que nosso sistema penal é seletivo e estigmatizante, dirigindo-se muito mais a pessoas do que a condutas.
Ainda, O CNJ não controla o que pensa o senso comum teórico dos juristas[4]. E não é um provimento, sozinho que vai alterar as crenças inquisitoriais dos atores jurídicos. Por isso, as mudanças são necessárias... mas são alterações a serem procedidas, também, no que sentem e acreditam muitos de nós...
Talvez esta devesse ser a campanha primeira: avaliar e questionar a efetividade dos valores constitucionais nas atividades subjetivas daqueles que constroem, interpretam e reinterpretam o Direito.
Este argumento encontra respaldo em relatórios da Anistia Internacional como “Estado dos Direitos Humanos no Mundo” (2015/2016), quando, na parte destinada ao Brasil, revela que por aqui “graves violações de direitos humanos continuaram sendo denunciadas, como homicídios cometidos pela polícia, tortura e maus-tratos de pessoas presas”[5]. Observações semelhantes constam de outros documentos como “Vc matou meu filho”[6], também da Anistia Internacional.
Paralelamente, o próprio CNJ reconhece que as audiências de custódia tem denunciado casos de violência policial e, principalmente, tem evitado prisões ilegais. Em publicação datada de junho de 2016, o órgão divulgou que os atos evitaram a prisão desnecessária de mais de 45 mil pessoas, sendo que das 93,4 mil audiências de custódia realizadas, 47,46% resultaram em liberdade, com ou sem a imposição de medidas cautelares.[7]
Entretanto, dados do IDDD (Instituto do Direito de Defesa), parceiro do CNJ na consolidação das audiências de custódia, mostram que em mais de 45% das audiências feitas em São Paulo, os réus não foram interrogados sobre maus-tratos e abuso policial durante a prisão em flagrante. Os números revelam ainda que membros do Ministério Público perguntaram sobre abusos policiais apenas em 1,36% das vezes, ao passo que os advogados, em somente 5,78% das audiências, que duraram, em média, menos de dez minutos.[8]
A questão então é muito mais profunda do que legislativa... Se nem mesmo a violência física sensibiliza, quiçá todas as outras formas de arbítrio usadas para subjugar e controlar o ser humano.
Neste contexto, parece inócuo apelar para a alteridade, pela aceitação do outro. Já que classe jurídica tem sido sim, extremamente indiferente. Podemos creditar tal panorama ao positivismo, ao individualismo ou, porque não, à incapacidade de amar.
Mas a complexidade, fonte de incertezas e indeterminações, pode também representar vários caminhos[9] de dignidade e respeito, alternativas possíveis de emancipação e cidadania[10], inclusive entre juristas, no sentido de uma crescente ruptura por e pela centralidade das pessoas em detrimento do arbítrio. No dizer de Ricardo Timm de Souza, trata-se de um convite à alteridade, ou uma passagem para uma “racionalidade ética como fundamento de uma sociedade viável”[11].
Então, ainda que boa parte de nós seja indiferente, sobram muitos... responsáveis por ampliar a crítica e reduzir as ruínas...
Em consequência, não é a atuação do CNJ ou a conversão em Lei do projeto n. 554/2011 que tornarão efetivas as audiências de custódia. Os que as tornarão reais no sentido da proteção das pessoas é a noção ampliada de que o ser humano importa.
As Donas Marias do mundo da vida, agradecerão... Ainda que essas mudanças andem a pé....
Notas e Referências:
ANISTIA INTERNACIONAL. Estado dos Direitos Humanos no Mundo. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2016/02/Informe2016_Final_Web-1.pdf. Acesso em 03 de agosto de 2016.
________________. Você matou meu filho. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Voce-matou-meu-filho_Anistia-Internacional-2015.pdf. Acesso em 03 de agosto de 2016.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Notícias. Disponível em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/82713-audiencias-de-custodia-ja-evitaram-45-mil-prisoes-desnecessarias-2. Acesso em 03 de agosto de 2016.
INSTITUTO DO DIREITO DE DEFESA. Violência policial não é questionada em mais de 45% das audiências de custódia. Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-06/violencia-policial-nao-e-questionada-em-mais-de-45-das-audiencias-de-custodia. Acesso em 03 de agosto de 2016
HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Trad. de Irene Borges-Duarte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
MATE, REYES. Meia noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin “sobre o conceito de história”. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo: Unisinos, 2011.
MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. de Eliane Lisboa, Porto Alegre: Sulina, 2006.
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós modernidade. Sâo Paulo: Cortez, 13ª ed., 2011.
SOUZA, Ricardo Timm. A racionalidade ética como fundamento de uma sociedade viável: reflexos sobre suas condições de possibilidade desde a crítica filosófica do fenômeno da “corrupção”. In A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Revista Sequência. Florianópolis, n. 3, volume 5, 1982.
[1] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. de Eliane Lisboa, Porto Alegre: Sulina, 2006.
[2] A análise benjaminiana critica o progresso como um fim em si mesmo, justificador de atrocidades e catástrofes em nome de um “porvir” que nunca chega. A história em Walter Benjamin é resignificada para assumir uma dimensão humana abrangente, em detrimento do historicismo, categoria acrítica que deixa de narrar o todo, em nome do relato dos vencedores e “progressistas”.
[3] MATE, REYES. Meia noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin “sobre o conceito de história”. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo: Unisinos, 2011, p. 203.
[4] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Revista Sequência. Florianópolis, n. 3, volume 5, 1982
[5] ANISTIA INTERNACIONAL. Estado dos Direitos Humanos no Mundo. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2016/02/Informe2016_Final_Web-1.pdf. Acesso em 03 de agosto de 2016
[6] ANISTIA INTERNACIONAL. Você matou meu filho. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Voce-matou-meu-filho_Anistia-Internacional-2015.pdf. Acesso em 03 de agosto de 2016
[7] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Notícias. Disponível em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/82713-audiencias-de-custodia-ja-evitaram-45-mil-prisoes-desnecessarias-2. Acesso em 03 de agosto de 2016
[8] INSTITUTO DO DIREITO DE DEFESA. Violência policial não é questionada em mais de 45% das audiências de custódia. Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-06/violencia-policial-nao-e-questionada-em-mais-de-45-das-audiencias-de-custodia. Acesso em 03 de agosto de 2016
[9] HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Trad. de Irene Borges-Duarte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
[10] SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós modernidade. Sâo Paulo: Cortez, 13ª ed., 2011.
[11] SOUZA, Ricardo Timm. A racionalidade ética como fundamento de uma sociedade viável: reflexos sobre suas condições de possibilidade desde a crítica filosófica do fenômeno da “corrupção”. In A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. GAUER, Ruth Maria Chittó (Org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
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Deise Helena Krantz Lora é Professora titular de Direito Processual Penal junto à Universidade Comunitária da Região de Chapecó. Mestre em Direito pela UFSC e Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS.
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Imagem Ilustrativa do Post: Handcuffed Girls Qiqi Lourdie December 05, 20103 // Foto de: Steven Deopolo // Sem alterações
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