Audiência de Custódia e a (i) lógica estatal na perspectiva dos tribunais

22/04/2017

Por Luana Aristimunho Vargas Paes Leme - 22/04/2017

A prisão em flagrante sempre foi muito criticada devido à sua característica administrativa e, até mesmo pela falta de regulamentação, pois, o Código de Processo Penal, antes da alteração legislativa advinda da Lei 12.403/2011, mencionava apenas que o flagrante seria comunicado ao juiz competente, deixando completamente ilimitada a referida prisão no contexto temporal.

A respectiva privação da liberdade, por se tratar de medida precautelar, dispensa a formalidade documental de apresentação do mandado de prisão (ordem escrita e assinada)[1], expedido pela autoridade judiciária competente, pois seu exercício está estritamente ligado ao momento em que o crime é praticado, ou logo após sua realização, antecedendo a manifestação prévia da autoridade judicial, daí ser um ato administrativo[2].

Mesmo que de forma tardia, a prisão em flagrante passou a receber tratamento adequado ao seu significado, no âmbito de aplicação e duração, ou seja, é utilizada no momento da flagrância delitiva, seguida da “imediata” judicialização do ato administrativo prisional, eis que, a privação da liberdade do preso em flagrante passa a submeter-se aos ditames processuais.

Porém, é essencial entender que não existe prisão em flagrante que perdure no tempo, ou seja, concluída a etapa de formalização do ato prisional, o flagrante acaba, esgota-se. Assim deveria ser.

A prisão em flagrante fundamenta-se em duas finalidades claras e inequívocas, as quais, por si só, configuram motivos razoáveis da dispensa do mandado judicial: 1) de um lado, evitar (ao menos tentar) a consumação delitiva ou o aprofundamento dos efeitos danosos do delito; 2) de outro, a prisão do possível autor do delito, bem como, da conservação dos indícios caracterizadores da materialidade e autoria do crime.

Dessa forma, influi sobre a certeza ou não das evidências da prática criminosa e assegura a atuação estatal em face do ato praticado pelo suposto infrator, sendo certo, ainda, que devido à sua pré-cautelaridade, deverá ser submetida ao crivo do juiz para a conversão ou não em medida cautelar.

Pois bem, conforme a Resolução nº 213, do Conselho Nacional de Justiça[3], a partir do dia 1º de fevereiro de 2016, toda pessoa presa em flagrante delito deve, obrigatoriamente, ser apresentada à autoridade judicial competente em até 24 horas da comunicação do flagrante, independentemente da motivação ou natureza do ato, para realização de audiência de custódia.

Momento em que será analisada a legalidade do ato prisional, eventual prática de tortura, a necessidade ou não da mantença do cárcere e, se for o caso, a decretação da prisão preventiva (artigos 312 e 313 do CPP), no entanto, se essa for considerada desnecessária (possível, formalmente cabível, porém, desnecessária) abre-se a possibilidade para a imposição de medidas cautelares, de forma substitutiva, diversas da prisão (art. 319 do CPP).

Necessário, esclarecer que, desde então, a prisão em flagrante delito passou a ser composta de 03 (três) atos essenciais: 1. Captura – é o ato de efetivamente prender o indivíduo que está praticando uma infração penal, ou seja, é a constrição física com possível imobilização daquele que está sendo preso; 2. Formalização – é a certificação formal de que todos os direitos inerentes ao indivíduo foram e estão sendo respeitados, com a efetiva elaboração do denominado Auto de Prisão em Flagrante (A.P.F.); 3. Audiência de Custódia – em caso de impossibilidade de fixação de fiança por parte da autoridade policial, esse deve efetuar o encaminhamento do preso à presença da autoridade judicial para a consequente audiência de custódia, que deverá manifestar-se quanto aos seguintes institutos: Relaxamento da Prisão ou concessão de Liberdade Provisória, Decretação da Prisão Preventiva ou imposição de Medidas Cautelares Substitutivas.

Ou seja, qualquer condução da audiência de custódia que fuja a essa lógica procedimental, pautada no contraditório, é de nítida nulidade.

Todavia, levando-se em consideração uma das motivações da Resolução do CNJ, a que se refere, especificamente, “ao contingente desproporcional de pessoas presas provisoriamente”[4], cabe uma análise, mesmo que superficial, quanto à observação ou não do prazo de “em até 24 horas da comunicação do flagrante” por alguns tribunais estaduais e federais do país, de acordo com suas respectivas resoluções e instruções normativas.

Com relação ao Tribunal Regional Federal da 2º Região (RJ e ES):

RESOLUÇÃO 31/2015, TRF 2, DE 18 DE DEZEMBRO DE 2015

Dispõe sobre a realização de audiência de custódia no âmbito da jurisdição da Seção Judiciária do Rio de Janeiro e da Seção Judiciária do Espírito Santo

Art. 1. As audiências de custódia serão realizadas, sempre que possível, no prazo de 24 horas após a prisão em flagrante.

Parágrafo único. Nos dias de expediente forense normal, as audiências de custódia serão realizadas no horário das 12 às 17 horas.

(...)

Plantões Judiciários

Art. 14. Nas Seções Judiciárias do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, as audiências de custódia serão realizadas pelo Juízo de Plantão quando não houver expediente forense normal.

§ 1°. No regime de plantão dos dias sem expediente forense, conforme definido na Consolidação de Normas da Corregedoria-Regional da Justiça Federal da 2ª Região, as audiências de custódia serão realizadas no horário das 12 às 17 horas. § 2°. Não havendo tempo hábil para a realização da audiência de custódia no mesmo dia em que ocorrer a prisão, o juiz competente, justificada a hipótese, poderá designá-la para o dia seguinte, observado o horário delimitado no parágrafo anterior.

Tribunal Regional Federal da 4º Região (PR, SC, RS):

RESOLUÇÃO CONJUNTA Nº 1, TRF 4, DE 13 DE ABRIL DE 2016

Art. 1º. A realização da audiência de custódia no âmbito da Justiça Federal da 4ª Região, nos termos da Resolução nº 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, dar-se-á mediante a apresentação de pessoa detida em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, em até 24 (vinte e quatro) horas da comunicação do flagrante à autoridade judicial competente.

§ 1º Considera-se ciente o juiz da prisão em flagrante a partir do recebimento do respectivo expediente através do sistema de processo eletrônico (Eproc). § 2º No caso de inoperância do sistema Eproc, a comunicação ao juízo da prisão em flagrante poderá, excepcionalmente, ser realizada pela autoridade policial por meio de ofício em meio físico, contando-se as 24 (vinte e quatro) horas previstas no caput de seu recebimento formal. § 3º As audiências de custódia que excederem o período de 24 (vinte e quatro) horas da cientificação do Juízo deverão ser justificadas e comunicadas à Corregedoria Regional em até 2 (dois) dias úteis, a contar também da ciência do magistrado acerca da autuação em flagrante.

Art. 2º. As audiências serão realizadas, ordinariamente, das 11 às 18 horas, inclusive durante o recesso forense do Judiciário Federal, compreendido entre 19 de dezembro e 6 de janeiro. 

Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:

INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 3/2016

(...) Art. 4º Nos termos do artigo 14 da Resolução 213/2015 do CNJ e levando em consideração à realidade local, na impossibilidade de efetuar o deslocamento da pessoa presa em flagrante delito ao local da audiência de custódia nos finais de semana e feriados, conforme previsão do artigo 2.º da Resolução 213/2015 do CNJ, não sendo possível a realização nesse período, as referidas audiências serão efetivadas no primeiro dia útil seguinte, devendo para tanto o magistrado adequar sua pauta.

Art. 5º Os autos de prisões em flagrante que tenham a comunicação efetuada nos finais de semana e feriados, cuja audiência não possa ser realizada nesta ocasião, serão encaminhados pela autoridade policial ao juiz de plantão que justificando a impossibilidade de realizá-la, decidirá nos termos do art. 310 do CPP e determinará a distribuição à vara competente após encerrado o plantão judiciário para concretização dos demais termos da audiência de custódia. 

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

RESOLUÇÃO Nº 29/2016

Art. 2º ­ Toda pessoa presa em flagrante delito será apresentada, sem demora, ao juiz competente, a fim de realizar se audiência de custódia.

Parágrafo único Por decisão judicial, devidamente fundamentada, será dispensada a apresentação do preso quando forem reconhecidas circunstâncias pessoais que a inviabilizem.

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

RESOLUÇÃO Nº 740/2016

(...) Art. 3º ... § 1º. As audiências deverão ser realizadas entre as 9h e 13h.

§ 2º. A pessoa detida deverá ser apresentada em juízo até às 10h, distribuindo-se o respectivo flagrante.

(...)

Art. 5º. Serão realizadas as apresentações e audiências de custódia, nos dias úteis...

Art. 6º. Nos casos dos artigos 4º e 5º, as distribuições no sistema informatizado oficial – SAJ-PG deverão ser realizadas de forma livre, no próprio Foro.

§ 1º. A pessoa detida deverá ser apresentada em juízo até às 12h. § 2º. As audiências deverão ser realizadas até às 14h. 

Observa-se que, em relação aos Tribunais Federais, há uma preocupação maior em respeitar o prazo de 24 horas previsto na Resolução, seja pela organização (em escalas) ou pela disponibilização de plantão judiciário aos finais de semana e feriados, bem como, durante o recesso forense.

Porém, o mesmo não ocorre quanto aos Tribunais de Justiça dos Estados do Paraná e Rio de Janeiro, os quais se utilizam (intencionalmente) de expressões dilatantes do prazo, como: primeiro dia útil seguinte e sem demora, respectivamente.

Exemplificando, se houver prisão em flagrante de um indivíduo na “sexta-feira santa/paixão de Cristo”, feriado nacional, e não houver na comarca juízo de plantão, a prisão em flagrante, inevitavelmente, durará 3 (três) dias, sexta, sábado e domingo, de acordo com a previsão contida na Instrução Normativa nº 3, do Tribunal de Justiça do Paraná, sendo a autoridade judicial informada sobre a prisão apenas na segunda-feira.

E quanto ao “sem demora”, o que seria? Difícil imaginar quando se está a falar de um dos bens mais importantes da vida, a liberdade[5], que aliada ou subtraída pelo tempo (sejam 3 dias ou 3 anos), esse que a todos se mostra de uma forma diferente, “tão suave como o vento que passa, pode ser o passar do tempo, mas tão severo e rude pode ser seu passar que leva tudo ao redor”[6].

Em relação à Resolução nº 740, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a preocupação está em delimitar os horários para a apresentação dos presos e a realização das audiências de custódia, com base no expediente forense, apenas. Sendo assim, quem for detido após as 10 horas (§2º) nas circunscrições previstas no artigo 3º, seria apresentado à autoridade judiciária apenas no dia seguinte, útil?

Seria a realidade diferente disso ou um pouco pior? Sabemos que na prática, há cidades do interior em que um delegado de polícia cumula 4, 5 cidades, sendo um investigador e/ou escrivão efetivamente responsável pela delegacia, quem acompanha a apresentação do preso, ouve, lavra o termo e, por fim, o recolhe ao cárcere. Cumpre-se a formalidade e aguarda-se a chegada da autoridade policial, para que, então, sejam analisadas as condições da prisão o que, muitas vezes, nem ocorre, ficando o delegado de polícia adstrito à mera assinatura do APF. Quiçá a existência de um plantão judiciário para a realização da tão idealizada audiência de custódia.

Ou seja, mesmo a Resolução nº 213 do CNJ, tendo como norteadores: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica); a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; os relatórios produzidos pelo Subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU e pelo Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária da ONU; o relatório sobre o uso da prisão provisória nas Américas da Organização dos Estados Americanos; o diagnóstico de pessoas presas (anos 2014 e 2015) apresentado pelo CNJ e o INFOPEN do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, recheada de discurso humanista, mais uma vez comprova-se que a simples edição de atos legislativos, por si só, não é capaz de dar efetividade à audiência de custódia, é necessário todo um contexto a ser implantado para o seu real alcance.[7]

Faltam condições, falta efetivo, faltou sensibilidade, é duro assumir, mas a audiência de custódia é natimorta, é ilógica.

As intenções, como na grande maioria das leis, são boas, visam à integridade física e psicológica do sujeito, a possibilidade de se evitar o seu contato com o cárcere, no entanto, o problema está na vontade (ou falta de) em resolver o próprio problema e para resolvê-lo requer-se, sobretudo, uma nova mentalidade.[8]

A gana em prender para demonstrar poder e responder aos anseios da mídia e do clamor público fez do cárcere a regra a que todos se submetem e pela qual todos esperam.


Notas e Referências:

[1]  CRFB, 1988: “Art. 5º... LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

[2] CPP, 1941: “Art. 301 - Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”.

[3] Conselho Nacional de Justiça, Resolução nº 213, de 15/12/2015.

[4]  Diagnóstico de pessoas presas apresentado pelo CNJ e o INFOPEN do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (DEPEN/MJ), publicados, respectivamente, nos anos de 2014 e 2015.

[5] CARNELUTTI, Francesco. O problema da pena. Tradução Ricardo Pérez Banega. São Paulo: Editora Pillares, 2015.

[6] VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento.

[7] MINAGÉ, Thiago. Prisões e Medidas Cautelares à luz da Constituição. 3. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016, 272 p.

[8] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. In: Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, apud, MINAGÉ, 2016, p.193.


Luana Aristimunho Vargas Paes Leme. Luana Aristimunho Vargas Paes Leme é Graduada em Direito pelas Faculdades Unificadas de Foz do Iguaçu - Unifoz. Pós-Graduada em Direito Tributário, com formação para o Magistério Superior, pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Pós-Graduanda em Ciências Criminais pela Universidade Estácio de Sá. Advogada. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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