Apesar das dificuldades para a implementação da, assim chamada, audiência de custódia no Brasil, parece não haver mais dúvidas sobre sua exigibilidade normativa, seja em decorrência da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7.5) e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 9.3), seja por causa da Resolução 213 CNJ.
Este último ato normativo determina que toda pessoa presa em flagrante delito seja obrigatoriamente apresentada, como regra, em até 24 horas após a comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão (art. 1º). Tratando-se de prisão em flagrante delito de autoridade com foro especial por prerrogativa de função, a apresentação do preso poderá ser feita ao juiz que o Presidente do Tribunal ou Relator designar para esse fim.
Entre as inúmeras autoridades que são detentoras dessa prerrogativa de foro, encontram-se os parlamentares estaduais, os distritais e os federais (Deputados Federais e Senadores). Como é sabido, em matéria penal, os Deputados Federais e Senadores serão julgados pelo STF, ao passo que os Deputados Estaduais e Distritais serão, na mesma matéria, julgados pelo respectivo Tribunal.
Sob o fundamento de melhor desempenharem suas funções parlamentares, o constituinte lhes concedeu, entre outras, a chamada imunidade relativa à prisão em flagrante (art. 53, § 2º), ou, como prefere o Min. Celso de Mello, um estado de relativa incoercibilidade pessoal (freedom from arrest), razão pela qual, ainda segundo o mesmo Ministro, “só poderão sofrer prisão provisória ou cautelar numa única e singular hipótese: situação de flagrância em crime inafiançável” (Inq 510/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 1.º.02.1991, Plenário).
Com efeito, nos termos do referido dispositivo constitucional, os membros do Congresso Nacional, desde a expedição do diploma, não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. E, nessa hipótese, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.
Essa norma é de reprodução obrigatória pelas constituições estaduais e pela lei orgânica distrital, razão pela qual os deputados estaduais e os distritais também são detentores dessa mesma prerrogativa, imunidade relativa à prisão em flagrante (art. 27 da CF).
O questionamento que norteia este texto é o seguinte: a quem compete realizar a audiência de custodia no caso de prisão em flagrante de parlamentar com foro especial por prerrogativa de função? À respectiva Casa legislativa ou ao Tribunal respectivo?
Para respondermos a esta indagação, tomemos como modelo de análise o caso dos Deputados Federais.
De acordo com o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, compete à Comissão de Constituição e Justiça avaliar, através de um parecer prévio, se a prisão em flagrante do parlamentar foi legal ou não, o que é feito após a oitiva do Deputado envolvido, o qual deverá estar assistido por defensor. Em seguida, o parecer será remetido ao Plenário, para que se decida sobre a manutenção ou não da prisão. O respectivo parecer só será aprovado pelo voto da maioria absoluta dos membros da Casa (art. 251).
A partir desse regramento, poderíamos imaginar, apressadamente, que a competência constitucional atribuída à Câmara dos Deputados para decidir sobre a prisão em flagrante de um Deputado Federal dispensaria a realização da audiência de custódia no STF. Ou melhor, que essa avaliação sobre a prisão em flagrante, feita pela Câmara dos Deputados, já seria a própria audiência de custodia. Este não nos parece, entretanto, a melhor compreensão. Vejamos.
A finalidade dessa audiência não se limita à avaliação da legalidade da prisão em flagrante ou da avaliação do estado físico ou psíquico do autuado, como propagaram muitos. Sua finalidade maior é a de garantir os direitos fundamentais do imputado, de tal forma que haja a menor restrição possível a tais direitos. E isso só será possível através da contrariedade argumentativa realizada pelo Ministério Público, pela defesa e pelo preso, como agora está previsto na Resolução nº 213 do CNJ (art. 8º § 4º). Esta mesma Resolução acrescenta outra finalidade, de cunho mais social, que é a adoção de quaisquer medidas necessárias à preservação de direitos da pessoa presa (art. 8º, § 1º, inc. IV), a exemplo do encaminhamento, pelo juiz, do preso em flagrante ao serviço de acompanhamento de alternativas penais, ao qual caberá a articulação com a rede de proteção social e a identificação das políticas e dos programas adequados ao caso ou encaminhando-o diretamente a tais serviços de atendimento (art. 9º, § 2º); ou ainda, encaminhamento do preso a serviços médicos ou psicossocial (art. 9º, § 3º).
Em síntese, objetiva-se dar concretude ao chamado contraditório prévio, que foi introduzido em nosso sistema de cautelaridade com a Lei nº 12.403/2011 (art. 282, § 3º, do CPP). Por esta razão, aliás, entendemos que a expressão audiência de custódia não traduz, da melhor forma, a natureza desse ato. Acreditamos que a locução audiência de garantia representa com maior fidelidade sua natureza, levando-se em conta suas finalidades e projetando com maior eficácia suas potencialidades.
Tratando-se de prisão em flagrante, o Ministro, na presença do Ministério Público e do defensor do autuado: a) relaxará a prisão ilegal; b) concederá liberdade provisória condicionada (art. 310, par. único, e art. 321, ambos do CPP); c) concederá liberdade provisória mediante fiança contracautelar (art. 310, inc. III do CPP); d) concederá liberdade e aplicará alguma(s) medida(s) cautelar(es) alternativa(s) à prisão; e) converterá a prisão em flagrante em preventiva, caso entenda não ser cabível nenhuma outra medida alternativa (art. 310, inc. II do CPP); ou f) mesmo decretando a preventiva, substituí-la-á pela prisão domiciliar, caso esteja presente alguma hipótese que a enseje (art. 318 do CPP); adotará quaisquer medidas necessárias à preservação de direitos da pessoa presa (art. 8º, § 1º, inc. IV, da Res. nº 213 do CNJ), a exemplo do encaminhamento do preso em flagrante ao serviço de acompanhamento de alternativas penais, ao qual caberá a articulação com a rede de proteção social e a identificação das políticas e dos programas adequados ao caso ou encaminhando-o diretamente a tais serviços de atendimento (art. 9º, § 2º, da Res. nº 213 do CNJ); ou ainda, encaminhamento do preso a serviços médicos ou psicossocial (art. 9º, § 3º, da Res. nº 213 do CNJ).
E nenhuma dessas medidas pode a Câmara dos Deputados adotar. Sua competência, neste particular, limita-se à avaliação da legalidade ou ilegalidade da prisão em flagrante do seu parlamentar e sobre a manutenção de sua prisão ou não. Somente o STF poderá tomar as outras medidas.
Além disso, ao menos desde a entrada em vigor da Lei nº 12.403/2011, essa competência da respectiva Casa legislativa para avaliar a prisão em flagrante do seu parlamentar perdeu rendimento, uma vez que, a partir da citada lei, ninguém mais poderá permanecer preso em flagrante, senão pelo menor tempo possível, que entendemos ser de 72 horas (24 horas na esfera policial e 48 horas até que o Juízo competente decida sobre alguma daquelas medidas já referidas). Ou seja, mesmo que a Câmara dos Deputados decida pela manutenção da prisão em flagrante do seu parlamentar, este necessariamente deverá ser solto pelo STF, isso porque sua prisão não poderá ser “convertida” em prisão preventiva, tendo em vista que esses parlamentares são imunes absolutamente em relação a qualquer outra prisão cautelar.
Desse modo, seja porque ninguém mais poderá permanecer preso em flagrante durante a persecução criminal, seja porque a maioria das medidas a serem adotadas após a prisão em flagrante de parlamentar está fora da competência da respectiva Casa legislativa, a audiência de custodia, nestes casos, deverá ser realizada no respectivo tribunal. Deputados Federais e Senadores da República, no STF. Deputados Estaduais e Distritais, no respectivo Tribunal.
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