AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO NÃO PRESENCIAL NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVIES: PRIMEIRAS REFLEXÕES SOBRE AS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI Nº 13.994/2020 NA LEI Nº 9.099/1995    

01/05/2020

Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

No dia 27 de abril de 2020 foi publicada a Lei nº 13.994, de 24 de abril de 2020. Esta Lei, fruto de Projeto de Lei da Câmara – PLC nº 1.679/2019, elaborado pelo falecido Deputado Federal Luiz Flávio Gomes, alterou a redação dos artigos 22 e 23 da Lei nº 9.099/1995, que trata dos Juizados Especiais Estaduais, para prever, especificamente, a possibilidade de realização da audiência de conciliação não presencial.[1] Estabeleceu, ainda, que a recusa em participar de tal audiência implicaria para o autor no encerramento do procedimento sem resolução do mérito (art. 23, c/c 51, I, da Lei nº 9.099/1995) e para o réu, na revelia (art. 23 c/c 20 da Lei nº 9.099/1995).

Eis o teor dos artigos alterados, já com a sua nova redação:

Art. 22. A conciliação será conduzida pelo Juiz togado ou leigo ou por conciliador sob sua orientação.

§1º Obtida a conciliação, esta será reduzida a escrito e homologada pelo Juiz togado mediante sentença com eficácia de título executivo.

§2º É cabível a conciliação não presencial conduzida pelo Juizado mediante o emprego dos recursos tecnológicos disponíveis de transmissão de sons e imagens em tempo real, devendo o resultado da tentativa de conciliação ser reduzido a escrito com os anexos pertinentes.

Art. 23.  Se o demandado não comparecer ou recusar-se a participar da tentativa de conciliação não presencial, o Juiz togado proferirá sentença.

De acordo com a justificativa do PLC nº 1.679/2019, o objetivo das alterações era inserir nos Juizados Especiais uma ferramenta tecnológica, já testada no âmbito da Justiça Trabalhista, capaz de aumentar a eficácia das audiências nos Juizados Especiais. Diz ainda o texto que a medida “terá impacto social positivo, contribuindo para a maior celeridade e efetividade da Justiça”.[2]

Infelizmente, no entanto, o referido projeto de lei foi aprovado e entrou em vigor[3] sem que tenha sido objeto de debates com a sociedade, com a comunidade jurídica ou mesmo com os tribunais. Por isso, faz-se necessário firmar alguns pontos para auxiliar a implantação dessa ferramenta nos Juizados Especiais.

Em primeiro lugar, é preciso assentar que a possibilidade da realização da audiência não presencial deve ser vista como um instrumento de facilitação do acesso à justiça e não de exclusão. Nesse sentido, é importante sublinhar que a formalização da audiência não presencial não pode ser imposta às partes, mas deve ser apresentada como uma alternativa à audiência presencial, quando possível e benéfica aos envolvidos. Isso fica claro na própria redação do texto normativo, que fala na “possibilidade” da prática da audiência por meio eletrônico.

Por certo, a recusa na utilização do meio digital deve ser devidamente motiva, especialmente quando os procedimentos para sua realização estiverem estabelecidos e em funcionamento, em observância aos princípios da efetividade e da cooperação. No entanto, é necessário ter especial atenção com a parcela dos advogados e das partes que não tem meios materiais ou cognitivos para atuarem no meio digital. São os chamados “vulneráveis digitais”.

Note-se que a vulnerabilidade digital não está associada, exclusivamente, à condição econômica das partes e dos advogados, embora seja ela um importante fator a ser considerado. Isso porque, mesmo pessoas com boa condição econômica podem se sentir desconfortáveis em utilizar mecanismos tecnológicos em razão de suas limitações pessoais. De fato, para eles, a imposição da realização da audiência não presencial pode representar uma violação às garantias processuais fundamentais, notadamente do contraditório e da ampla defesa. Por isso, a lei deveria ter dito, na nova redação do art. 23, que somente a recusa “imotivada” à participação da audiência não presencial levaria ao julgamento do feito.

Por outro lado, seria muito importante que os tribunais estabelecessem um cronograma de implantação das audiências não presenciais, definindo as regras de seu funcionamento e as estruturas de apoio, em diálogo com a comunidade jurídica, com as instituições e associações. Nesse sentido, uma sugestão importante seria que os tribunais desenvolvessem e disponibilizassem aplicativos, instaláveis em computadores e dispositivos móveis, para facilitar a realização do ato virtual, bem como oferecessem setores de atendimento para orientar as partes e os advogados sobre as medidas necessárias para participar do ato.

De qualquer modo, digno de nota o fato de a lei ter previsto que a audiência não presencial deverá ser realizada “em tempo real”. Isso significa dizer que a participação dos envolvidos no ato deverá ser simultânea e sincronizada, como numa “live” (ao vivo). Apesar da determinação, nada impede que os tribunais adotem, conjuntamente com a audiência não presencial, modelos assíncronos de conciliação. O mesmo aplicativo para realizar a audiência, por exemplo, poderia prever a troca de mensagens e documentos entre as partes, para antecipar a conciliação ou mesmo dispensar a realização da audiência. Nesse sentido, importante destacar que a Lei nº 9.099/1995, quando fala da audiência de conciliação emprega o termo “sessão” (arts. 16, 17, 20 e 21), diferentemente do que ocorre relação à audiência de instrução e julgamento, expressamente identificada como “audiência” (arts. 20, 24, 27, 28, 29, 31, 33, 34, 35 e 38). Dessa forma, é viável atribuir um sentido ampliado à fase de conciliação, permitindo que sua realização não se limite à audiência, presencial ou não.

A toda evidência, a alteração promovida pela Lei nº 13.994/2020 foi direcionada exclusivamente para a realização da audiência de conciliação e não para a realização da audiência de instrução e julgamento. Mas nada obsta, entretanto, que a audiência de instrução e julgamento possa também ser realizada por meio digital, com base no art. 236, § 3º, do CPC. Neste caso, será necessária a adoção das mesmas medidas aqui defendidas para a realização da audiência de conciliação não presencial.

Por certo, se a experiência implementada pela Lei nº 13.994/2020, for bem sucedida, será replicada em outros setores do Poder Judiciário. Isso porque os Juizados Especiais, em razão de suas caraterísticas, têm natural aptidão para servir como “balão de ensaio” para inovações, como ocorreu em relação à realização da audiência de conciliação antes da contestação (art. 16), a intimação ficta por mudança de endereço não comunicada nos autos (art. 19, § 2º), a concentração das matérias de defesa na contestação (art. 30), a integração da fase cognitiva com a fase executiva (art. 52, IV) etc.

Sem sobra de dúvida, a implementação da audiência não presencial poderá impactar fortemente sobre os advogados, especialmente aqueles especializados em realizar audiências, chamados de “audiencistas”. Trata-se de uma consequência indesejada, porém inevitável, dos avanços tecnológicos. Mas esses mesmos advogados podem recuperar parte da sua clientela ou até mesmo ampliá-la se conseguirem montar uma estrutura própria para participação nas audiências virtuais.

Por fim, impende frisar que a audiência de conciliação presencial, na maioria das vezes, envolve o emprego de energia, tempo e recursos, econômicos e materiais, não apenas para o Poder Judiciário, mas também para as partes e seus advogados. Com efeito, a audiência não presencial pode promover efetividade da conciliação, sem descurar da oralidade, sendo certo que ambas são diretrizes fundamentais dos Juizados Especiais (art. 2º da Lei nº 9.099/1995). Por isso, sua aplicação tem todos os elementos para representar um ganho para os envolvidos, desde que eles tenham condição de participar efetivamente de uma atividade digital.

 

Notas e Referências

[1]        Essa possibilidade, a bem da verdade, era possível, em razão das regras previstas no CPC (art. 236, § 3º).

[2]        A íntegra do PLC nº 1.679/2019 está disponível no seguinte endereço: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=5693978934CEC70A8BC8BFA5E631DA8E.proposicoesWebExterno2?codteor=1722279&filename=PL+1679/2019.

[3]        O art. 3º da Lei nº 13.994/2020 estabelece que o dispositivo entrou em vigor na data da sua publicação, ou seja, no dia 27 de abril de 2020.

 

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