Atos introdutórios no procedimento ordinário dos sistemas jurídicos brasileiro e italiano - Por Ernesta Perri Ganzo Fernandez

20/07/2016

Por Ernesta Perri Ganzo Fernandez - 20/07/2016

1 Introdução 

Os equívocos nas traduções jurídicas do italiano para o português e vice-versa originam-se, em grande parte, da proliferação de termos análogos, afins do ponto de vista acústico, mas que podem esconder diferenças conceituais enormes. Apesar de derivarem da mesma raiz romano-germânica, por força da evolução natural do Direito, cada um dos sistemas desenvolveu particularidades que, por vezes, alteraram o conceito de seus institutos jurídicos.

É importante ter sempre presente que o direito não é estático em nenhum sistema jurídico. Na Itália, por exemplo, começou nos anos noventa um grande processo de reforma da justiça, que ainda não acabou, o qual trouxe mudanças no processo, por vezes radicais, com a inclusão de novas normas através de inúmeras ementas e da técnica da novellazione. Da mesma forma, o Código de Processo Civil Brasileiro sofreu mudança radical nos últimos 5 anos, no afã de tornar mais célere a prestação jurisdicional pelo Estado.

Com o escopo de permitir a compreensão da estrutura dos atos introdutórios do procedimento ordinário do direito processual italiano e brasileiro[1], serão analisados perfunctoriamente os institutos processuais utilizados nos dois países. A partir desta exposição, realizar-se-á uma breve discussão acerca dos princípios que fundamentam as escolhas dos legisladores para um ou outro instituto.

Atos introdutórios do procedimento ordinário no Brasil e na Itália 

O processo é o método utilizado para aplicar a tutela jurisdicional e solucionar, citando Carnelutti[2] (2001, p. 49), “uma litis (lide), ou seja, um conflito de interesses, no qual um dos dois interessados coloca uma pretensão e o outro resiste a ela”. Compõe-se de uma sequência de atos documentados. A natureza do conflito de interesse a ser solucionado é que determina o procedimento a ser seguido, ou seja, o modo pelo qual os atos são sistematizados. Há procedimentos comuns (ordinário e sumário) e especiais, cada um deles inerente a um determinado tipo de causa.

No Brasil, para iniciar uma ação civil, é necessário que a parte autora, por meio de seu advogado, apresente uma petição inicial (FIGURA 1), endereçada ao juiz da causa.

[caption id="attachment_50278" align="aligncenter" width="500"]Figura 1 Petição inicial Fonte: Arquivo da autora, 2010. Figura 1 Petição inicial
Fonte: Arquivo da autora, 2010.[/caption]

A petição inicial é distribuída por sorteio nas comarcas onde há mais de um juiz competente. Ao receber a petição inicial, o escrivão a registrará e, em seguida, a autuará[4], ou seja, colocará uma capa sobre ela, na qual lavrará um termo mencionando o juízo, a natureza do feito, o número de seu registro nos assentos do cartório, os nomes das partes e a data do seu início.

A autuação cria, portanto, o volume físico do processo, os autos, uma pasta que contém folhas em que se documentam os atos processuais, ao qual serão acrescentados todos os outros documentos relacionados com a causa.

A petição inicial é o primeiro ato do processo civil e deve indicar: o juiz ou tribunal a quem é dirigida, os nomes, estado civil, profissão, domicílio e residência do autor e do réu, o fato e os fundamentos jurídicos do pedido, o pedido com as suas especificações, o valor da causa, as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados e o requerimento para a citação do réu[3].

O juiz, após verificar que a demanda atende a todas as exigências legais, manda citar o réu, expedindo uma ordem de citação (FIGURA 2). O Código de Processo Civil brasileiro adota como regra a citação por carta registrada, com aviso de recebimento (AR) e, em casos específicos, ou a requerimento da parte, a citação efetuada por oficial de justiça.

[caption id="attachment_50279" align="aligncenter" width="500"]Figura 2. Mandado de citação Fonte: Arquivo da autora, 2010. Figura 2. Mandado de citação
Fonte: Arquivo da autora, 2010.[/caption]

Os prazos processuais começam a ser contados a partir da juntada aos autos do aviso de recebimento da carta registrada ou da certidão do oficial de justiça que atesta ter cumprido ou não o mandado. O réu, depois de citado, terá um prazo de 15 dias para oferecer uma resposta[5].

Já na Itália, para dar início ao processo, o autor (attore/attrice) apresenta seu pedido através de um ato que dará o impulso inicial ao processo, chamado de Atto di citazione (FIGURA 3), notificado primeiro ao réu (convenuto) e, somente em seguida, à Corte.

[caption id="attachment_50280" align="aligncenter" width="500"]Figura 3. Atto di citazione Fonte: Arquivo da autora, 2010. Figura 3. Atto di citazione
Fonte: Arquivo da autora, 2010.[/caption]

À margem do Atto di citazione, encontra-se ainda a Procuração ad juditia outorgada ao advogado da parte autora (Mandato di procura alle liti).

O Atto di citazione é, portanto, um ato peculiar por ser de competência da parte autora e por nele constar tanto a convocação do réu, a vocatio in ius,  quanto a Demanda, o editio actionis (atto introduttivo del giudizio), junto com as razões de fato e de direito (FIGURA 4 – Convocação do réu ao juízo  e Demanda[6]). Ainda, neste mesmo ato é designada a data da primeira audiência (Udienza di comparizione), escolhida pelo próprio autor.

[caption id="attachment_50281" align="aligncenter" width="500"]Figura 4. Atto di citazione Figura 4. Atto di citazione: convocação do réu ao processo, designação da data da 1ª audiência e pedidos. Fonte: Arquivo da autora, 2010.[/caption]

A Citazione, juntamente com uma cópia, é levada ao oficial de justiça (Ufficiale giudiziario) que trabalha no Cartório geral (Cancelleria), para que a Notificação do réu (Notifica del convenuto) seja efetuada.

O documento entregue ao réu é uma cópia da Citazione. O original é devolvido pelo oficial de justiça ao autor, com uma Certidão (FIGURA 5) especificando para quem, quando e onde a notificação foi realizada

[caption id="attachment_50283" align="aligncenter" width="500"]Figura 6. Relazione di notifica ou Relata di notifica. Fonte: Arquivo da autora, 2010. Figura 6. Relazione di notifica ou Relata di notifica.
Fonte: Arquivo da autora, 2010.[/caption]

Considera-se o momento em que a Notificação é efetuada, referindo-se para tanto à Certidão feita pelo oficial de justiça, como momento em que inicia o contraditório, mas o processo ganha vida perante o juízo somente a partir do momento em que é feita a Inscrição no Registro Geral e o depósito da pasta da parte autora. Antes disso o juiz não sabe nada sobre a lide, pois não teve acesso ao Atto di citazione ainda. Para aforar a ação, depois de o réu ter sido notificado adequadamente, a parte autora deve providenciar a Inscrição do processo no Registro Geral das ações (Ruolo Generale), feita no protocolo do Tribunale (Juízo de primeiro grau), que assim poderá atribuir um número ao processo.

[caption id="attachment_50284" align="aligncenter" width="590"]Figura 7. Nota di iscrizione a ruolo Figura 7. Nota di iscrizione a ruolo. Fonte: Arquivo da autora, 2010.[/caption]

A Inscrição no Registro Geral (Iscrizione a ruolo) é realizada mediante o depósito de um Requerimento de Inscrição no Registro (FIGURA 6), devidamente preenchido e junto com a Pasta da parte (Fascicolo di parte), no prazo de 10 dias a partir do momento em que a Notificação ao réu é efetuada.

O Requerimento de Inscrição no Registro Geral é a solicitação oficial da parte para que o processo seja registrado. Contém todos os dados: os nomes das partes, dos procuradores, o objeto da demanda, a data em que foi efetuada a Notificação da Convocação e Demanda ao réu (Atto di citazione), data da primeira audiência de comparecimento.

Junto com o requerimento de inscrição deve ser entregue a pasta da parte autora, que contém o original do Atto di Citazione com a Certidão de notificação ao réu, a procuração outorgada ao advogado, se já não estiver presente à margem do Atto di citazione, e os documentos juntados aos atos (offerti in comunicazione).

O serventuário do protocolo comunica instantaneamente o número de registro do processo e fará a autuação da Pasta do processo (Fascicolo di processo), que conterá todos os atos, em original se forem do juiz, em cópia livre se forem atos das partes.

O réu deve apresentar sua defesa antes da primeira audiência entregando ao protocolo do Tribunale (Juízo de primeira instância) a Pasta do réu (Fascicolo del convenuto), que contém o Ato de Resposta (Comparsa di Risposta) com toda a defesa, a copia da Citazione notificada, a procuração para o advogado, e documentos que dão fundamento à defesa (Documenti offerti in comunicazione).

3 Elementos característicos dos atos introdutórios do procedimento ordinário nos DOIS sistemas jurídicos 

O Atto di citazione italiano é um ato do autor endereçado ao réu, entregue ao oficial de justiça, contendo tanto a convocação do réu quanto a demanda (a petição inicial), dirigida também ao juiz. É o ato introdutório da parte autora, ato inicial, propulsor da ação judicial.

Nos casos de demandas trabalhistas (ou de procedimentos especiais) a forma de iniciar o processo é semelhante a do sistema brasileiro. O autor apresenta uma Petição inicial (Ricorso) direcionada à Corte e em seguida à outra parte. O conteúdo do ato introdutório é basicamente o mesmo do Atto di citazione. Tanto a Citazione quanto o Ricorso devem conter as informações exigidas pelo art.163 do Código Processual Italiano.

Analisando-se o quadro sinótico a seguir, pode-se notar que os primeiros cincos elementos da petição inicial do processo civil brasileiro estão contidos no Atto di citazione italiano (ou no Ricorso). Os restantes elementos dizem respeito à convocação do réu e estão, grosso modo, incluídos no mandado de citação brasileiro, podendo ser encontrados na terceira coluna do quadro sinótico.

[caption id="attachment_50285" align="aligncenter" width="570"]Figura 8. Quadro sinótico com os principais elementos da Petição Figura 8. Quadro sinótico com os principais elementos da Petição Inicial, Atto di citazione e Mandado de citação. Fonte: elaboração da autora, 2010[/caption]

4 OS PRINCÍPIOS NA INTRODUÇÃO DA INSTÂNCIA NOS DOIS SISTEMAS: PRINCÍPIO DA DEMANDA OU DA INICIATIVA DAS PARTES, PRINCÍPIO DISPOSITIVO E PRINCÍPIO DO IMPULSO OFICIAL

No processo civil resolvem-se as controvérsias surgidas entre as pessoas (físicas e/ou jurídicas). O processo inicia quando uma parte quer que o judiciário tutele o seu direito: se alguém sofreu um dano, não é obrigado a entrar em juízo, pois pode, por exemplo, não agir ou ainda entrar em acordo extrajudicialmente com a parte, sem a intervenção do juiz. O processo civil, tanto na Itália quanto no Brasil, tem origem tão somente quando o autor, não conseguindo, ou não querendo, uma negociação com a outra parte, apresenta uma demanda judicial contra o réu. É este um dos princípios que norteiam o Direito Processual dos dois sistemas jurídicos, o princípio da demanda, ou seja, o direito de demandar e invocar a tutela jurisdicional, que é um direito sujeito tão somente ao livre arbítrio do seu titular.

Trabucchi (1964, p. 56) comenta com muita propriedade da seguinte forma:

Muitos direitos são violados diariamente: em decorrência de um dano, o indivíduo não pode exercer a autotutela para que o seu próprio direito seja respeitado e a ordem perturbada seja reestabelecida; ele tem o poder de requerer a intervenção do Estado em sua defesa, ou seja, ele tem o poder de ação (Celso: nihil aliud est quam actio jus persequendi indicio quod sibi debetur). Quando um conflito de interesses é caracterizado por uma pretensão, contestada ou não satisfeita, teremos uma lide, que deve ser submetida a juízo através de uma ação.

A ação é um direito de carater público, pois se exerce à guisa de pretensão em face do Estado; é como fosse uma compensação, um retorno equo, entregue pelo Estado ao individuo ao tirar-lhe o poder de fazer justiça por si só[7]. [tradução livre do original] 

Desta forma, a relação processual que se instaura com a demanda do autor, não será mais bilateral. Com a intervenção do Estado, representado pela figura do juiz, a relação transforma-se em trilateral.

O art. 262 do Código de Processo Civil brasileiro reforça o princípio da iniciativa das partes, combinando-o com o princípio do impulso oficial[8], mitigando, assim, um terceiro princípio que rege as relações processuais, o princípio dispositivo. Neste sentido já comentava Theodoro Junior (1996, p. 26)

Caracteriza-se o princípio inquisitivo pela liberdade da iniciativa conferida ao juiz, tanto na instauração da relação processual como no seu desenvolvimento. Por todos os meios a seu alcance, o julgador procura descobrir a verdade real, independentemente de iniciativa ou a colaboração das partes. Já o princípio dispositivo atribui às partes toda a iniciativa, seja na instauração do processo, seja no seu impulso. [...]

Modernamente, nenhum dos dois princípios merece mais a consagração dos Códigos, em sua pureza clássica. Hoje as legislações processuais são mistas e apresentam preceitos tanto de ordem inquisitiva como dispositiva. [sem grifo no original]

Arenhart (2006, p. 2) também afirma:

Dois são os fundamentos mais essenciais para a outorga ao interessado do poder de iniciar a prestação jurisdicional e determinar o seu objeto. De um lado, tem-se a clássica concepção de que, por tratar o processo civil predominantemente de interesses privados, é razoável que se dê às partes a prioridade na escolha do momento em que a proteção ao interesse deve ser realizada, bem como a determinação do litígio que será examinado pelo Poder Judiciário. Afinal, se os interesses privados são, em princípio, disponíveis, disponível também deve ser a sua forma de proteção. Como lembra Liebman, a respeito do tema, tomando-se por pressuposto que o objeto do processo apenas trate de interesses privados das partes, o princípio da demanda (e também o dispositivo) nada mais é que decorrência do princípio geral que reserva à vontade das partes a disposição de suas relações jurídicas privadas. [sem grifo no original]

Sandes (2004, p. 2) ensina que a lei encarrega o juiz da direção do processo através o impulso do procedimento (art. 262 do CPC – o impulso oficial), pois o processo é “instrumento público de exercício de uma função pública – a jurisdição”, apesar ser das partes “o interesse primário pela solução dos conflitos em que estão envolvidas”. Segundo o autor:

Ao enunciar que o processo civil inicia-se por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial, o art. 262 do CPC, deixa clara a distinção entre iniciativa e impulso, sendo aquela absolutamente privativa das partes, mas cabendo o juiz endereçar o destino final os processo que, por iniciativa de parte, tenham sido iniciados. [...]

Embora possam as partes ter disponibilidade das situações de direito material, pelas quais litigam, não pode o Estado-juiz permanecer à disposição do que elas fizerem ou omitirem no processo, sem condições de cumprir adequadamente na função. O processo não é um negócio ou mesmo um jogo entre os litigantes, mas uma Instituição Estatal.

A citação é ato processual mais relevante no direito adjetivo, que permite o instaurar-se do contraditório, consolidando a relação processual. O fato de na Itália ela ser incumbência da parte autora, antes mesmo da ação ser ajuizada, é reflexo do princípio dispositivo. A ação é um direito da parte, que dela pode dispor, quando e se lhe interessar. Instaurar um contraditório através do oficial de justiça, mas sem ter iniciado propriamente o processo perante o judiciário, dá as partes mais uma chance de entrarem em acordo, extrajudicialmente.

Afinal, pode ser interesse do réu não querer enfrentar um longo processo, despesas processuais, honorários, e assim, quando receber a notificação extrajudicial do Atto di citazione, lhe se apresenta mais uma chance de entrar em acordo com a parte autora antes do aforamento.

A parte autora, também, pode não ter interesse propriamente em um processo, mas, precisando se precaver, interrompendo prazos e prescrições, dá ciência oficial ao réu do contraditório, convidando-o para dirimir a lide na sede judicial, no dia e hora constantes na citazione (audiência por hora certa).

Antes de prosseguir é interessante considerar, para buscarmos os princípios que deram origem aos atuais sistemas processuais, o legado do direito romano aos sistemas jurídicos que lhe sucederam, pois, apesar das transformações ocorridas, nos permite entender melhor a construção do direito moderno. Muitas regras e princípios atuais remontam ao período clássico do direito romano.

Na evolução do direito processual romano se distinguem três períodos diferentes, conforme Alves (1998, p. 194), com três sistemas assim diferenciados: o primeiro período, no sistema das legis actiones, em que o direito era aquele previsto e tipificado na lei das XII Tábuas, ou seja, baseado nas “ações da lei” (legis actiones); o procedimento era oral e as partes postulavam pessoalmente. No volume I de Direito Romano, o autor esclarece:

Modernamente, quando alguém move uma ação contra outrem, este toma conhecimento dela pela citação (chamamento do réu a Juízo), que, por ordem do magistrado, lhe faz um funcionário do Juízo (o oficial de justuça).

[...] Em Roma, no processo das ações da lei, o panorama era diverso. A in ius vocatio (o chamamento do réu a Juízo) ficava a cargo do autor, que, de acordo com os preceitos contidos na Lei das XII Tábuas, ao encontrar, na rua, o réu, devia chamá-lo a Juízo, empregando termos solenes (verba certa). Se o réu se recusasse a atender, a Lei das XII Tábuas determinava que o autor tomasse testemunhas e conduzisse o réu à presença do magistrado, ainda que tivesse de empregar a força. [...] Conduzido o réu pelo autor à presença do magistrado competente, iniciava-se a fase in iure.

Mais adiante, Alves (1998, p. 216) explica o sistema do segundo período, o formulário (per formulas), e nos revela que também neste tipo de processo o desenrolar da instância previa a vocatio in ius, sendo ainda incumbência do autor providenciar que o réu comparecesse à presença do magistrado. Quanto ao terceiro período, o “extraordinário” (cognito extraordinária), sempre Alves (1998, p. 291-294) assinala o seguinte:

Já a Cognitio extraordinaria (o processo extraordinário) surgiu, em Roma, para dirimir questões de natureza administrativa ou policial. Não se tratando de matéria sujeita à jurisdição cível, os magistrados, para solucionar esses conflitos, não se atinham às regras do ordo iudiciorium privatorum, e, assim, mandavam citar, para comparecer à sua presença, a pessoa contra a qual alguém se queixara[...]

Os princípios que vigoraram quanto à introdução da instância, no processo extraordinário, foram os que mais sofreram variação no curso do tempo. Uma regra, porem, persistiu constante [no processo extra ordinem]: a participaçãoao contrário do que ocorria nos dois sistemas processuais anterioresda autoridade publica no chamamento do réu a juízo. [sem grifo no original] 

Ficam assim caracterizadas duas fases iniciais em que vigorava o sistema da vocatio in ius, exercida pelos autores nas ações cíveis, e uma terceira fase, dita extraordinária, em que houve uma inversão da incumbência de instaurar o contraditório, com a participação da autoridade pública, nas questões de natureza pública. Entretanto, segundo quanto expresso por Alves, o processo extra ordinem, aos poucos, envolveu também a jurisdição cível.

Na Itália, cujo sistema jurídico também é herança dos romanos, vigora o mesmo princípio da demanda já mencionado: as partes são titulares da ação e elas têm a plena disponibilidade desta titularidade, salvo em algumas matérias, que o direito substancial subtrai da disponibilidade dos particulares. Assim lecionou o juiz Pagliani (2005, p. 1), durante a Terceira Semana de Estudo organizada pelo Conselho Superior da Magistratura Italiana:

O nosso ordenamento jurídico, ao disciplinar os direitos dos indivíduos, também reconhece-lhes a disponibilidade da própria tutela. “Todos, estabelece o art. 24 da Constituição italiana, podem ajuizar uma ação para tutelar seus próprios direitos e interesses.

[...] No âmbito do processo civil este preceito se traduz com o principio da demanda, disciplinado pelo art. 99 do C.P.C italiano. A ratio desta norma é encontrada na disponibilidade da tutela jurisdicional daquele que tem a intenção de atuar em juízo: o titular do direito, com discricionariedade, decidirá se usará ou não este poder jurisdicional para defender o direito substancial de que eventualmente dispõe[9]. [tradução livre do original]

Vale a pena ressaltar de novo que no sistema italiano o principio dispositivo, ou princípio da demanda, vigora inclusive quanto ao Atto di citazione, permanecendo incumbência da parte autora a vocatio in ius (Convocação do réu ao processo ). Tão somente nos procedimentos especiais e nas causas de matéria trabalhista é que o legislativo tirou do autor esta disponibilidade no intuito de simplificar os procedimentos em prol da parte mais fraca.

Ainda Pagliani (2005, p. 5), comenta a este respeito que “a Citazione é o ato que dá vida ao processo, concretizando o elemento suficiente ao escopo – o contato entre as partes – e fixando seu conteúdo essencial.”[10] A rigor, sempre conforme o autor, o Atto di citazione inicia o procedimento ordinário, pois nos procedimentos especiais ele é substituído pelo Ricorso (Petição do requerente), que é um ato introdutório cuja principal característica é o fato dele ser dirigido antes ao juiz, que após ter fixado a primeira audiência, manda citar a outra parte

A propósito do Ricorso, o juiz Mario Barbuto (1994, p. 9-10), analisa o seguinte[11]:

Lembramos que o Ricorso é um ato da parte (o autor, que leva o nome de Requerente) que pretende promover uma ação contra um demandado [...] o ato, no entanto, é dirigido ao juiz, para que o próprio juiz, através de despacho, fixe uma audiência de comparecimento das partes. [...]

Este tipo de técnica de vocatio in ius, implica uma mudança na sequência dos ângulos do triangulo processual: autor-juiz-réu em vez de autor-réu-juiz. [...]

O objetivo imediato é uma vantagem em termos de organização e de tempo, porque permite ao juiz de agendar de forma autônoma as audiências de comparecimento das partes, mas parte da doutrina enxerga também um leve indicio de um contexto em que o [interesse] público tende a derrotar o [interesse] privado, haja vista o Ricorso ser uma forma de introdução da ação vagamente inspirada no direito público.   [sem grifo no original – tradução livre]

De fato, Tarzia (2005, p. 127), comentando acerca da “interminável duração das lides civis” [12], considera que a grave situação em que se encontra o judiciário em muitos países inspirou também o legislativo italiano a criar remédios processuais de varias naturezas, procedimentos sumários, especiais, ou seja, procedimentos reservados à algumas categorias de sujeitos e a determinadas lides, submetidas ao sistema do Ricorso. Segundo o autor:

Os motivos podem ser resumidos no fato que nos processos sujeitos a rito especial é presente uma parte fraca (o trabalhador, o locatário, o comodatário de imóveis urbanos). Daí a exigência de uma tutela jurisdicional diferenciada, capaz de compensar o desequilíbrio de posição entre as partes: entre a parte mais forte, que poderia resistir por muito tempo à iniciativa judiciária da outra, e a parte fraca, que necessita, ao contrario, de uma tutela privilegiada quanto aos modos e tempos do processo.[13] [sem grifo no original, tradução livre]

No processo do trabalho na Itália, por exemplo, a solução encontrada foi, exatamente, a de substituir o processo ordinário com um processo mais rápido e concentrado, que se inicia com o Ricorso.

Com palavras singelas, discorrendo sobre as novas perspectivas do processo civil nos estertores do século passado, Aragão (2000, apud Tarzia, 2005, p. 127) sugere buscar soluções alternativas para resolver o problema da judicialização da sociedade, inclusive no judiciário brasileiro:

No limiar do novo século não se conhece formula capaz de resolver o mais grave problema do processo civil: o volume crescente de litígios a afligir todos os países; alguma houvesse, por certo teria sido adotada e copiada. Devemos contentar-nos com paliativos. [...] convém alterar rumos e estruturas, simplificar e eliminar procedimentos, corrigir abusos e distorções, adotar técnicas modernas, incrementar soluções alternativas de disputas, tudo, porém, sabendo não existir receita milagrosa a prescrever.

Ao que tudo indica, a solução que permita fornecer a derradeira justiça está longe de ser achada, aqui e alhures.

5 Conclusão 

Este artigo apresentou um pequeno estudo acerca das diferenças e semelhanças entre os atos introdutórios de ambos os direitos processuais, brasileiro e italiano. Discorreu sobre os principais institutos processuais: a petição inicial, a citação, o Atto di citazione e o Ricorso e os princípios que lhes regem.

Há uma questão que parece ser comum a ambos os sistemas: o desafio da efetividade jurisdicional em uma era de imediatismo, na qual a resposta tem que ser rápida e eficaz, sem perder a acuidade. A sociedade atual, brasileira ou italiana, busca, no judiciário, a resposta para seus problemas e conflitos estruturais. E cada sistema, a sua maneira, procura dar a melhor solução.

Por isso a importância de se conhecer as fórmulas alienígenas, pois o inteligente aprende com seus erros, mas o sábio aprende com o erro dos outros.


Notas e Referências:

[1] A origem romano-germânica dos sistemas jurídicos brasileiro e italiano propicia a existência de falsos cognatos que podem induzir ao erro. É importante conhecer a estrutura e a natureza de cada instituto para que os sentidos dos vocábulos não sejam desvirtuados.

[2] Francesco Carnelutti (18791965) foi um dos mais eminentes advogados e juristas italianos e o principal inspirador do Código de Processo Civil italiano (CPC italiano).

[3] Código de Processo Civil (CPC brasileiro), art. 282.

[4] CPC brasileiro, art. 166.

[5] A resposta do réu vem na forma de uma contestação, exceção ou reconvenção (CPC, art. 297).

[6] N.d.A. Não sendo possível uma tradução literal para o termo “Atto di citazione”, pois a familiaridade com o termo Citação levaria o leitor a um equívoco, a  possível solução oferecida é “Convocação do réu ao processo e Demanda”, ou também “Convocação do réu e Demanda ”, na tentativa de evitar a confusão com outros institutos do Direito Processual brasileiro, tais como o Chamamento ao Processo (CPC, art. 77)  e a própria Petição Inicial, deixando propositadamente o texto com “sotaque alienígena”, de maneira tal que o leitor sinta que o conteúdo (conceito) pertence a outro contexto jurídico.

[7] Nella vita di ogni giorno molti diritti vengono violati: in seguito a una lesione, il soggetto non può direttamente provvedere per il rispetto del prioprio diritto e la reintegrazione dell’ordine turbato; esso ha il potere di chiedere l’intervento dello Stato a propria difesa, ha cioè il potere di azione (Celso: actio nihil aliud est quam ius persequendi indicio quod sibi debetur). Quando un conflitto di interessi è qualificato da una pretesa, contestata o insoddisfatta, si ha la lite, che deve essere portata in giudizio appunto con l’azione. L’azione costituisce un diritto di natura pubblicistica; esso infatti si applica come pretesa verso lo Stato; è quasi un compenso, un utile equivalente, che lo Stato dà alla persona nel momento in cui le toglie il potere di farsi giustizia da sè.

[8] Art. 262 do CPC brasileiro: “O processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial.”

[9] “Il nostro ordinamento giuridico, nel disciplinare i diritti dei singoli, riconosce allo stesso tempo la disponibilità della loro tutela; “tutti – recita l’art. 24 Cost.- possono agire in giudizio per la tutela dei propri diritti ed interessi legittimi ”. [...] Nell’ambito del processo civile tale prescrizione si traduce nel principio della domanda, così come disciplinato dall’art. 99 C.p.c. 1. La ratio di tale norma si rinviene nella disponibilità della tutela giurisdizionale da parte di chi intende agire in giudizio: il titolare del diritto discrezionalmente deciderà se avvalersi o meno della potestà giurisdizionale per la difesa di un proprio diritto sostanziale di cui possa disporre.”

[10] “... la citazione è l’atto che dà vita al processo, ne concreta l’elemento all’uopo sufficiente – il contatto tra le parti – e ne fissa il contenuto essenziale. Più correttamente è l’atto che inizia il procedimento ordinário. Nell’ambito dei giudizi speciali, il sistema della citazione introduttiva è largamente disatteso e viene sostituito da quello del ricorso. L’atto di citazione contiene, pertanto, effettivamente la vocatio in ius, a differenza, appunto, del ricorso, che è diretto prima al giudice e poi, solo dopo la fissazione dell’udienza da parte di questo, alla parte.”

[11] “Ricordiamo che il ricorso è pur sempre un atto della parte (dell’attore, che prende il nome di ricorrente) che vuole promuovere una causa nei confronti di un convenuto (che, nel caso disciplinato dall’art. 22 della legge n. 689/81, è una pubblica amministrazione); l’atto è diretto però al giudice, affinché sia il giudice stesso a fissare con un suo provvedimento l’udienza per la comparizione delle parti. Tale tecnica di vocatio in ius, comporta un cambiamento della sequela degli angoli del triangolo processuale: attore-giudice-convenuto, anziché attore-convenuto-giudice. Il fine immediato è um vantaggio in termini organizzativi e temporali perché permette al giudice di programmare in modo autonomo le udienze di prima comparizione, ma la dottrina intravede anche un debole indice di un clima culturale in cui il pubblico tende un po’ a sconfiggere il privato, perché il ricorso è una forma di introduzione della causa di ispirazione vagamente pubblicistica.”

[12] Durata interminabile delle liti civili, expressão que o autor remete à Chiovenda, ilustre jurista italiano.

[13] “I motivi si possono riassumere nel rilievo che nei processi soggetti al rito speciale è presente uma “parte debole” (il lavoratore, il conduttore, l’affittuario, il comodatário di immobili urbani) contrapposto (per uma valutazione típica, a priori) alla parte “forte” del rapporto (il datore di lavoro, il locatore, il concedente, il comodante). Da qui la ritenuta esigenza di una “tutela giurisdizionale differenziata”, atta a compensare lo squilibrio delle posizioni delle parti: di quella forte, che potrebbe resistere a lungo all’iniziativa giudiziaria dell’altra, che necessita invece di uma tutela privilegiata nei modi e nei tempi del processo.”

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Publicado anteriormente pela Revista da Unisul De fato e De direito.


Ernesta Perri Ganzo FernandezErnesta Perri Ganzo Fernandez é Advogada, tradutora e intérprete. Tem experiência na área de tradução de documentos jurídicos e empresariais, com ênfase em direito contratual. Dedica-se ao estudo comparado das terminologias jurídicas, brasileira e italiana. Pesquisadora na área do Direito de Autor do tradutor. Vice-presidente da Associação Catarinense de Tradutores Públicos. Mantem a página "Pílulas de direito para tradutores e presta consultoria jurídica ao SINTRA (Sindicato Nacional dos Tradutores) e às associações de tradutores e intérpretes do Brasil (ABRATES, JURAMENTADOS UNIDOS e CONATI). 


Imagem Ilustrativa do Post: towards the low-paper office :-) // Foto de: Rosmarie Voegtli // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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