Ativos Digitais e a interação entre os dois mundos — NFTs (Tokens Não Fungíveis)  

10/03/2022

A inovação tem ocorrido com muita velocidade, e em todos os segmentos da Sociedade. O Token, por exemplo, no universo das cripto é a representação de um ativo.

O conceito de propriedade sobre ativos não classicamente cogitados, ao menos pelos conservadores (e pelos nem tanto), tem tido embates importantes no campo do direito especialmente porque muitos conceitos são criados ou modificados pelas práticas do mercado e pelos avanços tecnológicos.

É a discussão, por exemplo, da “propriedade” no mundo digital, e como proceder a integração entre este e o mundo real com aceitável segurança jurídica.  

Adaptar o que é razoavelmente aceito como apropriável no ambiente de integração entre esses dois mundos, e aí as questões que envolvem também o metaverso, desafia não apenas a divisão clássica entre bens fungíveis e infungíveis, mas toda a construção dos modelos a respeito do direito de propriedade. A tarefa é ainda mais difícil em razão do descompasso entre as práticas de mercado e a edição legislativa, em um País que tem, como principal fonte do direito, a lei.   

As práticas do mercado têm apresentado soluções importantes na maneira de operar os ativos no mundo digital, atualmente potencializados.

O marco legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador (Lei Complementar nº 182/2021), em que pese algumas críticas já destacadas por ocasião do texto publicado em 24/06/2021[i], representa um avanço na atuação da empresa caracterizada pela inovação aplicada ao modelo de negócio ou a produtos ou serviços ofertados.

A bandeira da inovação e os marcos regulatórios têm atraído investidores de diferentes tipos durante o ciclo de vida das empresas inovadoras, aqui se destacando o “mercado digital”. 

Com a revogação da primeira parte do Código Comercial de 1850 pelo Código Civil de 2002, é este que se aplica tanto para os contratos civis quanto para os empresariais/mercantis, mesmo aqueles originados do ambiente da internet. Ressalva-se, porém, que a legislação especial (extravagante) também se aplica quando se está diante das instituições financeiras e do mercado de capitais. O local da celebração dos contratos e o foro de discussão também possuem suas especificidades e implicações decorrentes do pacto, sendo que, em inúmeras vezes, envolvem regras e acordos internacionais, pois, nos termos do art. 9º, parágrafo 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, o lugar da contratação é aquele de residência do proponente, como regra, mas nos contratos celebrados pela internet, será o local da sede da pessoa física do proprietário do site onde estiver instalado o computador que dá o suporte[ii].

Mais detidamente, para que se possa tratar da representação desse ativo, como define a doutrina civilista, um bem fungível é aquele que não ostenta uma característica peculiar, mas que pode ser plenamente substituído por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade (art. 85, do CC), v.g., dinheiro, alimentos e eletrodomésticos.[iii]

Doutro vértice, a despeito de o legislador não trazer uma definição explícita dos bens infungíveis, a simples definição do artigo 85, do CC, autoriza inferir, a contrario sensu, que são aqueles bens que não podem ser substituídos por outros de iguais características justamente por ostentarem uma sensível excentricidade, tais como as esculturas de Michelangelo, os escritos de Pero Vaz de Caminha e outras tantas obras artístico-literárias dotadas de unicidade no mundo dos fatos.

A concepção que circunda a gênese dos NFTs é a nova tendência da chamada tokenização, sucessora do conceito instagramável, que atualmente assume o protagonismo no mercado digital, movimentando mais de R$ 130 bilhões em 2021[iv]. Estes códigos numéricos criptográficos têm originado uma nova realidade, redefinindo as transações comerciais convencionais.

Nesse jaez, o conceito de Non-Fougible Token nada mais é que uma representação de um bem em formato digital infungível e genuíno, isto é, são títulos de propriedades digitais que garantem um certificado de autenticidade do objeto, permitindo que esses bens possam ser negociados pelos usuários. Em outras palavras, a unicidade dos NFTs acaba por introduzir um conceito de escassez digital verificada na economia política do mundo virtual, algo que limita os recursos digitais justamente para tornar possível a venda desses ativos.[v]

Aqui vale destacar o entendimento de Marco Antonio Sandoval de Vasconcellos e Manuel Enriquez Garcia na obra Fundamentos de Economia (2014)[vi], os quais advertem que a problemática econômica por trás da escassez está no fato da limitação dos fatores de produção e recursos produtivos colocados à disposição da insaciável necessidade humana. É diante dessa realidade que as limitações dos recursos digitais proporcionam um aumento na procura por esses ativos, criando um valor significativo para os NFTs.[vii]

Resumidamente, há dois tipos básicos de NFTs no mercado de ativos digitais, a saber, o NFT incorporado, que é quando a obra é carregada e incorporada na tecnologia blockchain e o NFT simples, que é quando uma obra de arte não está digitalizada e nem carregada, sendo esse o tipo mais utilizado atualmente pelo seu baixo custo de transação[viii].

Os NFTs incorporados em geral utilizam a tecnologia do blockchain, mas não se confundem com as criptomoedas pelo simples fato de que estas representam um dinheiro digital, enquanto o NFT representa um título de propriedade de um bem digital (e até mesmo real) infungível, no qual o proprietário do NFT detém o único e genuíno ativo digital, tornando todos os demais objetos semelhantes meras cópias sem qualquer originalidade/valor.

Do mesmo modo que colecionadores adquirem obras de arte, pinturas, esculturas e outros itens raros por conta da sua autenticidade-originalidade no mundo real, esses mesmos itens como também os digitais (memes, vídeos, músicas etc.) podem agora ser comercializados, colecionados e expostos nas ‘estantes digitais’ com a mesma autenticidade e unicidade daqueles, o que se deve, justamente à tecnologia NFT, permitindo que tais ativos pertençam à coleção do proprietário e a de mais ninguém. Logicamente isso não impede que outras cópias circulem pela internet, mas garante que somente determinado ativo (o NFT) seja único e genuíno, por exemplo.[ix]

Atualmente, o exemplo de NFT que mais chamou a atenção da mídia e dos investidores do mundo digital foi a compra dos tokens pelo jogador de futebol Neymar Junior, do Paris Saint German (PSG), pertencentes à coleção Bored Ape Yatch Club (BAYC), uma das mais raras e desejas atualmente, as quais reproduzem figuras de ‘macacos entediados’. De acordo com a plataforma de NTFs OpenSea, Neymar investiu cerca de R$ 6 milhões nas duas aquisições, se unindo a celebridades como o rapper Eminem, o cantor Justin Bieber e o jogador da NBA Stephen Curry.[x]  

Outra alienação de NFT que também efervesceu o mundo dos ativos digitais foi a venda do quadro (digital) do Criptoartista Beeple, que foi vendido por cerca de 69 milhões de dólares em um leilão da Christie's, tradicional casa de leilões britânica, em março de 2021.

No mesmo compasso, também o Real Estate (mercado imobiliário) brasileiro vem apresentando os primeiros imóveis tokenizados no país, no qual a tecnologia aplicada consiste na correspondência entre a escritura do imóvel e token criptografado, o qual será individualizado e, assim, integrará o patrimônio do indivíduo.  A partir disso será possível adquirir frações de imóveis sem a necessidade de intermediação bancária[xi]. As propostas têm surgido como forma de comercializar apenas uma porcentagem dos imóveis, expandido ainda mais as oportunidades e possibilitando que consumidor se torne proprietário de algum imóvel a partir de qualquer preço, sendo despicienda a necessidade de adquirir uma fração ideal.[xii]

Do ponto de vista legislativo, de acordo com o art. 7º da Lei 9.610/98 (Lei que disciplina os direitos autorais), as obras intelectuais são as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro. Tal ponto é oportunamente destacado pelos Professores Marcos Wachowicz e Oscar Cidri (2021), os quais advertiram o equivocado registro de NFTs da escultura imaginária denominada “Io sono”, de Salvatore Garau, a qual foi registrada em abril de 2021 como tokens não fungíveis (NFTs) e levada pela Galeria Art-Rite de Milão a leilão, sendo arrematada pelo valor de 15 mil euros[xiii].

Segundo os autores, é necessário evidenciar que a extensão do Direito Autoral compreende as obras intelectuais expressas e devidamente fixadas em qualquer suporte, o que implica dizer que a origem da tutela jurídica autoral está presente na estrita relação entre a expressão intelectual da criação e a existência material da obra em algum suporte, razão pela qual a mera concepção da ideia pode ostentar o amparo do Direito Autoral, visto que não foi devidamente expressada pelo espírito nem fixada nos suportes exigidos pela Lei.

Outrossim, importa asseverar que Brasil já avança para as primeiras regulamentações acerca dos criptoativos e dos tokens, por meio do PL 3825/19[1]. O projeto de lei visa definir, exemplificar e disciplinar as principais operações e diretrizes realizadas com os criptoativos, inclusive disciplinando sobre as práticas ilícitas e as penalidades decorrentes dessas negociações virtuais. 

De todo o modo, os NFTs já se encontram presentes em diversos segmentos da economia e do mercado, e mesmo com determinada carência de regulamentação mais apropriada, repercute no mercado jurídico, nos órgãos de controle e na forma como se investe e se administram os investimentos.

Há, portanto, uma necessidade maior de compreender e de adaptar os mecanismos de tutela dessa tecnologia, potencializando-se as possibilidades atuais e as emergentes (expansões) deste importante mercado, onde se apresentam novos atores em relações jurídicas desafiadoras entorno dos ativos não tangíveis.

É assim que os NFTs se apresentam como um recurso inovador para garantir a autenticidade e a propriedade dos ativos digitais no ambiente digital, algo que promete revolucionar o mercado digital dos bens infungíveis e consequentemente o direito sobre as “propriedades” digitais, não se limitando as esferas do âmbito autoral.  

 

Notas e Referências

[1] Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137512. Acesso em 07 de março de 2022.

[i] ZOLANDECK, João Carlos Adalberto. Aspectos gerais da Lei Complementar 182/2021 que institui o Marco Legal das Startups. <https://emporiododireito.com.br/leitura/aspectos-gerais-da-lei-complementar-182-2021-que-institui-o-marco-legal-das-startups>. Acesso em 08/03/2022.

[ii] TEIXEIRA, Tarcisio. Curso de direito e processo eletrônico. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 132-138.

[iii] NFTs: o que são, como funcionam e vale a pena investir neles? Disponível em: <https://investnews.com.br/guias/o-que-sao-nfts/>. Acesso em 05 de fev. de 2022.  

[iv] NFTs ganham força e movimentam R$ 134 bilhões em 2021. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/nfts-ganham-forca-e-movimentam-r-134-bilhoes-em-2021,0d0a206216b49aed1be8310490241b3br0k3bb1p.html>. Acesso em: 20 de jan. de 2022. 

[v] WACHOWICZ, Marcos; CIDRI, Oscar. Direitos Autorais e a Tecnologia NFT: Esculturas imaginarias e destruição criativa. Disponível em: <https://www.gedai.com.br/direitos-autorais-e-a-tecnologia-nft-esculturas-imaginarias-e-destruicao-criativa/>. Acesso em: 08 de mar. de 2022.

[vi] VASCONCELLOS Marco A. Sandoval de; GARCIA M. Enriquez. Fundamentos de Economia. 5ª Edição. Saraiva. São Paulo. 2014.

[vii] Economia: Uma ciência da escassez.  <https://administradores.com.br/artigos/economia-uma-ciencia-da-escassez>. Acesso em 10 de fev. de 2022. 

[viii] Nesse último caso, o NFT simples seria considerado como um certificado de propriedade da obra, o que implica dizer que haverá violação do direito autoral sempre que alguém criar outro NFT sem o consentimento do legítimo proprietário.

[ix]  NFT: Entenda o que é e por que essa tecnologia vale tanto. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/350148/nft-entenda-o-que-e-e-por-que-essa-tecnologia-vale-tanto>. Acesso em: 09 de nov. de 2021.

[x] Como funcionam os NFTs, investimento no qual Neymar gastou R$ 6 milhões. Disponível em <https://oglobo.globo.com/economia/inteligencia-financeira/como-funcionam-os-nfts-investimento-no-qual-neymar-gastou-6-milhoes-25375913>. Acesso em: 25 de jan. de 2022. 

[xi] Tokenização das coisas chega ao mercado imobiliário e de florestas. Disponível em: <https://valorinveste.globo.com/objetivo/hora-de-investir/noticia/2021/10/20/tokenizacao-das-coisas-chega-ao-mercado-imobiliario-e-de-florestas.ghtml.> Acesso em 03 de fev. de 2022. 

[xii] Blockchain chega ao mercado imobiliário brasileiro. Disponível em: <https://gmconline.com.br/colunas-colunistas/blockchain-chega-ao-mercado-imobiliario-brasileiro/>. Acesso em 10 de fev. de 2022. 

[xiii]WACHOWICZ, Marcos; CIDRI, Oscar. Direitos Autorais e a Tecnologia NFT: Esculturas imaginarias e destruição criativa. Disponível em: <https://www.gedai.com.br/direitos-autorais-e-a-tecnologia-nft-esculturas-imaginarias-e-destruicao-criativa/>. Acesso em: 08 de mar. de 2022

 

 

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