Ativismo judicial e ofensa à democracia

24/05/2017

Por Wellington Borghi e Dolivar Gonçalves Junior - 24/05/2017

Inúmeros países têm vivido nos últimos anos um processo de fragilização de suas democracias. Assim tem sido na Europa com a eleição de governos conservadores e mesmo nos Estados Unidos com a eleição de Donald Trump. Não diferente deste processo, a América Latina vive inflexões conservadoras em seus governos, especialmente no Brasil e na Argentina.

Albergados, é verdade, por um discurso de vitória eleitoral, logo resultado do processo democrático, ou pelo cumprimento de mecanismos legais de acesso ao poder, descuram não raro, depois de empossados, em governos de exceção que espelhados por uma roupagem jurídica, assemelham-se a estado de direito, mas configuram estado de exceção.

“O conceito de estado de exceção tem origem jurídica precisa e aponta para um fenômeno social muito específico: a suspensão do Estado de Direito através do direito. A ideia geral da exceção é que é preciso suspender a constituição em momentos de crise e que, portanto, tal suspensão deve ser legal, apesar de inconstitucional”[1]

Aliado a este processo de medidas de exceção que invocando uma roupagem constitucional suspendem a própria eficácia da Constituição, importante aliado neste processo é o Poder Judiciário, na exata medida em que valida por razões de decidir discricionárias, a confirmação do próprio estado de exceção.

A validação da exceção pelo Judiciário como desestabilizador da democracia tem sido notadamente evidente (...) se trata de intentar decalificar a los gobiernos antineoliberales y a sus líderes, con acusación de corrupción, desviando El debate sobre las grandes alternativas para los países ___ de que La referencia al neoliberalismo es central ___ para intentar sacar de la disputa política líderes que representam a ese modelo. Las acciones son muy similares. Los medios y El Judiciario se unen para descalificar públicamente a líderes populares em base a sospechas, forjando rechazos públicos y desplazando la agenda central de los proyectos para el país hacia el tema de la corrupcion[2]

As decisões jurídicas em geral, mas sobretudo quando confrontadas com valores constitucionais democráticos devem impor limites consolidados de isenção, imparcialidade e neutralidade ao operador do direito. Isenção quanto ao método decidendo, imparcialidade quanto à eqüidistância das partes envolvidas, neutralidade quanto aos resultados alcançados.

Não raro, entretanto, se por um critério subjacente de caráter ideológico, porquanto a ideologia cumpre papel de integração do ordenamento jurídico, ou se por uma por extrapolação de caráter ético, a produção de justiça se dá mormente pela busca de resultado finalístico consequencialista. Dito de outro modo “primeiro se decide, depois se escolhe um verbete para fundamentar”[3];

Decorrência de tal modelo há de ser a instabilidade da decisão jurídica, do poder que a fundamenta e do próprio sistema político de validade das instituições de Estado e por conseqüente da própria democracia.

Dworkin citado por Streck afirma, “uma prática contém a aceitação (grifei) de uma regra somente quando os que seguem essa prática reconhecem a regra como sendo obrigatória e como uma razão para criticar o comportamento daqueles que não a obedecem”[4]. Assim a decisão jurídica tanto mais será válida, quanto mais expressar um fundamento universalizado de aceitação em regras preordenadas de compreensão jurídica.

Não se trata da elaboração de um convencimento político e jurídico acerca da possibilidade da razão de decidir, mais do que isso, é a problematização do fundamento último do sistema jurídico, qual seja a de preservar a validade e a eficácia do sistema constitucional na medida em que estabiliza as instituições, assegura direitos e permite o avanço civilizacional democrático.

“Portanto, há algo anterior à verdade da ciência que, de certa forma, lhe é condição de possibilidade. No caso do direito, o equívoco dos projetos positivistas está no próprio recorte na totalidade do ente que tais teorias efetuam para caracterizar o estudo do fenômeno jurídico. Dito de outro modo, o modelo excessivamente teórico de abordagem gera uma espécie de asfixia da realidade do mundo prático. Ou seja, o contexto prático das relações humanas concretas, de onde brota o direito, não aparece no campo de análise das teorias positivistas. Isso gera problema de diversos matizes. O fato de nenhuma das duas teorias conseguirem resolver o problema da eficácia do sistema pode ser elencado como um destes problemas. Para mim, entretanto, o principal problema aparece quando procuramos determinar como ocorre e dentro de quais limites deve ocorrer a decisão judicial. Ambas as teorias apostam na vontade do intérprete para resolver o problema, gerando a discricionariedade judicial. Ora, evidente que tais teorias sofrem de um letal deficit democrático. Pergunto: como justificar, legitimamente, uma decisão tomada pelo poder judiciário? Isso tais teorias não respondem. E nem poderiam responder, uma vez que essa dimensão dos acontecimentos fica fora de seu campo de análises.”[5]

Assim, decisão jurídica, em especial a decisão judicial, revela-se como um ato de responsabilidade política. O que quer dizer que o magistrado, ao proferir sua decisão, deve estar comprometido com os fundamentos do Estado Constitucional, cujo núcleo é a democracia. Portanto, proferir uma decisão judicial não implica resgatar antigos dilemas (já superados), como o de buscar a vontade da lei, a vontade do legislador ou tampouco apelar para um suposto “poder discricionário”. A decisão judicial deve, ao contrário de tudo isso, ser construída de acordo com a legalidade (constitucional), alcançando respostas constitucionalmente adequadas (ou corretas), que reforcem o sentido democrático das instituições, somente obtidas através do filtro de uma Teoria da Decisão Judicial[6].

A razão de decidir como um dos elementos de estabilização do Estado Constitucional vincula-se a uma finalidade valorativa, qual seja, a busca da justiça, não uma referência utópica, mas ao contrário disso como um dado concreto da realidade dos homens, “cada pessoa é dona de uma inviolabilidade fundada na justiça, que nem o bem comum da sociedade pode ab-rogar. Portanto, numa sociedade justa, os direitos garantidos pela justiça não são objetos de negociação política nem são computados nos cálculos dos interesses sociais”[7].

Daí justificar-se a busca da razão de decidir como limite do ativismo judicial, afim de apurar o aprimoramento das instituições, notadamente do Poder Judiciário e das finalidades do Estado de Direito vinculadas ao fortalecimento da democracia e porque não, também aos fundamentos próprios da justiça e da igualdade entre as pessoas.

Conforme dito supra, na medida em que o Poder Judiciário produz, por aspectos exclusivamente discricionários suas decisões, a Constituição e a democracia vão sendo esvaziadas de sentido e validade.

Assim, talvez nessa quadra, dentre as inúmeras tarefas apresentadas ao operador encontram-se, notadamente, a busca dos limites éticos e normativos do ativismo judicial e a eliminação da discricionariedade como razão de decidir e fundamento da decisão judicial, para bem preservar a eficácia constitucional e a estabilidade democrática, ao contrário disso, chocar-se-á um ovo de serpente.


Notas e Referências:

[1] https://blogdaboitempo.com.br/2013/12/20/estado-de-excecao-o-que-e-e-para-que-serve/

[2] SADER, Emir. Disponível em http://www.jornada.unam.mx/2017/05/06/opinion/015a2pol

[3] Streck, Lênio Luiz, disponível em www.conjur.com.br Hermenêutica jurídica e o drible da vaca

[4] Streck, Lênio Luiz, disponível em http://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/viewFile/1766/1406

[5] Streck, Lênio Luiz, disponível em http://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/viewFile/1766/1406

[6] Streck, Lênio Luiz, Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. Revista dos Tribunais. 3.ed. São Paulo.SP

[7] Rawls, John. Uma teoria da justiça. Martins fontes, 3.ed. São Paulo. SP. 2008.

FORST, Rainer. Contextos da Justiça: filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo. trad. São Paulo. Boitempo. 2010;

LOVETT, Frank. Uma teoria da justiça, de John Rawls: guia de leitura. trad. Porto Alegre. Penso. 2013;

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. trad.São Paulo. Martins Fontes. 2008;

SANTOS, Boaventura Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 3.ed. São Paulo. Cortes, 2011;

STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitucional e decisão jurídica. São Paulo. RT. 2013.


Wellington Borghi. Wellington Borghi é Advogado. Professor das Faculdades Integradas de Aracruz. Especialista em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho. Cursou o mestrado associado UVV/ES-PUC/SP em Ciências Sociais. Foi procurador-chefe dos Municípios de Vila Velha 2009/2012 e Santa Maria de Jetibá 2015/2016. .


DOLIVAR GONÇALVES JUNIOR. Dolivar Gonçalves Junior possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito do Vale de Rio Doce (2004). Pós-graduado na área de Direito Público, com ênfase no Direito Processual Penal Constitucional (2007). Advogado criminalista e Professor do Curso de Direito na FAACZ-Faculdades Integradas de Aracruz/ES. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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