Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron
Logo no início da decretação de estado de pandemia pelo Coronavírus e de sua chegada ao território nacional, mais precisamente no mês de abril de 2020, a Defensoria Pública do Paraná - sede de Umuarama - ajuizou ação civil pública contra o município de Umuarama requerendo que a atividade comercial na região ficasse restrita às atividades essenciais.
Em primeira instância o pedido liminar foi negado, fazendo com que a Defensoria recorresse ao Tribunal de Justiça. No início do mês de maio, o Desembargador relator do processo deferiu o pedido da Defensoria e decidiu que o comércio não essencial fosse fechado, respeitando-se, assim, o decreto estadual que vigorava à época.
A decisão, em razão de toda a empreitada judicial, que se iniciou em abril, conforme já informado, foi proferida apenas em maio.
O Município não se deu por intimado e, como se não soubesse da decisão amplamente divulgada na mídia, permitiu que o comércio não essencial continuasse aberto. Assim, postergou-se na prática o cumprimento da decisão judicial.
Somente após pedido da Defensoria Pública nos autos para que o requerido fosse intimado através de oficial de justiça, é que o Município decidiu “espontaneamente” cumprir com o que fora determinado. Isso se deu na véspera do feriado do dia das mães, o que causou reação dos comerciantes locais.
O prefeito anunciou, através de uma “live” transmitida pelas redes sociais da Prefeitura, que teria, a contragosto, que cumprir uma determinação judicial provocada pela Defensoria Pública, de fechamento do comércio local não essencial.
Foi o bastante para que ataques pessoais ao Defensor Público do caso tivessem início.
Divulgou-se o endereço da casa e a placa de carro do Defensor nas redes sociais e em grupos de Whatsapp, ato que veio acompanhado de uma série de ofensas e ameaças em massa, com exposição de sua imagem, nome e outros dados pessoais dele divulgados em todas as redes sociais imagináveis, com direito a “memes” ridicularizando-o. Até sua esposa teve os dados pessoais e imagem divulgados.
O pior de tudo ainda estava por vir. Após uma nova “live” do Prefeito, agora acompanhado do empresário Luciano Hang, dono da loja Havan, o Desembargador simplesmente voltou atrás da sua decisão menos de 24 horas após de proferí-la. O comércio então reabriu (na verdade nunca chegou a efetivamente fechar) e o dia das mães foi um sucesso de vendas.
Bem como de contaminações. A cidade, que contava com apenas um óbito e sete casos confirmados quando do deferimento do recurso da Defensoria Pública, hoje conta com 13 mortos pela COVID-19 e quase 900 casos confirmados da doença. O número de leitos de UTI, 20 no total, conta com 14 ocupados e a cidade caminha para um segundo pico da doença conforme análise realizada pela UERJ.
O Defensor Público responsável pelo caso anda com medo nas ruas e mal sabe quando e se terá sua imagem reparada. Apesar de ter levado todos os dados para a Delegacia de Polícia local, apenas um indivíduo foi indiciado e a audiência do JECRIM está marcada para 05 de outubro (ironicamente dia em que se comemora a elaboração da Constituição da República). A par da seara criminal, ajuizou ações em nome próprio no Juizado Especial Cível, com audiências marcadas para o mês de setembro.
De qualquer forma, mesmo que seja indenizado em valores ínfimos pelos infratores, a mancha na reputação e a dor de ter sido atacado não saram facilmente, sobretudo quando não se tem a mesmo alcance e escala de divulgação das ofensas e seus agressores.
No lugar das ofensas em formato de “meme” nas redes sociais, ideal que fossem divulgadas com a mesma amplitude e alcance todas as atuações da Defensoria na cidade, seja em prol das pessoas em situação de rua, seja das condições dos presos na cadeia de Umuarama (só mais um fragmento da realidade no estado de coisas inconstitucional já reconhecido pela mais alta corte do Brasil).
O caso narrado acima é mais um exemplo dos riscos trazidos pelo uso em massa de redes sociais. Riscos que atingem pressupostos basilares do Estado Democrático de Direito.
Extremismo, ódio e desinformação amplificados e induzidos por pessoas e organizações que agem de maneira orquestrada desafiam a ideia de que a Internet seria um ambiente para promoção de debates plurais revelando-se cada dia mais em um locus que se distancia da noção habermasiana de esfera pública.
Tim Wu, ensina-nos que, em um ambiente onde se produz mais informação do que se consegue consumir, a commodity do século XXI é a atenção. E, no concernente às consequências desse ambiente para a liberdade de expressão, conclui que hoje não é difícil de falar, difícil é ser escutado.
Nesta esteira, regimes autoritários perceberam essa fragilidade do ambiente digital, induzindo através de contas inautênticas e comunicação de massa em aplicativos de mensagem, para distorcer o debate público construindo narrativas fictícias capazes de abalar pontos até então de senso comum.
Como modus operandi, um método comunicacional de três passos: atacar os adversários chave individualmente, criar uma quantidade artificial de comentários que induzem quem lê à ideia de que a maioria pensa dessa forma e, como consequência, desestimular as pessoas a postarem, gerando um efeito resfriador na liberdade de expressão e fraturando a esfera pública.
Afinal, quem nunca se deparou com um post com que concordasse no Facebook, Twitter, Instagram, mas, ao ver uma quantidade de comentários radicais, extremistas, desrespeitosos - em regra com conteúdo propagandístico político implícito ou mesmo explícito -, não deixou até mesmo de curtir pensando “melhor não”. No mundo digital, os comportamentos das pessoas são monitorados e previsíveis, já que a maioria não quer ser molestada por uma horda de perfis desconhecidos (muitas vezes mantidos por robôs ou bots, inclusive), importunando na sua rede social.
Essa técnica calculada, segundo Wu, é uma forma contemporânea de censura. Uma censura que não é promovida “de cima para baixo”, com órgãos centrais e oficiais de controle de conteúdo, mas uma censura que é induzida pelos próprios usuários, já que a grande quantidade de posts em determinada direção induz usuários reais a se posicionarem em um efeito de caminhada para os extremos. Quando há o controle das principais redes sociais por esses grupos, a censura, portanto é “de baixo para cima”. Uma censura reversa, portanto.[1]
A Censura corrói a liberdade de expressão e a contamina a democracia, ferindo-a de morte. A reboque, as instituições. Os ataques sistemáticos à honra e imagem de seus membros é uma forma de intimação feita por quem confia que os atos não terão consequências maiores.
E a atomização das sanções aos responsáveis vira um calvário para a vítima, que tem de ajuizar demandas, procurar delegacia, ir aqui e acolá interminavelmente. Muitas vezes apenas para saber um IP ou um e-mail de um criador de uma conta falsa, em uma espiral infernal cujo resultado é um só: o enfraquecimento do sistema de justiça como um todo.
O Brasil finalmente está dando vigência à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei n. 13.709/18), mais um passo na construção do sistema de proteção dos direitos fundamentais na Internet, que já contava dentre os seus principais textos normativos com o Marco Civil da Internet (Lei 12965/14). Soma-se a isto a esperança do PL 2630/20, o da “Lei das Fake News”, que aperta o cerco contra a Desinformação.
A Alemanha tem importante lei sobre o discurso de ódio (NETZDG) de 2017, que prevê sanções pesadas às redes sociais que não tomarem providências para coibir tais condutas.
Recentemente, o Ministro do STF Alexandre de Moraes, relator do polêmico Inquérito das Fake News, foi vítima de uma campanha de ódio que levou grupo de manifestantes a proferir ameaças em frente a seu apartamento em São Paulo. Houve prisão dos organizadores.
Em outro episódio, promoveu-se uma campanha de desinformação e ódio contra o youtuber Felipe Neto, acusando-o de pedofilia sem prova. As hashtags rapidamente se tornaram trending topics no Twitter, em um movimento aparentemente orquestrado, o que também teve desdobramentos offline, já que manifestantes foram à porta do seu condomínio no Rio. O caso teve ampla divulgação nacional e Felipe foi convidado à Câmara dos Deputados, ocasião em que o Presidente Rodrigo Maia (DEM) prometeu empreender esforços para legislar sobre o tema.
O Brasil precisa urgentemente ter instrumentos capazes de enfrentar práticas nefastas como estas não pela via individual, onde a vítima se sente desguarnecida por um problema, acima de tudo, de escala. Pois nem toda vítima é o Felipe Neto.
Notas e Referências
[1]Disponível em: https://www.theatlantic.com/politics/archive/2018/06/is-the-first-amendment-obsolete/563762/. Acesso em : 12 set. 2020.
Para maiores aprofundamentos, V. https://www.conjur.com.br/2019-out-03/opiniao-ataques-massa-internet-metodo-censura-reversa. Acesso em : 12 set. 2020.
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