Atalho legal

11/11/2015

 Por James Walker Júnior - 11/11/2015

O Boletim de Notícias do CONJUR – Consultor Jurídico, publicou no dia 05 de novembro de 2015 a matéria intitulada “Ministério Público driblou a lei para trazer documentos da Suíça na lava jato”.

Seria apenas mais uma notícia, caso essa atitude não tivesse sido empreendida por quem detém o munus de fiscal da lei (custus legis).

Quando o fiscal “dribla” a lei, essa é uma jogada que não merece qualquer aplauso. Para além disso, esse “drible” fere de morte as garantia insculpida no art. 5º , LVI da Constituição.

Na concepção de Lenio Streck, o emérito professor chama de "dilema da ponte", assim denominado na obra  Verdade e Consenso.

O fato é que o Ministério Público Federal atravessou o abismo probatório e, ao olhar para trás, deu-se conta que não construiu a ponte de legalidade para efetuar a travessia[1].

A cadeia de custódia da prova penal, brilhantemente descrita pelo professor Geraldo Prado em: Prova Penal e Sistema de Controles Epistêmicos - A quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos[2], além de exaurir a problematização do processo infeccioso da prova ilícita, deveria ser adotado, ministerialmente, como uma espécie de manual protetivo da prova, a debelar a atividade processual contraproducente.

A matéria exposta no CONJUR descreve a ruptura do Ministério Público Federal, na Operação Lava-Jato, com o sistema legal de legitimação da prova penal, desencadeada pelo açodamento punitivista midiático de consecução de resultados.

Penso que, esse episódio, será estudado em aulas futuras como o mais emblemático e perfeito caso do Direito Penal brasileiro a descrever a teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree).

O fato é que a teoria das provas repudia a obtenção de prova ilícita originária ou por derivação (art. 157 e parágrafos do CPP), sob pena de contaminação de todo o bojo probatório.

A reforma processual de 2008, especialmente a promulgação da Lei 11.690/08, estabeleceu parâmetros sobre a inadmissibilidade e destino das provas ilícitas (arts. 155, 156 e 157, em suas novas redações).[3]

Segundo os documentos fornecidos pelo Ministério da Justiça, sobretudo a certidão assinada eletronicamente pelo Ministro José Eduardo Cardozo em 23 de outubro de 2015 (documento exibido na matéria do CONJUR), o MPF paranaense obteve provas junto ao Ministério Público suíço, diretamente, em desrespeito ao trâmite positivado (requerimento via autoridade central: leia-se Ministério da Justiça).

Com efeito, se já enxergávamos  como sintomática a tentativa ministerial de flexibilizar a validação das provas ilícitas (ideia apoiada pelo juiz da causa - falamos de Lava-Jato), agora o sintoma tornou-se diagnóstico.

Estaríamos diante da inauguração do duplo iter ilícito?

A persecução penal busca algo remetido para fora do país,  supostamente por meio ilícito e, através de uma nova remessa, agora em via oposta (internalizando), porém, igualmente ilícita, obtém provas em flagrante desrespeito à lei.

Isso se apresenta como uma via ou iter duplamente ilícito. O primeiro caminho ou “iter” de ilicitude legitima o estado à persecução penal (ilícito supostamente praticado pelo investigado); o segundo “iter”, o da obtenção de prova pela via ilícita, fulmina a pretensão anterior.

A "manobra" deslegitima o poder punitivo estatal, porquanto iguala em ilicitudes o perseguidor e o perseguido, perecendo o processo.

Perseguir a culpa através da prova ilícita é colher os frutos de um processo semeado com sementes podres.

Esses frutos não se prestam à demonstração idônea  da culpa, por sua genealogia na ilicitude.

Cirurgicamente assinalado pelos mestres Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa, a prova é o eixo central do Processo Penal, verdadeiro instrumento recognitivo e persuasivo, servindo a mesma como mecanismo de construção do convencimento decisório.[4]

Hobbes e o Leviatã nunca foram tão contemporâneos.

A face horrorosa e perversa do monstro autoritário estatal decreta que, a ilicitude atribuída ao cidadão (objeto de investigação), impõe-lhe culpa e o peso pessoal e social do processo penal (o "simples" fato de responder a um processo já tem enorme carga punitivista).

Noutra monta, a ilicitude na aquisição de provas nada impõe ao agente estatal, em que pese seu caráter igualmente ilícito.

Trata-se de um desserviço ao Direito e ao Processo Penal sob a ótica da dogmática, tanto quanto falta administrativa de quem empreendeu o ato, uma vez que no MPF paranaense todos conhecem os "caminhos da licitude ".

O devido processo legal não suporta tamanho golpe, há que ser sofreada a busca obstinada de provas, sempre em nome da (in)eficiência punitiva.

Tudo isso sem ingressar nos inexoráveis argumentos da ausência de quebra de sigilo para obtenção daquelas provas (já que as mesmas alcançam o sigilo bancário), tanto quanto a ilegalidade do "fishing expedition", que promove uma seletividade probatória, através de um "arrastão" genérico que acaba por "pescar" provas que somente podem ser alcançadas por vias e mecanismos próprios (que foram todos desprezados no caso em apreciação).

Não falamos de culpa, não discutimos mérito, sequer alcançamos o término da instrução para diversos réus daquele processo, mas já sabemos que, seja qual for o deslinde da causa, ela já nasceu morta, relativamente às provas obtidas “diretamente” pelo MPF curitibano junto ao Ministério Público suíço, “driblando” a legalidade como único meio de obtenção válida da prova penal.


Notas e Referências:

[1] Streck, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5. ed. - São Paulo: Saraiva, 2014.

[2] Prado, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. 1. ed - São Paulo: Marcial Pons, 2014.

[3] Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 11 ed. atual. De acordo com a reforma penal de 2008 (Leis 11689, 11690 e 11719) e pela Lei 11.900 (novo interrogatório), de 08.01.09. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2009.

[4] Sobre o tema, Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa. A importância da cadeia de custódia para preservar a prova penal. CONJUR - Consultor Jurídico em www. conjur.com.br, publicado em 16/01/2015.


james-walker-juniorJames Walker Júnior é Presidente do IBC Instituto Brasileiro de Compliance, Advogado criminalista, professor de Direito Penal, Processual Penal e Compliance desde 1994 em universidades do Rio de Janeiro; especialista em Direito Penal e Compliance pela Universidade de Coimbra – Portugal; Doutorando em Ciências Jurídicas pela UAL – Universidade Autônoma de Lisboa – Portugal; Presidente da Comissão de Anticorrupção e Compliance da OAB Barra RJ; Sócio do Escritório Walker Advogados Associados..


Imagem Ilustrativa do Post: 20111030_175741_0007 .. The shortcut ... // Foto de: Kurt Haubrich // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/kphaubrich/6307724163

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura