Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron, Gina Muniz e Eduardo Januário
Para compreender a problemática objeto do presente texto, revela-se imprescindível partirmos do básico. Ou seja: (i) o que são astreintes? (ii) Elas possuem previsão do Código de Processo Penal? (iii) É possível sua aplicação na seara criminal?
As astreintes não estão delineadas na legislação processual penal, mas podem ser aplicadas a esse ramo do direito em razão da janela de permissão constante no art. 3º do CPP. Devem ser compreendidas como instrumento apto a conferir coercibilidade a uma ordem judicial de cumprimento emitida em desfavor de alguém. Ostenta, pois, objetivo de conferir efetividade às ordens judiciais. Como assevera Rizzo Amaral, "visa a pressionar o réu para que o mesmo cumpra mandamento judicial, pressão esta exercida através de ameaça a seu patrimônio, consubstanciada em multa periódica a incidir em caso de descumprimento"[1].
Com o fito de compelir um indivíduo ao cumprimento de ordem judicial, prevalece a compreensão de que tal instituto compatível com o processo penal. Aliás, nesse sentido vem militando a jurisprudência das Cortes Superiores, tendo inclusive o STJ anotado que "a imposição de astreintes à empresa responsável pelo cumprimento de decisão de quebra de sigilo, determinada em inquérito, estabelece entre ela e o juízo criminal uma relação jurídica de direito processual civil', cujas normas são aplicáveis subsidiariamente no Processo Penal, por força do disposto no art. 3º do CPP"[2].
Particularmente, vislumbro dificuldades em sustentar a possibilidade de fixação de astreintes no processo penal a partir da perspectiva de um (suposto) poder geral de cautela. Sua existência no processo civil é convicta, diferentemente do que se verifica no âmbito criminal. Admitir decretação de cautelares (especialmente de natureza pessoal) não arrimadas na lei criminal dá margem a um perigoso flanco ao arbítrio[3]. Enxergo o processo penal como um importante dique de contenção da tirania e do arbítrio do Estado e ele não deve(ria) ser violado. Para isso, porém, é preciso observar e respeitar a legalidade estrita, o que não se verifica ao reconhecer um pretenso poder geral de cautela nesse ramo do direito, especialmente após a vigência da Lei 12.403/2011, que conferiu um amplo leque de opções cautelares pessoais ao magistrado.
Entretanto, registre-se, essa não vem sendo a compreensão majoritária, como alientado. Exemplo disse é o apontamento feito pelo Ministro Rogério Schietti em seu voto no REsp 1568445/PR, no sentido de que mesmo após a referida modificação legislativa, não seria “razoável presumir que o legislador teria esgotado todas as hipóteses possíveis, numa espécie de retorno a uma postura positivista exegética, inimaginável nos dias atuais. Assim, defende-se que outras medidas podem ser impostas ao acusado, fora do rol do art. 319 do CPP, seja como medida cautelar substitutiva de uma prisão preventiva cabível (o que é evidentemente favorável ao acusado), seja como medida cautelar em hipótese de não cabimento da prisão preventiva, com o objetivo de tutelar outros direitos fundamentais que não os do acusado, de forma excepcional”[4].
Ainda que o tema não seja uniforme nos Tribunais Superiores, a tendência observada hodiernamente é de admitir o poder geral de cautela no processo penal de forma excepcional e motivada, não havendo óbice ao magistrado impor ao investigado ou acusado medida cautelar atípica, a fim de evitar a prisão preventiva, isto é, mesmo que não conste literalmente do rol positivado no art. 319 do CPP, o alcance das hipóteses típicas pode ser ampliado para, observados os ditames do art. 282 do CPP, aplicar medida constritiva adequada e necessária à espécie ou, ainda, pode ser aplicada medida prevista em outra norma do ordenamento, especialmente quando não restringir de forma severa o direito de ir e vir do indivíduo[5].
Compreendida tal premissa, imagine a situação em que, durante o processo criminal estabelecido entre o Ministério Público e um acusado, o magistrado determine a intimação da empresa Google para que forneça dados que estão de sua posse exclusiva, considerando o interesse e imprescindibilidade deles para o deslinde do processo. Caso não haja o cumprimento no prazo fixado, seria possível a fixação de astreintes em desfavor desse terceiro ao processo?
Especificamente em relação às astreintes, a doutrina aponta não enxergar problemas no ponto de fixação em face de terceiros, desde que se confira a eles o direito de reação e manifestação. Como bem escreve Sérgio Arenhardt, não se deve estranhar o fato de efeitos da decisão judicial atingirem terceiros. O que não se tolera é que tais efeitos possam atingir essas pessoas sem que se dê a elas possibilidade de esboçarem reação a tanto, ou que possam opor-se a esse comando. Enfim, o que não pode ocorrer é que esses efeitos atinjam aquele que não foi parte – nem foi chamado para participar do processo – de modo irreversível ou indiscutível (com estabilidade de coisa julgada)”[6]. Dessa maneira, a partir do momento em que se admite as astreintes no processo penal, não haveria óbice quanto a sua incidência em desfavor de terceiros, como no exemplo proposto. Ademais, isso estaria arrimado também no Marco Civil da Internet, o qual prevê (em seu art. 10, § 2º) que “o conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial”.
Nesse contexto, em data recente, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade de fixação de astreintes em desfavor do Facebook (enquanto terceiro), destacando que tal posição é amplamente admitida “pela doutrina e pela jurisprudência, aplica-se o Código de Processo Civil ao Estatuto processual repressor, quando este for omisso sobre determinada matéria”[7].
Firmada a regra geral, é preciso destacar as peculiaridades e idiossincrasias de casos concretos que podem justificar o tratamento excepcional, ou seja, particularidades que nos permitem realizar uma distinção (distinguishing), como fora apontado pelo próprio STJ em dezembro de 2020[8]. Segundo o colegiado, quando o eventual descumprimento de ordem judicial estiver amparado em justificativas de impossibilidade técnica de obedecer ao comando do juízo, não haveria sentido de fixação de astreintes. É o que se dá, por exemplo, nos casos em que a ordem judicial se volta à empresa responsável pelo whatsapp para fornecimento de dados e/ou informações protegidas pela tecnologia de criptografia de ponta a ponta.
Como bem destacado pela Corte, citando doutrina abalizada acerca do tema, a criptografia de ponta a ponta é a proteção dos dados nas duas extremidades do processo, tanto no polo do remetente quanto no outro polo do destinatário. Nela, há "dois tipos de chaves são usados para cada ponta da comunicação, uma chave pública e uma chave privada. As chaves públicas estão disponíveis para as ambas as partes e para qualquer outra pessoa, na verdade, porque todos compartilham suas chaves públicas antes da comunicação. Cada pessoa possui um par de chaves, que são complementares. [...] O conteúdo só poderá ser descriptografado usando essa chave pública (...) junto à chave privada (...). Essa chave privada é o único elemento que torna impossível para qualquer outro agente descriptografar a mensagem, já que ela não precisa ser compartilhada"[9].
De acordo com o voto do Ministro Ribeiro Dantas[10], ao menos enquanto a compatibilidade do uso da referida tecnologia não é plenamente definida pelo Supremo Tribunal Federal, deve-se agasalhar os argumentos apresentados pelos Ministros Rosa Weber (ADI 5527[11]) e Edson Fachin (ADPF 403), os quais representam, ao menos até a presente altura, o pensamento do Supremo Tribunal Federal na matéria. Portanto, admitindo o acerto da ponderação de valores realizada pelos aludidos Ministros, que, em seus votos, concluíram que os benefícios advindos da criptografia de ponta a ponta se sobrepõem às eventuais perdas pela impossibilidade de se coletar os dados das conversas dos usuários da tecnologia, concluiu-se pela necessidade de se fazer uma distinção ou um distinguishing e reconhecer a inaptidão de fixação de astreintes quando a negativa do cumprimento de ordem judicial se pautar na impossibilidade técnica, especificamente no que tange à criptografia de ponta a ponta.
Aguardemos até eventuais cenas dos próximos capítulos, especialmente no âmbito da Suprema Corte.
Notas e Referências
[1] As astreintes e o processo civil brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. p. 85
[2] AgRg no RMS n. 56.706/RS, Rel. Ministro Felix Fischer.
[3] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de, Curso de Processo Penal, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2015, p. 523
[4] TAVARES, João Paulo Lordelo Guimarães, Das medidas cautelares no processo penal: um esboço à luz do regramento da tutela provisória no novo CPC, em Processo Penal (coleção Repercussões do novo CPC), coordenadores CABRAL, Antonio do Passo; PACELLI, Eugênio et CRUZ, Rogerio Schietti. Salvador, Juspodivm, 2016, pp. 229/231.
[5] HC 469.453/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 19/09/2019
[6] A efetivação de provimentos judiciais e a participação de terceiros. In: DIDIER JR., Fredie; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais sobre os terceiros no processo civil. São Paulo: RT, 2004.
[7] REsp 1568445/PR, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Rel. p/ Acórdão Ministro RIBEIRO DANTAS, 3ª Seção, julgado em 24/06/2020.
[8] RMS 60.531/RO, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministro RIBEIRO DANTAS, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 09/12/2020.
[9] COUTINHO, Mariana. O que é criptografia de ponta a ponta? Entenda o recurso de privacidade. Tectudo. Disponível em: <https://www.techtudo.com.br/noticias/2019/06/o-que-e-criptografia-de-ponta-a-ponta-entenda-o- recurso-de-privacidade.ghtml>
[10] https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201900993927&dt_publicacao=17/12/2020
[11] "Considerações sobre o direito às liberdades de expressão e de comunicação (art. 5º, IX, da CF). Integra o pleno exercício das liberdades de expressão e de comunicação a capacidade das pessoas de escolherem livremente as informações que pretendem compartilhar, as ideias que pretendem discutir, o estilo de linguagem empregado e o meio de comunicação. O conhecimento de que a comunicação é monitorada por terceiros interfere em todos esses elementos componentes da liberdade de informação: os cidadãos podem mudar o modo de se expressar ou até mesmo absteremse de falar sobre certos assuntos, no que a doutrina designa por efeito inibitório (chilling effect) sobre a liberdade de expressão. Nesse sentido, 'A comunicação desinibida é também uma precondição do desenvolvimento pessoal autônomo. Seres humanos desenvolvem suas personalidades comunicando-se com os demais.' As consequências da ausência dessa precondição em uma sociedade vão desde a desconfiança em relação às instituições sociais, à apatia generalizada e a debilitação da vida intelectual, fazendo de um ambiente em que as atividades de comunicação ocorrem de modo inibido ou tímido, por si só, uma grave restrição à liberdade de expressão. Sob enfoque diverso, considerando que software é linguagem, e como tal, protegido pela liberdade de expressão, indaga-se se compelir o desenvolvimento compulsório de uma aplicação para se implementar a vulnerabilidade desejada, a determinação para a escrita compulsória de um programa de computador não configuraria, ela mesma, uma violação do direito à liberdade de expressão do desenvolvedor? De toda sorte, transformar o Brasil em um país avesso à liberdade de expressão não é o melhor caminho para combater os usos irresponsáveis das ferramentas de comunicação".
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