Aspectos processuais desconsideração da personalidade jurídica e a MP da Liberdade Econômica (MP 881/2019)  

02/08/2019

Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

Em 30 de abril de 2019, o Poder Executivo editou a Medida Provisória 881 (MP 881/2019), cuja finalidade, conforme disposto em seu primeiro artigo, é instituir a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, nos termos do disposto no inciso IV do caput do art. 1º, no parágrafo único do art. 170 e no caput do art. 174 da Constituição Federal”.

Em síntese, a MP da Liberdade Econômica estabelece diretrizes com a finalidade de estimular a inovação, impõe mudanças no campo das liberdades econômicas, altera normas da ordem trabalhista, bem como dispositivos do Código Civil (Lei nº 10.406/2002). Dentre as mudanças, destacamos as alterações ao artigo 50 do Código Civil, que dispõe sobre o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, o qual será objeto do presente artigo.

Sabemos que no Brasil existem vários tipos societários e os mais comuns e utilizados são as sociedades limitadas, as sociedades anônimas e as empresas individuais de responsabilidade limitada (EIRELI). Em regra, as empresas desses tipos societários são responsáveis administrativamente e civilmente por eventuais danos que venham a causar, isto porque a legislação concede personalidade à estas empresas, que passam a gozar de nacionalidade, capacidade e estrutura própria.

Porém, existem casos em que os sócios e administradores poderão ser responsabilizados em situações excepcionais, quando abusam da personalidade jurídica da sociedade para se valerem da sua autonomia patrimonial, com dolo de fraudar credores, transformando-a em um mero instrumento de blindagem do seu próprio patrimônio, casos e que a personalidade jurídica da empresa poderá ser desconsiderada mediante requerimento em processo incidental, e, caso haja o deferimento do pedido, a responsabilidade de reparação dos danos causados pela empresa passará a ser dos sócios.

A MP 881/2019 importou em significativas mudanças em relação à desconsideração da personalidade jurídica.  Inclusive, vale dizer que adaptou o instituto à finalidade da nova legislação processual, que trouxe em seu bojo procedimento próprio para a desconsideração da personalidade jurídica a partir do artigo 133, procedimento este munido de contraditório e ampla defesa.

Antes da mudança o dispositivo mencionado assim dispunha: em caso de abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações sejam estendidas aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Com o advento da Medida Provisória 881/2019, tornou-se necessária a comprovação do dolo do sócio em fraudar credores quando se utiliza do desvio de finalidade da empresa. Diante disso, foi incluído no art. 50 do Código Civil o parágrafo 1º, o qual dispõe: para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. 

Na verdade, as alterações realizadas pela MP apenas confirmam a jurisprudência já firmada no Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas que muitas vezes não é aplicada em instâncias inferiores. Para mudar este cenário, a Medida Provisória busca legitimar a necessidade de provas para a desconsideração da personalidade jurídica.

Recentemente o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo julgou um Agravo de Instrumento[1] baseado na MP 881/2019, em que a sócia da empresa executada, pertencente ao ramo imobiliário, opôs o recurso a fim de desconstituir a sentença em que foi determinada a desconsideração da personalidade jurídica da imobiliária.

No referido acórdão, a Relatora Berenice Marcondes César pontuou que a desconsideração da personalidade jurídica é medida bastante extrema e excepcional no direito pátrio, pois permite que sejam alcançados bens que integram patrimônio estranho à pessoa que, inicialmente, foi condenada em Juízo (ou seja, permite que sejam alcançados bens dos sócios de pessoa jurídica, eclipsando a garantia da personalidade). (...) Além disso, em 30 de abril de 2019 veio a lume a Medida Provisória nº. 881, que institui a Declaração de Direito de Liberdade Econômica, e, em seu art. 7º, promoveu restrições ainda maiores à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica. (...) Logo, segundo o novo regime jurídico atribuído ao instrumento da desconsideração da personalidade jurídica, deve-se comprovar ou a existência de dolo específico dos sócios da pessoa jurídica, para fins de desvio de finalidade, ou uma das situações específicas dos incisos do § 2º.(...)

Porém, apesar da omissão do código de processo civil de 1973 quanto à fase instrutória da desconsideração, em tese, segundo André Luiz Santa Cruz Ramos, tradicionalmente, esse abuso de personalidade jurídica que admite a sua desconsideração só se caracterizava quando houvesse a prova efetiva da fraude, ou seja, da atuação dolosa, maliciosa, desonesta dos sócios em detrimento dos credores da sociedade. Adotava-se, pois, uma concepção subjetivista da disregard doctrine, que exigia a prova da fraude como elemento imprescindível à sua aplicação, isto é, era imprescindível a demonstração inequívoca de uma intenção (elemento subjetivo) de prejudicar credores[2].

Apesar de haver várias opiniões negativas – tanto de cunho formal como material - acerca da edição da MP, temos que, neste particular, as mudanças merecem elogios, pois o desvio de finalidade da empresa nem sempre deve ser considerado um meio ardil para lesar credores.

No Brasil, não trata-se de algo incomum o empresário modificar o seu ramo sem tomar a cautela de, antes, alterar o objeto do contrato social, ainda mais em tempos de crise, quando os riscos do negócio aumentam gradativamente.

Ademais, o legislador acertadamente procurou definir “desvio de finalidade” e “confusão patrimonial”, a fim de garantir tratamento uniforme sobre o tema perante os diversos tribunais do país, bem como para garantir maior segurança jurídica ao ambiente negocial.

Quanto à necessidade de comprovação de dolo, tal medida corrobora com o novo modelo de legislação processual, já que coube ao processo civil determinar a forma de aplicabilidade e mecanismos para a efetivação da desconsideração da personalidade jurídica.

No texto que expõe os motivos da criação do CPC de 2015, a Comissão de Juristas deixou claro que o novo Código prestigia o princípio da segurança jurídica, de índole constitucional, pois hospeda nas dobras do Estado Democrático de Direito e visa a proteger e a preservar as justas expectativas das pessoas e não há como se falar em segurança jurídica sem mencionar o contraditório, corolário do princípio do devido processo legal que está intimamente ligado ao direito de produção de provas.

Diante de todas as considerações, podemos dizer que as mudanças trazidas pela MP 881/2019 corrobora com o novo modelo de legislação processual, que contempla o contraditório e propicia a produção de provas para a comprovação dolo no desvio de finalidade, não deixando margem para a liberdade que tem o juiz de decidir apenas com base em seu entendimento, evitando decisões surpresas e, por inúmeras vezes, equivocadas, como se notava quando a desconsideração da personalidade jurídica era requerida em ações que tramitavam sob a égide do código de processo civil de 1973, onde não havia previsão de fase instrutória, tampouco balizas processuais para o julgador proferir as decisões, causando reflexos negativos tanto para os sócios como para o ambiente negocial.

 

 

Notas e Referências

[1] BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento no 2243292-27.2017.8.26.0000, Relatora: Berenice Marcondes César, Data de Publicação: DJ 29/05/2019.

[2] RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial – 7ª edição – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017, p. 458.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Scales of Justice - Frankfurt Version // Foto de: Michael Coghlan // Sem alterações

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