Aspectos da experiência neurojurídica: livre

09/09/2016

Por Atahualpa Fernandez e Manuella Fernandez  – 09/09/2016

Leia também: Parte 1, Parte 2, Parte 3, Parte 4Parte 6

Con los juicios (y las creencias) sucede lo mismo que con los relojes: ninguno va igual que otro, pero cada uno cree al suyo”.

Alexander Pope

Responsabilidade

Mas há outro aspecto em que devemos afrontar a ausência do livre-arbítrio: o da responsabilidade (individual e coletiva). Se não podemos eleger como nos comportamos, como podemos julgar a gente como moral ou imoral? Como podemos culpar a alguém se está obedecendo cegamente a um gene determinado ou a uma amígdala reduzida? Por que castigar aos criminosos ou recompensar aos que fazem boas obras? Por que fazer responsável a qualquer de seus atos se ditos atos não foram livremente escolhidos?

A compreensão da natureza humana em termos biológicos sempre provocou fortes rechaços porque pode eliminar o concepto de responsabilidade pessoal em que se baseia o sistema de administração da justiça. Parece como se atribuir às causas de nossas condutas ao cérebro, aos genes ou nosso passado evolutivo, à parte de oferecer uma visão monstruosa de nossa condição, deixa ao indivíduo sem responsabilidade em suas ações.

Como dito antes, as evidências de todos os tipos de estudos neurobiológicos sugerem que já não é possível sustentar a existência do livre-arbítrio tal e como o concebemos na atualidade. Nada obstante, o fato de que o livre-arbítrio ou a crença de que “somos dueños de nosotros mismos y que tenemos control en la toma de decisiones” (R. Romo) sejam uma ilusão, não implica, em absoluto, que os indivíduos não sejam responsáveis ou que não se lhes possa aplicar nenhum castigo.

Em primeiro lugar, porque a neurociência, iluminando o conteúdo do que anteriormente se teve por uma “caixa negra”, converte ao cérebro em “algo” cada vez mais transparente e em que confluem desde os genes até nossas circunstâncias particulares e as influências recebidas pela experiência. No entanto - e nunca é demasiado insistir neste ponto -, a neurociência jamais encontrará o correlato cerebral da responsabilidade, porque é algo que atribuímos aos humanos – às pessoas -, não aos cérebros. Os psiquiatras, psicólogos e neurocientistas podem descrever um determinado estado mental ou cerebral, mas não podem dizer-nos (sem arbitrariedade) em que momento se deve exonerar a alguém de uma responsabilidade porque não tem controle suficiente de seus atos.

Ao igual que o tráfego é o que ocorre quando interatuam os carros fisicamente determinados, a responsabilidade é o que ocorre quando interagem as pessoas. A questão da responsabilidade pessoal é uma decisão social e/ou um conceito público. Existe dentro de um grupo, não no contexto de um indivíduo. Se só houvesse uma única pessoa na Terra, não seria pertinente e sequer teria qualquer sentido o conceito de responsabilidade pessoal. A responsabilidade é um conceito que cada um se forma em torno às ações próprias e alheias. Os cérebros estão determinados; a gente (mais que um único ser humano) se rege por um sistema de regras quando (con-) vive com outras pessoas, e dessa interação surge o conceito de responsabilidade gerado pela suposta liberdade de ação.

Em termos biológicos ou neurocientíficos, ninguém é mais ou menos responsável que outra pessoa de determinadas ações. Formamos parte de um sistema determinista que algum dia lograremos compreender plenamente. Mas a ideia da responsabilidade, constructo humano que existe nas regras de uma sociedade, não existe nas estruturas neuronais do cérebro: é uma invocação cultural, um valor moral que exigimos às pessoas de nosso entorno, de seres humanos que se regem por regras, isto é, de fazer os indivíduos responsáveis porque essa é a natureza do intercâmbio social entre as pessoas. (M. Gazzaniga)

Trata-se, em suma, de um artefato social, de uma convenção que existe somente no contexto da interação (e imaginação) humana, quer dizer, uma série de normas que garantem e otimizam o bem comum. O castigo cumpre a função de apartar aos transgressores do resto da sociedade e de servir de exemplo para dissuadir de condutas similares ao resto de cidadãos. As condutas que se considerem merecedoras de um castigo, por desviar-se das normas estabelecidas pela sociedade para melhorar a convivência, responsabilizarão, por definição, aos indivíduos que realizem ditas condutas[1]. Desse modo, a inexistência do livre-arbítrio não está renhida com o conceito de responsabilidade, e o conceito de defesa social é o ponto central dessa moralidade baseada em convenções.

Daí que a neurociência tem pouco que aportar à compreensão da responsabilidade: radica unicamente em convenções destinadas a regular as relações que se desenvolvem quando interatuam uns cérebros automáticos com outros. Nisso consiste o “núcleo duro” da responsabilidade que, em sua dimensão sociocultural, intersubjetiva (relacional, coexistencial), fundada na natureza essencialmente social do ser humano e que não pode conceber-se à margem de vínculos sociais relacionais (da relação entre pessoas), é de suma transcendência para calibrar e potencializar o sentido e o alcance dos direitos e deveres que encontram nela (na responsabilidade) sua garantia.

Em segundo lugar, porque as visões teóricas do castigo legal se agrupam principalmente em dois tipos de teorias: as retributivas e as utilitaristas (ou consequencialistas). A visão retributiva, que se baseia em dar ao infrator “o que merece” por sua ação, mira ao passado e se centra no agente do ato e em sua relação com esse ato. Para castigar desde o ponto vista retributivo o indivíduo tem que merecê-lo e, por essa razão, atribuir-lhe liberdade e possibilidade de atuar de outra maneira. Este princípio se fundamenta na ideia intuitiva de que é “injusto” que uma pessoa seja julgada ou castigada pelo que não depende dela, pelo que não está baixo seu controle (“princípio de controle”). Já a visão utilitarista ou consequencialista, que não se propõe dar a cada um o que se merece segundo suas passadas ações, senão somente castigar com o fim de assegurar um hipotético bem social, mira ao futuro, às consequências para a sociedade e aos indivíduos do castigo, sem necessidade de que o castigo seja merecido. Desde uma ótica utilitarista, por exemplo, é possível castigar a um psicopata pelo perigo que supõe para a sociedade.

O único inconveniente é que a carga retributivista tem um peso muito maior tanto nas justificações intuitivas das penas como nas tradições culturais, religiosas ou legais, e está firmemente arraigada em conceitos como o de “culpa” ou em expressões como “olho por olho” ou “dar a alguém seu merecido”[2]: somos essencialmente retributivistas e tendemos a confundir explicação com exculpação, determinismo com fatalismo.[3]

Como explica Chris Frith, o sentimento de tomar decisões livres é uma parte fundamental de nossa experiência consciente. Sejamos livres ou não, o importante é que nos experimentamos como agentes livres; também experimentamos as outras pessoas como agentes livres e preferimos “pagar com a mesma moeda” do que resguardar-nos baixo o manto da indiferença utilitária. E esta experiência tem uma função muito importante ou, no pior dos casos, é uma ilusão útil. Tanto é assim que o sistema legal pressupõe que todos somos igual de capazes de controlar nossos impulsos e de tomar decisões livres.[4]

A justiça, o Estado de direito e a sociedade em seu conjunto nos tempos modernos se erigiram sobre o suposto do livre-arbítrio e a responsabilidade das pessoas sobre atos que podem ser premiados ou castigados. Pouco importa que nos creiamos ou não no livre-arbítrio ou que nossas ações se explicam em virtude do que sucede a nível nervoso em nossa cabeça; o relevante é que esteja socialmente justificado (na prática, sem essa crença compartida qualquer ordem ou ordenamento jurídico resultaria impossível). Ninguém ou praticamente ninguém crê no determinismo, posto que vai contra a grande tradição de nossa cultura... E somos prisioneiros desta – ou, segundo a feliz expressão de Ortega y Gasset: não se “tem” tradições, senão que “se está” nelas.


Notas e Referências:

[1] Jerry Coyne explica claramente a função da pena para os que não creem no livre-arbítrio: “El objeto de la pena, si eres un determinista, es triple: la disuasión, la rehabilitación, y alejar a los delincuentes de la sociedad para evitar mayor daño. (La retribución no es una opción viable, ya que no sirve para nada, aparte de atender nuestro deseo de venganza.) Ninguno de éstos se cumple con la pena capital, y tal vez tampoco con cadenas perpetuas automáticas sin libertad condicional. Si no crees que un asesino o un violador hicieron una "elección" libre con sus acciones, entonces tienes que repensar cómo hacer frente a su transgresión. La razón por la que no nos concentramos más en qué formas de castigo son las mejores para disuadir a otros, rehabilitar a los delincuentes, y mantenerlos alejados de la sociedad hasta que no hagan más daño, es porque esas cosas son difíciles de hacer. Requieren estudio empírico — análisis científico. Pero es lo que debemos hacer si nuestro sistema de justicia va a ser a la vez racional y humano. Lo que no haces es seguir infligiendo crueldad simplemente porque eso es lo que siempre se ha hecho. […] Por otro parte, entender que no existe el libre albedrío no aboliría las cárceles ni el sistema de justicia criminal, porque seguiríamos castigando a la gente para alejarlos de la sociedad, para dar un ejemplo para los demás - esto afecta a sus propias decisiones futuras - y para reformar a las persona”. E mais: para Christopher Boehm, a origem da moral “es el control social por parte del grupo, es decir, el grupo castiga a los individuos que se desvían de las conductas que favorecen la supervivencia del grupo. Este castigo es una especie de “selección social” porque las preferencias sociales de los miembros del grupo -y del grupo en su conjunto- acaban modificando el acervo genético. Para no ser castigado el individuo aprende e interiorizar las normas del grupo y esa interiorización de las normas sería la moral. La selección moral va en el sentido de aumentar las conductas cooperadoras y disminuir las conductas de depredación social y el castigo social a lo largo de generaciones modela y cambia el genotipo en esa dirección de mayor cooperación y menos depredación.”

[2] Uma hipótese plausível sustenta que o retributivismo foi uma ferramenta útil para a manutenção da ordem social durante a evolução, com o que certos mecanismos psicológicos que o sustentam puderam fixar-se no transcurso da mesma (T. W. Clark). Analogamente, existem também muito boas razões para explicar por que nossas concepções do mundo físico são de tipo euclidiano-newtoniano, do mesmo modo que as do mundo social são retributivistas: o mundo tal e como o percebemos responde bem a esse esquema. Segundo vários expertos em ética, contudo, há ao menos várias situações psicológicas clínicas nas quais o castigo retributivo carece já de sentido. Lincoln Frias, membro da sociedade internacional de neuroética, nega que os psicopatas devam ser castigados, precisamente porque carecem dos sentimentos morais necessários: “El castigo podría no ser la mejor estrategia e incluso podría no ser moralmente oportuna, al menos si se entiende el castigo como infligir sufrimiento para castigar por lo que se ha hecho para. Por extraño que parezca, los psicópatas merecen nuestra compasión”. Para Frias, a ética moderna, informada pelos novos conhecimentos científicos, nos distancia da “savana” onde evolucionaram os primeiros seres humanos: “Los impulsos retributivos probablemente se desarrollaron durante la selección natural como una forma de disuadir a los aprovechados (free-riders). Pero los psicópatas no son suficientemente sensibles a las amenazas como para que puedan ser disuadidos”. Um problema é que estas teorias éticas logicamente consistentes chocam com as intuições das pessoas, que de fato mantêm intuições compatibilistas e incompatibilistas ao mesmo tempo. O trabalho dos filósofos experimentales (de S. Nichols e J. Knobe, por exemplo) evidencia que o emoldurado emocional da pergunta influi no el tipo de resposta que damos em dilemas morais: “¿Son moralmente responsables las personas en un universo determinista? Partiendo de este supuesto, si hacemos la pregunta de un modo abstracto, los sujetos ofrecen una mayoría de respuestas “incompatibilistas” (un 86%), pero si recreamos la misma pregunta en circunstancias cargadas de emoción y de detalles vitales, los sujetos ofrecen una mayoría de respuestas “compatibilistas” (un 78% de la misma muestra). Conclusión: la creencia en un universo determinista no socava, de por sí, las nociones corrientes de moralidad y responsabilidad personal”. Em seu conjunto, estes resultados insinuam que os juízos morais correntes não surgem de abstrações filosóficas capazes de pôr entre parênteses as situações concretas e as velhas emoções que despertam. O sentido da justiça evolucionou muito antes que aos filósofos morais se lhes ocorrera falar de um imperativo categórico.

[3] Com a palavra, Sam Harris: “El gran problema es que la gente a menudo confunde el determinismo con fatalismo. El determinismo es la creencia de que nuestras decisiones son parte de una cadena irrompible de causa y efecto. El fatalismo, por el contrario, es la creencia de que nuestras decisiones no importan, porque todo lo que está destinado a suceder, sucederá, como el matrimonio de Edipo a su madre, a pesar de sus esfuerzos para evitar que el destino”.

[4] John Darley, por exemplo, publicou na Annual Review of Law and Social Science um artigo em que repassava as contribuições experimentais a um dos fenômenos mais curiosos da natureza humana: o rechazo à injustiça. Os seres humanos desejam castigar aos transgressores das normas compartidas, ainda que as consequências das transgressões não lhes afetem, e estão dispostos a fazê-lo inclusive se têm que pagar por isso ou se de alguma forma lhes prejudica pessoalmente a busca de justiça. Quer dizer, que a noção de justiça poderia derivar-se da necessidade de canalizar um sentimento de vingança, depositando em um terceiro (a instituição jurídica, por exemplo) a responsabilidade de obrigar ao infrator a pagar por suas culpas. É o chamado «castigo altruísta», porque os indivíduos castigam o comportamento injusto e não cooperativo, mesmo que o castigo seja custoso e não acarrete nenhum benefício material ao que lhe inflige (E. Fehr & S. Gächter).  Um comportamento no qual um sujeito A, ao ver como outro B se salta as regras da convivência, está disposto a pôr algo de sua parte, contanto que o transgressor B seja castigado e pese a que seu «delito» não afete A de maneira pessoal. O castigador altruísta não recebe nenhum benefício, mas sim sofre uma perda — de bens ou de qualquer outro tipo. Ernst Fehr e colaboradores estudaram esta questão explorando os cérebros de sujeitos mediante a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) enquanto estes decidiam se castigar a uma pessoa que havia abusado previamente de sua confiança violando uma norma justa. O estudo demonstrou que a parte do cérebro crucial no circuito da recompensa ou gratificação se ativa enquanto os sujeitos estão decidindo se castigar ou não. Pesquisadores anteriores demonstraram que esta mesma área se ativa quando, por exemplo, os sujeitos recebem dinheiro, vêem caras formosas, consomem cocaína ou no caso de indivíduos enamorados ao ver imagens de seus amados ou amadas.


 


 


Imagem Ilustrativa do Post: Almada Negreiros Street sculpture and the loving couple // Foto de: Pedro Ribeiro Simões // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/pedrosimoes7/14071603160

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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