Aspectos biopolíticos presentes em “Salò ou os 120 dias de Sodoma”

20/07/2018

¹Laura Mallmann Marcht

² Tiago Protti Spinato

Aos dezoito dias do mês de maio do corrente ano, durante a disciplina “Biopolítica e Direitos Humanos" do Mestrado em Diretos Humanos da Unijuí foi apresentado o filme dirigido por Pier Paolo Pasolini: Salò ou os 120 dias de Sodoma. Tal filme já foi objeto de discussão neste site, e encontra-se disponível em: https://www.garantismobrasil.com/single-post/2015/07/25/Sal%C3%B2-120-dias-antigarantistas. Os argumentos a seguir apresentados, tem como base o que foi discutido após a exibição.

O filme é uma adaptação da obra do autor Marquês de Sade, em que Pasolini ambienta a narrativa para a Itália fascista de Mussolini, período vivido pelo próprio diretor durante a sua vida, que observou de perto as arbitrariedades e terrores de um regime totalitário. Com uma narrativa inovadora para a época, a película é dividida em círculos, fazendo uma clara alusão ao inferno de Dante Alighieri, colocando divisões durante o filme para refletir a evolução dos comportamentos grotescos aos quais as vítimas são expostas.

As cenas de tortura fazem lembrar da obra Eichmman em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal de Hanna Arendt (1999). Faz conexão com conceitos como: banalidade do mal (ao referirem que "nada é mais contagioso que o mal"); obediência cadavérica (porque os sujeitos não se rebelavam contra as práticas totalitárias); solução final (o extermínio nos campos de concentração); os judeus que "importam" (como os jovens são selecionados); carrascos nazistas e afins.

A trilha sonora da obra é um adendo significativo para a compreensão da denúncia proposta. A mesma foi criada pelo compositor italiano Ennio Morricone, e tem uma intersecção magistral com a película, provocando diversas reações aos espectadores: da tensão ao jocoso. Com o decorrer das cenas, a música se torna mais leve e lúdica, proporcionando uma certa normalidade à violência.

Ainda, demonstra uma subversão da ordem política que condizem com as críticas propostas por Giorgio Agamben. Existem cesuras no aspecto interno, sendo que dentro do próprio Estado (contexto nazifascista) existem agrupamentos de pessoas que "importam", e pessoas que "não importam" (como referido por Hanna Arendt em Eichmman em Jerusalém) no momento em que os sujeitos de poder fazem as escolhas dos corpos mais belos, nesse sentido:

A dupla categorial fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua-existência política, zoé-bios, exclusão-inclusão. A política existe porque o homem é o vivente que, na linguagem, separa e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantém em relação com ela numa exclusão inclusiva. [...] a vida nua, isto é, a vida matável e insacrificável do homo sacer, cuja função essencial na política moderna pretendemos reivindicar (AGAMBEN, 2002, p. 12).

Nesse sentido adentra-se a figura do refugiado. De tal modo, os primeiros campos construídos na Europa foram criados como locais de controle para refugiados, em que os nazistas após desnacionalizarem os sujeitos (os direitos não são mais direitos do cidadão), apresentam uma espécie de "solução final" para o homem verdadeiramente sacro: são entregues à morte (AGAMBEN, 2015).

O poder da companhia que representa a tríade montesquiana e o clero é constituído (em dado momento se auto referem como os verdadeiros anarquistas), não sendo necessário que os indivíduos estejam vivos para manterem-se no poder. Desse modo, as mortes não podem ocorrer no mesmo momento sendo um indivíduo morto por vez, e quando for determinado.

Assim é que a tradição dos oprimidos se insere: determinados extratos da sociedade sempre foram e sempre serão marginalizados, "o 'estado de exceção' em que vivemos é na verdade a regra geral, [...] perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo" (BENJAMIN,1987, p. 225).

A primeira morte ocorre quando, do alto do salão, os sujeitos são renegados a uma condição inferior. A companhia refere que ninguém irá lembrar que aqueles sujeitos estavam lá. São claras as referências de um estado excepcionado, ditando quais ações são consideradas delitos (a exemplo das normas iniciais apresentadas pela companhia) e o que é considerado força pura.

Desse modo a película apresenta-se como uma importante denúncia contra estados excepcionados, principalmente com em razão da representação dos três poderes e da igreja que legitimaram a violência estrutural. As barbáries ocorridas dentro do salão são uma forma de demonstrar os horrores que surgem de um estado excepcionado diante da máxima supressão de direitos.

Frisa-se que noções básicas de justiça e democracia eram concretas aos detentores do poder, o que não impediu que tais violações de direitos humanos ocorressem. Na atualidade, por exemplo, ainda existem diversos episódios em que há essas violações, e mesmo que o povo tenha consciência dessas práticas, elas não são contidas. Ainda que o filme tenha sido produzido em 1976, Pasolini obteve um caráter atemporal e reflexivo para o mesmo.

 

Notas e Referências

AGAMBEN, Giorgio. Para além dos Direitos do Homem. In: AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 23-34.

_____; Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

ARENDT, Hannah; Eichmman em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. Tradução: José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito da história. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3957253/mod_resource/content/1/Teses%20sobre%20o%20conceito%20de%20hist%C3%B3ria%20%281%29.pdf>.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Detail of the Sodoma frescoes (8), Oliveto Maggiore, Tuscany, Oct. 2009 // Foto de: Phillip Capper // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/flissphil/4060368002

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