As relações laborais entre os limites da técnica e do corpo: algumas linhas acerca dos testes genéticos em empregados no ambiente de trabalho

26/10/2015

Com o termo técnica entende-se tanto o universo dos meios, ou seja, as tecnologias, quanto a racionalidade que preside o seu emprego, em termos de funcionalidade e existência. A técnica nasceu não como uma expressão do espírito humano, mas como um remédio à sua insuficiência biológica.[1] Assim, ela é a essência do indivíduo, porquanto este não consegue sobreviver sem aquela. Isso implica, inclusive, uma mudança de pensamento, no sentido de superação da visão tradicional que via o ser humano como sujeito e a técnica como um instrumento à sua disposição. Hoje, a técnica é o ambiente dele, o local que o rodeia e o constitui.

A tecnociência transforma, portanto, o mundo e a chamada ordem natural. Essa transformação pareceu relativamente benéfica enquanto que não se a colocou em jogo frente ao próprio ser humano. Todavia, agora, a tecnociência igualmente se centra na sua condição ou na sua essência. Hoje aproxima-se a passos largos o dia em que o corpo humano não poderá ser considerado como imutável. O indivíduo será capaz de remodelar não apenas cada corpo, um a um, mas também a raça humana em seu conjunto.

Diz Umberto Galimberti que o humano, pois, é originariamente dedicado à técnica para compensar a insuficiência dos próprios órgãos, para intensificar as capacidades que possui e para facilitar o trabalho de construção do mundo do qual a sua existência depende.[2] É novamente a consideração da técnica como um espelho do ser humano, já que o agir técnico é a condição da existência humana, a condição da própria inauguração de sua história.

Foi a partir dos novos conhecimentos tecnocientíficos no domínio da genética e da tecnologia médica que se instaurou a discussão sobre os instrumentos de proteção e respeito à vida. A utilização de novas biotecnologias sobre o ser humano gera repercussões de toda ordem que refletem de forma intensa na sociedade e que colocam em jogo, segundo Maria Cláudia Crespo Brauner, interesses políticos, sociais e de mercado.[3] Reflete a autora que a era da biotecnologia se impôs de modo irreversível trazendo uma enorme expectativa de conquistas científicas aplicáveis à cura de doenças e à melhoria da qualidade de vida humana. Disserta, neste sentido, que subsiste a preocupação quanto aos aspectos éticos ligados às pesquisas e práticas científicas para o alcance das metas que guiam o desenvolvimento científico e tecnológico, propulsores do desenvolvimento econômico e social.[4]

Pois, a partir do momento em que o sujeito começa a manipular as técnicas para a cura de doenças ou para a descoberta de novos tratamentos, também inicia um domínio sobre a própria vida, sem se saber, ainda, quais são os limites exatos em que chegará. Mais do que isso; constitui-se um desafio que tal desenvolvimento esteja ao alcance de todas as pessoas, para que possam por ele ser beneficiadas. Garrafa ensina que a força da ciência e da técnica está, exatamente, em apresentar-se como uma “lógica utópica de libertação que pode levar-nos a sonhar para o futuro inclusive com a imortalidade.”[5]

Eis assim a possibilidade de afirmação da técnica como um horizonte último a partir do qual se descobre todos os campos da experiência, não no sentido procedimental, mas como uma condição que decide o modo de se fazer experiência. Ou seja, a mudança daquela condição homem-sujeito e técnica-instrumento para a técnica que dispõe da natureza e do ser humano, que agora encontra-se nesse horizonte já desvelado pela técnica, que decide a forma como ele irá perceber, pensar, sentir e projetar as coisas. É dentro desse horizonte que uma nova preocupação passa a atingir o ambiente laboral: a (im)possibilidade de realização de testes genéticos em trabalhadores. Com a realização do sequenciamento do genoma humano, novas questões éticas surgiram, em especial, na última década, em que a engenharia genética alcançou um patamar de avanço, possibilitando aos seres humanos conhecerem e detectarem as suas propensões ao desenvolvimento de determinadas patologias.

Para Carlos Romeo Casabona, a análise dos dados genéticos é um instrumento útil para realização de estudos sobre pessoas ou grupos que apresentam risco de desenvolver enfermidades condicionadas geneticamente ou tem, ao menos, uma predisposição a sofrer uma enfermidade, antes mesmo que tenham expressado algum sintoma. Seus resultados podem prever a certeza do futuro desenvolvimento da doença, descartar por completo sua aparição, confirmar a existência de um risco superior do que em outras pessoas e, finalmente, que se tem um risco semelhante ao resto da população.[6]

Nesse cenário, o Direito passa a receber a influência de tais dilemas bioéticos, que se irradiam nas mais diversas áreas do conhecimento jurídico. As relações contratuais trabalhistas igualmente serão questionadas pelo desenvolvimento biotecnológico. Diz-se que os testes genéticos em âmbito laboral teriam o potencial de oferecer maior segurança no local de trabalho, protegendo a saúde dos trabalhadores, além de auxiliar o empregador na sua decisão de contratar ou não contratar determinado trabalhador. Em contrapartida, pode tornar o ambiente de trabalho um espaço para o desenvolvimento de discriminação genética, incluindo a perda do posto de trabalho, a dificuldade de galgar alguma promoção, dentre outros aspectos, a partir do momento em que se possibilita o acesso ao patrimônio genético do empregado, entendido como o universo de componentes físicos, psíquicos e culturais que começam no antepassado remoto, permanecem constantes, embora com mutações ao longo das gerações, e em conjugação com fatores ambientais e num processo permanente de interação, passa a constituir a própria identidade da pessoa, e por isso tem-se o direito de guardar, defender e posteriormente transmitir às próximas gerações.[7] Além disso, aponta-se o caráter meramente probabilístico das predisposições genéticas, o direito à intimidade genética, o direito a não saber e, até mesmo, a possibilidade de ocorrência de discriminação genética no ambiente laboral, justamente porque, pelo caráter de probabilidade, não há nenhuma certeza absoluta de que determinada doença irá se manifestar naquele indivíduo.

Resulta, desse conceito, que o patrimônio genético do empregado é formado não apenas pelo seu conjunto de genes, mas, igualmente, a partir de sua interação com o meio ambiente, com os fatores externos que contribuíram para a formação do indivíduo. Assim, o fator genético é importante, porém não é único e determinante, haja vista a necessidade de conjugação de diversos elementos para produzir-se um determinado resultado. A informação genética pode indicar a probabilidade de que o indivíduo venha a sofrer de certa doença, mas a possibilidade de esta nunca ocorrer também é real, pois depende de fatores ambientais para sua manifestação. Por tal razão, o tema ainda permanece em aberto, pois se trata de um conflito muito maior do que de uma mera análise de possibilidades ou não, pois desvela um importante aspecto dos direitos da personalidade do trabalhador, que, por vezes, parece ser olvidado, o direito à intimidade genética no ambiente laboral.


Notas e Referências:

[1] GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica. Tradução: José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006. p.9.

[2] GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica. Tradução: José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006. p .174.

[3] BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Biotecnologia e produção do direito: considerações acerca das dimensões normativas das pesquisas genéticas no Brasil. In: SARLET, Ingo Wolfgang. LEITE, George Salomão. Direitos fundamentais e biotecnologia. São Paulo: Método, 2008. p.175.

[4] BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Biotecnologia e produção do direito: considerações acerca das dimensões normativas das pesquisas genéticas no Brasil. In: SARLET, Ingo Wolfgang. LEITE, George Salomão. Direitos fundamentais e biotecnologia. São Paulo: Método, 2008. p.176.

[5] GARRAFA, Volnei. Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. p.105.

[6] CASABONA, Carlos María Romeo. Genética y Derecho: responsabilidade jurídica y mecanismos de control. Buenos Aires: Astrea, 2003. p.65

[7] BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Direito ao patrimônio genético. Coimbra: Almedina, 1998. p. 17.

BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Direito ao patrimônio genético. Coimbra: Almedina, 1998.

BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Biotecnologia e produção do direito: considerações acerca das dimensões normativas das pesquisas genéticas no Brasil. In: SARLET, Ingo Wolfgang. LEITE, George Salomão. Direitos fundamentais e biotecnologia. São Paulo: Método, 2008.

CASABONA, Carlos María Romeo. Genética y Derecho: responsabilidade jurídica y mecanismos de control. Buenos Aires: Astrea, 2003.

GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica. Tradução: José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006.

GARRAFA, Volnei. Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998.


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