As regras da experiência comum e o ato fundamentado de indiciamento

24/10/2016

Por Marcos Vinicius Krause Bierhalz - 24/10/2016

Embora muitas vezes olvidado pelos manuais de processo penal, nunca se discordou que o ato de indiciamento, por todas as mazelas que o acompanham[1], deveria ser detidamente fundamentado, escorado em elementos indicadores da autoria e da materialidade da infração penal.

Mas se tal entendimento já era pacificado entre os atores da persecução penal (conquanto nem sempre observado, é verdade!), desde 2013 passou a constar expressamente do ordenamento jurídico, notadamente do art. 2º, §6º, da Lei 12.830. Destarte, hodiernamente, o indiciamento inexoravelmente deve se dar através da devida análise técnico-jurídica do fato, realizada pela autoridade policial, demonstrando-se a materialidade, autoria e todas as demais circunstâncias[2].

Mas e como proceder diante de procedimentos policiais que se fazem conclusos contendo, de um lado, a versão da vítima, e, do outro, as declarações do investigado, sem que nenhuma outra diligência possa ser empregada a fim de elucidar os fatos. Ou, então, como fundamentar o ato de indiciamento quando se tem plena convicção da autoria e da existência de determinada infração penal, mas, os elementos informativos colhidos são frágeis (testemunhas ou vítimas que apesar de intimadas, não comparecem ou omitem informações etc.).

Anote-se que tal situação é por demais corriqueira, como, por exemplo, nos delitos ocorridos no seio das relações domésticas e familiares[3], pois, em regra, todos os elementos probatórios se resumem às versões dos envolvidos e de seus familiares – e aí, “azar do falso testemunho e do compromisso com a Justiça”; cada um defende seu melhor interesse.

A propósito, não olvidamos da alta força probatória da palavra da vítima em alguns crimes que são perpetrados longe dos olhares de terceiros e que sequer deixam vestígios, a exemplo do estupro, consoante jurisprudência sedimentada nos Tribunais Superiores[4]. Mas, aqui, pretendemos a abordagem de outro recurso.

Com efeito, parece plenamente cabível a solução da celeuma através da aplicação analógica do art. 375, do novel Código de Processo Civil, isto é, por meio das regras de experiência comum na formação da convicção da autoridade policial. A evidência, trata-se de adaptação ao inquérito policial – especificamente ao ato de indiciamento – de regra genuinamente processual civil.

Art. 375.  O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.

Bem verdade que o dispositivo colacionado é objeto de críticas de parcela da doutrina[5], entretanto, a nosso ver, na formação do juízo de convicção acerca de um fato histórico tipificado pela lei penal, ignorar a experiência comum consiste em fechar os olhos à realidade e caminhar no sentido oposto à verdade. E anote-se, desde já, que não somos adeptos do mito/corrente da verdade real[6].

Dita experiência decorre da imensidão de casos idênticos – não são semelhantes, são idênticos – diariamente registrados nos distritos policiais, assim como também idênticas são algumas ações cíveis, trabalhistas, tributárias aforadas em um mesmo juízo. Em tais casos – e apesar de cada caso, com suas peculiaridades, ser um caso - a experiência comum é salutar método de auxílio na formação da convicção do apreciador dos fatos.

A evidência, a aplicação das regras da experiência comum na formação da convicção da autoridade policial é ainda pouco ou nada tratada no âmbito prático ou teórico. Porém, lado outro, o Superior Tribunal de Justiça as aplica reiteradamente em matérias penais, especialmente no sentido de possibilitar que o julgador, valendo-se do empirismo, caminhe no sentido da verdade, não se detendo à verdade formal, isto é, àquilo que as partes lhe apresentam nos autos. Veja-se:

(...) TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO AO TRÁFICO. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA NAS DECISÕES QUE DEFERIRAM AS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS. SUPERVENIÊNCIA DE CONDENAÇÃO. PREJUDICIALIDADE DA TESE DE AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DE HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDA. (...) 4. As decisões que deferiram as interceptações telefônicas, embora sucintas, foram fundamentadas dentro do contexto probatório contido nos autos, preservando a coerência que se espera de toda decisão judicial. Após investigações preliminares, o Juízo singular, atento à experiência comum (presumptiones hominis) de como geralmente atuam organizações criminosas voltadas ao tráfico de drogas e também aos razoáveis indícios de autoria delitiva trazidos pela autoridade policial, consignou a imprescindibilidade da medida para a apuração do crime, assim satisfazendo as exigências contidas no art. 93, inciso IX, da Constituição da República. (...) (HC 200.138/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 13/08/2013, DJe 23/08/2013) – grifo nosso

Assim, imperioso reconhecer que a autoridade policial, por ocasião da formação de sua convicção para os fins de indiciamento, ou não indiciamento, deve levar em consideração as regras de experiência comum na formação da convicção, e sob o crivo destas deve sopesar os elementos de informação colhidos, principalmente os orais advindos de pessoas detentoras de íntima relação com o fato apurado.

Aliás, em oportuno adendo, é de se reconhecer que não só para o ato fundamentado de indiciamento se deve recorrer às regras de experiência comum, mas inclusive para fins de adequação típica da conduta de tráfico ou porte de entorpecente para uso próprio, sobretudo em face do art. 52, I, da Lei 11.343/06:

Art. 52 (...) I - relatará sumariamente as circunstâncias do fato, justificando as razões que a levaram à classificação do delito, indicando a quantidade e natureza da substância ou do produto apreendido, o local e as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as circunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação e os antecedentes do agente;

E não menos relevante é frisar que se valer da experiência comum para formar a convicção não se confunde com discricionariedade, menos ainda com arbitrariedade. Como já dito, cuida-se de introduzir aos autos – especificamente à fundamentação – conhecimentos cotidianos, absorvidos ao longo de análises de situações anteriores e semelhantes. Trata-se, ademais, do uso do bom senso e do princípio da razoabilidade, afinal, desarrazoado seria ignorar a experiência adquirida para se ater à verdade formal, dando amparo às mais descabidas versões das “falsas vítimas” ou dos “superes culpados”.


Notas e Referências:

[1] SOUZA, David Tarciso Queiroz de. Estudos sobre o papel da Polícia Civil em um estado democrático de direito. 1ª ed. – Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 43.

[2] ANSELMO, Márcio Adriano. Ato de indiciamento deve ser devidamente fundamentado. Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-out-13/academia-policia-ato-indiciamento-devidamente-fundamentado

[3] A situação também é frequente quando “pequenos” traficantes são flagrados em abordagens de rotina pela Polícia Militar. Em tais casos, os elementos informativos se resumem à droga apreendida e aos testemunhos dos milicianos – o que, não raras vezes, torna bastante difícil a tipificação da conduta entre os arts. 28 e 33, da Lei 11.343/06.

[4] STJ, HC 100.314/RS, Rel. Min. Carlos Brito, 1º Turma, j. 22.09.2009.

[5] STRECK, Lenio Luiz. O NCPC e as esdrúxulas "regras de experiência": verdades ontológicas? Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-abr-09/senso-incomum-ncpc-esdruxulas-regras-experiencia-verdades-ontologicas

[6] Está demonstrado empiricamente que o processo penal, sempre que buscou uma verdade mais material e consistente e com menos limites na atividade de busca, produziu uma verdade de menor qualidade e com pior trato para o imputado. (LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 566.)


marcos-vinicius-krause-bierhalz. . Marcos Vinicius Krause Bierhalz é Delegado de Polícia no Estado de Santa Catarina. Especializando em ciências criminais pelo Complexo Educacional Renato Saraiva. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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