As propositais “contradições” do ordenamento jurídico e a lógica irracional do idoso preso

25/03/2015

Por Henrique Zumak - 25/03/2015

Todos somos iguais perante a lei, correto? Não, nem sempre as disposições jurídico-normativas convergem diante do artigo 5º, da Constituição Federal. Nesse excerto será trabalhada a absurda incongruência legislativa relativa ao tratamento dispensado aos idosos, sob o seguinte subterfúgio: mascarar a rigidez punitivista via proteção disfarçada de determinado grupo.

Como se sabe, o Estatuto do Idoso em seu artigo 1º determina que serão resguardados os direitos das pessoas acima de 60 (sessenta) anos, sendo que o mais recente dado de expectativa de vida do brasileiro indicou uma média de 74,9 anos[1]. Em suma, o cidadão brasileiro tem uma média de gozo desses direitos especiais por cerca de 15 (quinze) anos[2].

Com a vigência do Estatuto do Idoso, vieram também inúmeras alterações do Código Penal (sob o manto law and order) para trazer agravantes (art. 61, a, CP), causas de aumento (arts. 121, § 4º, segunda parte, § 7º, segunda parte, 133, § 3º, 141, IV, 148, § 1º, I, 159, § 1º, segunda parte, todos do CP) ou exceções a excludentes de punibilidade de crimes (art. 183, III, CP). Em suma, todas indicaram um movimento político criminal de se trazer um plus à proteção do cidadão acima de 60 (sessenta) anos, ao aumentar as segunda e terceira fase de dosimetria das penas dos crimes cometidos contra tal classe etária de pessoas.

Afinal, nada mais coerente em conferir um quê extra de reprovabilidade da conduta quando não se tem o mínimo de respeito à regra consuetudinária social de cuidado com os cidadãos acima de 60 (sessenta) anos.

No entanto, a lógica protecionista se inverte absurdamente quando o idoso está no polo passivo de qualquer demanda criminal, ou seja, quando ele é apontado como o suposto agente criminoso. O então critério base para definição do idoso - o sexagenário - passa a inexistir, e os benefícios que o réu deveria ter por conta de sua idade se perdem, uma vez que só lhe atingem a partir de 70 (setenta) ou 80 (oitenta) anos.

A título de exemplificação há a atenuante geral contida no artigo 65, § segunda parte, do Código Penal; a ampliação do sursis da pena prevista no artigo 77, § 2º, do Código Penal; a prescrição à metade contida no artigo 115, também do Código Penal; também a previsão de prisão domiciliar ao octogenário no artigo 318, I, do Código Penal; e finalmente a substituição de regime aberto por prisão domiciliar para o reeducando septuagenário (regra praticamente não aplicada uma vez que são raras as casas de albergado no Brasil, de sorte que o regime aberto se trata de efetiva liberdade atrelada a algumas condições de restrição pessoal). Em melhores palavras, os benefícios penais ao réu idoso só lhe atingem quando lhe restam 05 (cinco) anos de expectativa de vida, ou menos.

Ora, a Resolução 46/1991 da Organização das Nações Unidas esclarece (artigos 1, 13, 15 e 17) que os idosos devem ter acesso a alojamento adequado, estímulo à reabilitação, possibilidade de procurar atividades adequadas e serem tratados de maneira justa, pelo que deverão ser dadas todas as oportunidades para que as pessoas idosas capazes, e que o desejam fazer, participem das atividades em curso na sociedade e contribuam para as mesmas (preâmbulo da referida resolução).

Como isso pode ocorrer se ao passo que o Brasil sustenta política humanitária adequada ao idoso livre, promove política criminal aniquiladora do idoso réu, em total desacordo com o princípio da igualdade (art. 5º, CF e art. 4º, 10.741/2003)?

A situação se agrava ainda mais quando se observa o único benefício ao idoso réu sexagenário: o artigo 82, § 1º, da Lei 7.210/84 impõe que (...) o maior de sessenta anos, separadamente, será recolhido a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal.

Em breve verificação a respeito do esquecimento do réu/investigado/reeducando idoso, observou-se que não há nenhuma pesquisa de órgãos oficiais sobre o tema, desde o Conselho Nacional de Justiça até as Secretarias Estaduais de Gestão Prisional/da Justiça (a nomenclatura varia entre os entes federativos), tampouco há notícia sobre unidades prisionais com destinação exclusiva para idosos. Isso tudo a despeito da previsão sobre a destinação privilegiada de recursos para proteção de idosos, conforme artigo 3, III, do Estatuto do Idoso.

O panorama criminal do idoso é o seguinte: quando se é vítima, impõe-se um plus de reprovabilidade a partir dos 60 (sessenta) anos; quando se é agente, seus respectivos benefícios são a partir de 70 (setenta) ou 80 (oitenta) anos; e o único, repita-se, único benefício ao preso sexagenário previsto em lei, inexiste no mundo dos fatos.

Tratar-se-ão os iguais na medida de suas desigualdades. Eis os desiguais tratados como tais, in casu, são: mulheres; advogados; os ministros de Estado;  os governadores ou interventores de Estados ou Territórios; o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários; os prefeitos municipais; os vereadores e os chefes de Polícia; os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembleias Legislativas dos Estados; os cidadãos inscritos no "Livro de Mérito"; os oficiais das Forças Armadas e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios; os magistrados; os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República; os ministros de confissão religiosa; os ministros do Tribunal de Contas; os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função; os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos (Estatuto dos Advogados e artigo 295, do Código de Processo Penal).

Todos eles, de certa forma[3], têm suas prerrogativas e direitos devidamente obedecidos e, caso isso não ocorra no mundo dos fatos (ou seja, estabelecimento condigno e adequado às prerrogativas e direitos desses desiguais), imediatamente a prisão é substituída/convertida pela domiciliar ou simplesmente revogada. A única e exclusiva exceção é o idoso.

Qual a solução para a problemática apresentada? Será estabelecer interpretação sistemática capaz de equalizar todos os direitos do idoso a partir do que a própria lei define por idoso? Será impor regra geral de prisão domiciliar para idosos, haja vista a ausência de unidade prisional exclusiva e adequada a tal grupo etário? Ou simplesmente fecharmos os olhos para a política criminal punitivista e assumirmos com complacência a interpretação literal de cada um dos absurdos artigos aqui hostilizados?

Abre-se um breve parêntese antes de responder a tais questionamentos: a nossa pátria mãe que dormia tão distraída sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações[4] está a acordar - toda a nação é diariamente bombardeada com investigações/prisões/condenações a respeito de executivos multimilionários na denominada Operação Lava Jato.

O estado atual é de extrema indignação social, com movimentos populares vorazes pela cessação da (sensação) impunidade ante aos supostos corruptos/corruptores já descobertos e os que estão na mira do Ministério Público Federal.

E qual a relação da Operação Lava Jato com esse excerto? O problema atual é o seguinte: a maioria dos executivos de alto escalão, aqueles mesmos que estão presos (segundo a mídia transferidos para unidade prisional comum em 23 e 24/03/2015, após mais de 120 dias de prisão na Polícia Federal) em razão das mencionadas investigações, são idosos. De acordo com a Harvard Business Review[5], a maioria dos altos executivos são idosos ou estão próximos de se tornarem sexagenários, pelo que são esses que são acusados, na maioria das vezes, de crimes econômico-financeiros-tributários e afins.

Pois bem, pouco importa quem é o réu, ou qual cargo ocupa ou o quanto alto grita a sociedade por “vingança”. O que interessa é que todos os desiguais citados acima têm seus respectivos direitos de prisão diferenciada cumprida, salvo o idoso; vive-se num Estado Democrático Social e Constitucional de Direito, de sorte que cabe ao Estado-Juiz ter a sensibilidade e coragem de não ceder a massa das ruas e aplicar o que a cada um é de direito.

A solução é simples, desnecessitando passar por uma adequação sistemática do que entende a lei por idoso (num mundo perfeito, isso seria o ideal): a proposta passa por uma mera obediência à Lei de Execução Penal, a qual não se tem notícia de que foi cumprida nesse aspecto em nenhum estado da federação.

Se o preso idoso tem direito a ter estabelecimento prisional separado e adequado a suas necessidades e isso não lhe é proporcionado pela Administração Pública, que a regra seja a prisão domiciliar como único meio apto a legalmente restringir a liberdade de alguém acima de 60 (sessenta) anos.

Isso tudo, por prestígio ao princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana, como se fosse uma prisão domiciliar humanitária, independentemente da regra do artigo 319, do Código de Processo Penal, eis que ela não pode ser interpretada restritivamente como se somente o octogenário tivesse esse direito.


Notas e referências:

[1]G1. Sítio eletrônico de notícias. http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2014/12/expectativa-de-vida-dos-brasileiros-sobe-para-749-anos-diz-ibge.html Acesso em 20/03/2015, às 10h.

[2] Entretanto, naturalmente por razões político econômicas que não convém criticar nesse momento, previu a Lei 10.741/2003 que a previdência em caso de incapacidade direta e indireta de subsistência e a gratuidade no transporte público seria a partir dos 65 (sessenta e cinco) anos. Isto é, nesse caso a média de gozo desses direitos diminui para 10 (dez) anos.

[3] A expressão “de certa forma” foi utilizada em razão de não haver no Brasil a chamada sala de Estado Maior exigida para manter advogados presos, sendo que ou eles são mantidos erroneamente em quarteis de polícia militar ou têm suas respectivas prisões substituídas por prisão domiciliar.

[4] Trecho da música “Vai Passar” de Chico Buarque

[5] http://www.hbrbr.com.br/materia/quem-ocupara-os-altos-cargos


Henrique Zumak Moreira é graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES; Pós-graduado em Ciências Criminais e Direito Penal Econômico pelo IDPE – Instituto de Direito Penal Econômico Europeu/Universidade de Coimbra; Especialista em Compliance pelo LEC – Legal Ethics and Compliance; Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e ao LEC – Legal Ethics and Compliance;                                                                                                                                                             


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