As memórias ambientais

16/12/2018

Introdução

Por diversas vezes, independentemente da idade, somos incomodados pelo esquecimento ou pela lembrança de fatos, atos e acontecimentos; alguns ligados ao universo da felicidade e outros remoídos da angustia existencial ou das dores humanas. O fato é que na roda da vida, o que fazemos ou que pensamos fica, geralmente, armazenado em um universo “paralelo”, embuçado por uma proteção que pode ser instintiva para sobrevivência da mente ou produzida por fatores externos, ideologizados para programar e reprogramar a mente humana, induzindo ao esquecimento natural ou por proposito de um dado sistema de valores de poder.

As memorias de um Ser Humano, a depender do ponto de vista, podem movimentar estruturas sociais ou abalar sistemas de poder; de outro lado, a manipulação da memória pela fabricação de memorias falsas ou pela indução ao esquecimento pode domesticar, enganar e até arruinar a cultura de um povo. O Ser Humano pode estimular a recordação de memorias boas ou exercitar o bloqueio para esquecer as memorias ruins, bloqueando-as ou evitando que certos acontecimentos imperfeitos do pretérito ocupem espaços e apaguem as memorias dos fatos alegres. Igualmente, é comum encontrar sistemas de poder que desenvolvem programas com a intenção de aniquilar as memorias que, eventualmente, possam provocar rupturas sociais ou contestações à luz da história; como são casos do ressurgimento de governos autoritários, de extrema direita, com ideologias que apregoam ideais de homofobia e xenofobia.

O esquecimento seja no universo individual, familiar ou social não é de todo desnecessário, podendo representar uma importante válvula de escape para a sobrevivência, do contrário, muitos Seres Humanos não poderiam viver em ambientes que foram de alguma forma, hostilizados. A questão, contudo, é o risco da manipulação do esquecimento, pois, há um risco quando realizado por meio de estruturas de poder que alimentam interesse certo e determinado.

Vê-se, de alguma forma, que o Ser Humano é tomado pelo esquecimento ou pela introdução “espontânea” ou induzida das memorias falsas. Os reflexos do esquecimento podem alcançar uma ambiguidade na medida em que o esquecimento de fatos é importante para a continuidade da vida de um indivíduo em ambientes áridos; entretanto, de outro lado, o esquecimento de acontecimentos sociais acaba remetendo os indivíduos a um universo de ignorância arriscada para o desenvolvimento de toda uma sociedade. As falsas memorias, por sua vez, geram ilusões que se transformam em mentiras, cuja repetição incessante acaba por transforma-la em uma “verdade”. O Ser Humano ao criar uma memória falsa constrói uma vida fictícia; uma simulação da realidade pretendida, uma vida virtual, para ser mais moderno. No paralelo, as memorias falsas também são ordenadas e induzidas para alimentar sentimentos da “massa” de Seres Humanos, geralmente com propósitos escusos. Em tempos de internet e redes sociais, a sociedade está exposta aos interesses econômicos e políticos que subliminarmente produzem e introduzem memorias falsas no cotidiano com o objetivo de manipular informações, afastar as memorias verdadeiras e construir um universo paralelo ou, no mínimo, duvidoso.

O meio ambiente, embora seja parte do pertencimento humano, é vítima cotidiana do esquecido e da memória desvirtuada. O presente texto pretende dialogar sobre a importância da memoria ambiental.

 

A memória ambiental.

O que lembramos, por exemplo, sobre incidentes ambientais no mundo e no Brasil? Pergunte-se e depois prossiga com a leitura. A título de recordação, relembraremos os principais acidentes ambientais ocorridos no mundo e no Brasil, segundo dados da Unicamp[1]

 

Tragédias no mundo

 

1945 - Bombas de Hiroshima e Nagasaki - lançadas pelos Estados Unidos contra o Japão, no fim da Segunda Guerra Mundial, essas duas bombas nucleares mataram, aproximadamente, mais de 200 mil japoneses. Num raio de um quilômetro do centro da explosão, quase todos os animais e plantas morreram devido às ondas de choque e calor.

1954 - Doença de Minamata - numa ilha localizada no sudoeste do Japão, os animais começaram a apresentar comportamentos estranhos. Em 1956, humanos passaram a ter as mesmas reações: convulsões e perda ou descontrole das funções motoras. Após estudos, verificou-se que a doença estava relacionada ao envenenamento das águas com mercúrio e outros metais pesados, infectando também peixes e mariscos.

1976 - Nuvem de Dioxina - na cidade de Seveso, na Itália, após explosão em uma fábrica de produtos químicos, foi lançada ao ar uma espécie de nuvem composta de dioxina (subproduto industrial gerado em certos processos químicos, como na produção de cloro e inseticida, bem como na incineração de lixo), que permaneceu estacionada sobre a cidade. Os primeiros impactos foram observados nos animais, que começaram a morrer gradativamente. Já os humanos passaram a apresentar feridas na pele, desfiguração, náuseas e visão turva, dentre outros sintomas.

1979 - Three Mile Island - conhecido como “Pesadelo Nuclear”, esse desastre ocorreu quando o reator de uma usina nuclear da Pensilvânia passou por uma falha mecânica, aliada a erro humano. Foram lançados gases radioativos em um raio de 16 quilômetros. A população não foi informada sobre o acidente; somente dois dias depois, foi retirada do local. Não houve mortes relacionadas ao acidente, e nenhum dos habitantes do local ou entorno tiveram sua saúde afetada.

1984 - Vazamento em Bhopal - um vazamento em uma fábrica de agrotóxicos despejou no ar da cidade de Bhopal, na Índia, mais de 40 toneladas de gases tóxicos. Após o acidente, a empresa abandonou o local, e mais de duas mil pessoas morreram pelo contato com as substâncias letais, e outras sofreram queimaduras nos olhos e pulmões.

1986 - Explosão de Chernobyl - a explosão de um dos quatro reatores de Chernobyl, na Ucrânia, foi o pior acidente nuclear da história, liberando uma radiação dezenas de vezes maior que a das bombas de Hiroshima e Nagasaki. Imediatamente, 32 pessoas morreram e outros milhares perderam a vida nos anos seguintes. A nuvem nuclear atingiu a Europa e contaminou quilômetros de florestas.

1989 - Navio Exxon Valdez - o petroleiro colidiu com rochas submersas na costa do Alasca e iniciou um derramamento sem precedentes (cerca de 40 milhões de litros de petróleo), contaminando mais de dois mil quilômetros de praias e causando a morte de cem mil aves. 1991 - Queima de petróleo no Golfo Pérsico - o ditador iraquiano Saddam Hussein ordenou a destruição de centenas de poços de petróleo no Kuwait. Foram lançados mais de um milhão de litros de óleo no Golfo Pérsico, e a fumaça da parte que foi queimada bloqueou a luz do Sol. Ao menos mil pessoas morreram de problemas respiratórios e animais foram infectados.

1999 - Usina Nuclear de Tokaimura - no nordeste de Tóquio, houve um acidente em uma usina de processamento de urânio. Centenas de operários ficaram expostos à radiação e tiveram, além de náuseas, o rosto, as mãos e outras partes do corpo queimados.

2002 - Navio Prestige - o petroleiro grego naufragou na costa da Espanha, e despejou mais de dez milhões de litros de óleo no litoral da Galícia, contaminando 700 praias e matando mais de 20 mil aves.

 

Desastres no Brasil

 

1980 - Vale da Morte - o jornal americano batizou o polo petroquímico de Cubatão (SP) como “Vale da Morte”. As indústrias localizadas na cidade de Cubatão despejavam no ar toneladas de gases tóxicos por dia, gerando uma névoa venenosa que afetava o sistema respiratório e gerava bebês com deformidades físicas, sem cérebros. O polo contaminou também a água e o solo da região, trazendo chuvas ácidas e deslizamentos na Serra do Mar.

1984 - Vila Socó - uma falha em dutos subterrâneos da Petrobras espalhou 700 mil litros de gasolina nos arredores dessa vila, localizada também em Cubatão (SP). Após o vazamento, um incêndio destruiu parte de uma comunidade local, deixando quase cem mortos.

1987 - Césio 137 - um grave caso de exposição ao material radioativo Césio 137 ocorreu em Goiânia (GO). Dois catadores de lixo arrombaram um aparelho radiológico nos escombros de um antigo hospital, e encontraram um pó branco que emitia luminosidade azul. O material foi levado a outros pontos da cidade, contaminando pessoas, água, solo e ar, e causando a morte de pelo menos quatro pessoas. Anos depois, a Justiça condenou por homicídio culposo os três sócios e um funcionário do hospital abandonado, mas a pena foi revertida em prestação de serviços voluntários.

2000 - Vazamento de óleo na Baía de Guanabara - um acidente com um navio petroleiro resultou no derramamento de mais de um milhão de litros de óleo in natura no Rio de Janeiro. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aplicou duas multas à Petrobras, uma de R$ 50 milhões e outra de R$ 1,5 milhão, devido à morte da fauna local e poluição do solo em vários municípios.

2003 - Vazamento de barragem em Cataguases - o rompimento de uma barragem de celulose em Minas Gerais ocasionou o derramamento de mais de 500 mil metros cúbicos de rejeitos, compostos por resíduos orgânicos e soda cáustica. Os rios Pomba e Paraíba do Sul foram atingidos, causando sérios danos ao ecossistema e à população ribeirinha. As empresas foram multadas em R$ 50 milhões pelo Ibama.

2007 - Rompimento de barragem em Miraí - uma barragem rompeu nessa cidade mineira, causando um vazamento de mais de dois milhões de metros cúbicos de água e argila. A empresa foi multada em R$ 75 milhões, mas os danos ainda permanecem evidentes.

2011 - Vazamento de óleo na Bacia de Campos - houve o vazamento de uma grande quantidade de óleo no Rio de Janeiro. A empresa americana Chevron despejou no mar cerca de três mil barris de petróleo, provocando uma mancha de 160 quilômetros de extensão. Animais foram mortos e o Ibama aplicou duas multas à empresa, totalizando R$ 60 milhões. A Chevron foi também obrigada a pagar uma indenização de R$ 95 milhões ao governo brasileiro pelos danos ambientais.

2015 - Incêndio na Ultracargo - um incêndio no terminal portuário Alemoa, em Santos, litoral Sul de São Paulo, gerou uma multa de R$ 22 milhões, aplicada pelo órgão estadual de meio ambiente à Ultracargo, por lançar efluentes líquidos em manguezais e na lagoa contígua ao terminal. Foram também emitidos efluentes gasosos na atmosfera, colocando em risco a segurança das comunidades próximas, dos funcionários e de outras instalações localizadas na mesma zona industrial.

2015 - Rompimento da barragem de Mariana - em 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco, em Mariana (MG), provocou a liberação de uma onda de lama de mais de dez metros de altura, contendo 60 milhões de metros cúbicos de rejeitos. Em Minas Gerais, na última década, ocorreram desastres ambientais com mineração em Nova Lima (2001), em Miraí (2007), e em Itabirito (2014).

 

Aberta a memória dos incidentes, pergunte-se: porque você não se lembra de todos ou de quase todos os desastres ambientais? Como a sociedade trabalha as memorias relacionadas com os problemas de ordem ambiental? Qual o nível de envolvimento dos Governos e das Sociedades Empresárias para manutenção da memória ativa sobre os acidentes ambientais? No que a memória dos acidentes ambientais pode contribuir para evitar futuros acidentes e a vitimização dos Seres Humanos? Qual o nível de verdade você sabe sobre os danos ambientais?

 

A perigosa manipulação da memoria coletiva e o esquecimento seletivo.

Cotidianamente, a sociedade é tomada por fatos e acontecimentos que transformam a vida política, social, econômica e ambiental de um país, fatos que podem marcar o universo particular de indivíduos, comunidades e até de um país inteiro. 

Do ponto de vista pessoal, o Ser Humano constrói memorias boas e ruins, porém, são as memórias de violência ou de tragédia que alcançam um nível de fixação e de repetição na lembrança. Enquanto sociedade as memórias estão ligadas aos acontecimentos que conseguem tocar a sensibilidade humana pela comoção, pela tristeza, pela raiva, pelo ódio e, por vez até por um sentimento de solidariedade. Entretanto, há acontecimento que mesmo diante da virulência e da irracionalidade das práticas, acaba sendo descartado, bloqueado por sugestionamento e até mesmo falseado pelos detentores das estruturas de poder. Veja o caso do Brasil, por exemplo, em relação ao golpe militar de 1964. O estado de exceção do Brasil, em regra, não é objeto de reflexão ou de estudo apurado pelas gerações que sucedem as gerações, provocando um esquecimento paulatino das mazelas e permitindo que a sociedade de hoje acabe flertando com propostas conservadoras e antidemocráticas.

Cite-se a controvérsia gerada pelo Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal Dias Tofoli[1], em recente manifestação sobre o período em que o Brasil foi governado pelos militares ao utilizar o texto de Daniel Aarão Reis e declarar que o Brasil viveu um movimento de 64. A informação gerou desconforto e os mais variados comentários dos diversos setores políticos partidários, ainda que pautado sob um argumento de autoridade, como é o caso do historiador. Sem entrar no mérito da declaração do Presidente do STF, o fato é que a ideia de movimento é contestada por uma parte razoável da sociedade brasileira e da sociedade mundial. A compreensão do estado de exceção como um movimento exige responder a algumas questões, dentre as quais, destaca-se: a) o que fazer com a memoria das famílias enlutadas pela morte ou pelo desaparecimento de parentes? b) como desconsiderar as atrocidades e as violências praticadas por oficiais militares? c) como apagar os registros e as fotos dos locais das torturas (porões, celas)? d) como explicar a tomada do poder pelo viés da força, com o fechamento do congresso nacional em 1966 pelo Presidente Castelo Branco?

O exemplo de 1964 no Brasil serve para compreender o quanto é possível manipular a memória ou provocar o esquecimento de fatos e acontecimentos importantes para a sociedade, gerando uma falsa memoria da realidade ou de dados históricos importantes para a compreensão da vida e para tomada de decisões políticas atuais, como as eleições que ocorreram no Brasil em 2018. 

A arte de fazer esquecer ou de falsear a memória foi minuciosamente explicada pelo Professor Ivan Izquierdo[2], aduzindo que tal arte pode ser aplicada para fazer com que todo um povo esqueça suas memórias. Para Ivan Izquierdo (2004, p. 70/71), duas questões são perversamente aplicadas a um povo, no que se refere às memorias falsas e ao esquecimento. Primeiro, expõe que “um mentira, se suficientemente repetida, faz com que os povos esqueçam a verdade”. Segundo, declara que “se há uma ‘arte’ especialmente maldita é esta, a de forçar, através da propaganda o esquecimento de coisas importantes a povos inteiros, substituindo-as por mentiras, intoxicas pelas mentiras, estes povos podem ser levados a cometer as piores barbáries”.

Os ricos à memória de um povo ou as tentativas de fazer uma sociedade esquecer sua história exigem atitudes que perpassam por ações governamentais através de programas que sejam capazes contar e manter viva a história através de museus, programas educativos, promoção de eventos, dentre outras ações que possam manter a memória do povo atenta aos fatos históricos, discutindo e avaliando o passado para melhorar as práticas sociais, econômicas, ambientais e políticas do presente e do futuro.   

 

Conclusão.  

As memórias ambientais do Brasil estão espalhadas por todas as partes, não faltando exemplo de degradação ambiental, desmatamento florestal ou poluição do ar e dos rios. A questão que se coloca na reflexão é o quanto a população brasileira é capaz de manter viva a memoria envolvendo os erros praticados na área ambiental para melhorar a prática da sustentabilidade dos recursos naturais para o futuro.

Igualmente, é fundamental retirar a fumaça que falseia a memoria da sociedade ou que provoca o esquecimento dos fatos realizados em desfavor do meio ambiente, evitando a deturpação das informações, como ocorre com as políticas ambientais apregoadas pelo governo eleito no Brasil em 2018, dentre as quais as políticas que favorecem o agronegócio ou que pretendem afastar o  Brasil do Acordo de Paris.

 

 

Notas e Referências

[1] Disponível em https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/12/01/principais-desastres-ambientais-no-brasil-e-no-mundo. Acesso em 14 de dez. 2018.

[2] IZQUIERDO, Ivan. A arte de esquecer: cérebro, memória e esquecimento. Rio de Janeiro: Vieira e Lent. 2004.

[1] Disponível em  https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/toffoli-diz-que-hoje-prefere-chamar-ditadura-militar-de-movimento-de-1964.shtml. Acesso em 14 de dez. 2018.

 

 

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