As Mazelas do Poder Judiciário – Uma Breve Análise sobre o Direito Processual Penal e o Efeito Midiático

04/10/2018

 

O país parece dividido em duas grandes frentes completamente opostas, onde tudo, ou praticamente tudo, se torna debate político e não jurídico. A crescente onda de insatisfação da população brasileira com o Poder Judiciário reflete-se nas pesquisas realizadas, onde aponta-se a crença de 24% no órgão citado, enquanto que a confiança no Governo Federal remanesce em alarmantes 6%[1]. O impacto é causado principalmente nas notícias às quais nos deparamos cotidianamente, afinal, não são raros os dias em que surgem novos e inumeráveis indícios de mais e mais esquemas de corrupção que impactam diretamente sobre toda a população. 

É sabido e notório que os processos que mais despontam na mídia atualmente são de líderes e ícones políticos que há muito já ilustram os meios de comunicação de milhões de brasileiros. E, invariavelmente, através destes processos judiciais, passa-se a população a explícita atuação do Poder Judiciário brasileiro, órgão independente de atuação, conforme preceituado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 

O sistema legislativo brasileiro obedece como regra ao chamado Civil Law com origem romano-germânica. Em breves palavras, a lei é a fonte primária do sistema jurídico[2]. Nesta toada, imperioso ressaltar o inciso II do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a qual expõe que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei[3]. O direito atende ao que está positivado. Diferentemente da escola Common Law, de origem anglo-saxônica, onde “não existem normais legais tipificadas, cabendo ao magistrado, em cada caso, decidir em conformidade com os costumes jurídicos enraizados em cada comunidade”[4]. Esta última corrente vigente em países como os Estados Unidos da América e Inglaterra. 

Todavia, isso não quer dizer que o Brasil obedeça essencialmente e tão somente ao que se encontra escrito em nosso ordenamento jurídico. Abelardo Lobo discorre em sua obra sobre as dificuldades em se legislar sobre o Direito Privado. Isto porque estas são da própria essência da sociedade civil, à qual pode passar por constantes transformações de acordo com os regimes políticos sucessivamente diversos. Diferentemente de legislar sobre o Direito Público, já que nesta visão tão somente estariam se transformando princípios e regras de governo em normas e leis de administração[5]

Assim, importante salientar o art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, o qual declara que na omissão da lei, deve o juiz decidir de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito[6]. Ou seja, ainda que o Brasil obedeça em regra geral ao que está positivado, as lacunas jurídicas são supridas por outras fontes do direito. 

Neste cenário, passo a discorrer acerca dos poderes expressos na nossa Carta Magna de Leis, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Após um longo período de ditadura militar – às quais ainda hoje remanescem mazelas oriundas de um sistema político sem a participação popular, sem liberdade de imprensa e sem liberdade de expressão –, há a consolidação da democracia juntamente com os princípios fundamentais que passarão a reger um novo Estado e uma nova forma de governo[7]

Neste contexto, ao longo das décadas e em verificação e estudo de diversos e sucessivos tipos de governo democráticos (muitas vezes autoproclamados)[8], chega-se a um conceito básico de democracia como uma nova organização social em que o controle político é exercido através do povo. Norberto Bobbio, um dos maiores expoentes jurídicos da história contemporânea, apresenta um conceito mínimo de democracia em sua obra, senão vejamos: 

Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. Todo grupo social está obrigado a tomar decisões vinculatórias para todos os seus membros com o objetivo de prover a própria sobrevivência, tanto interna como externamente. Mas até mesmo as decisões de grupo são tomadas por indivíduos (o grupo como tal não decide). Por isto, para que uma decisão tomada por indivíduos (um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva é preciso que seja tomada com base em regras (não importa se escritas ou consuetudinárias) que estabeleçam quais são os indivíduos autorizados a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros do grupo, e à base de quais procedimentos. No que diz respeito aos sujeitos chamados a tomar (ou a colaborar para a tomada de) decisões coletivas, um regime democrático caracteriza-se por atribuir este poder (que estando autorizado pela lei fundamental torna-se um direito) a um número muito elevado de membros do grupo. Percebo que "número muito elevado" é uma expressão vaga. No entanto, os discursos políticos inscrevem-se no universo do "aproximadamente" e do "na maior parte das vezes" e, além disto, é impossível dizer "todos" porque mesmo no mais perfeito regime democrático não votam os indivíduos que não atingiram uma certa idade.[9]

 

Assim, verificamos que a democracia passa a ser um dos modelos ideais de governo precipuamente pela representatividade colocada em vigência através da população, todavia, pertinente e indispensável ressaltar que esta ainda carece de melhorias, como qualquer outro modelo político.

 

Colocado à posto o conceito de democracia, estabelecido no primeiro artigo da CRFB/1988, passo a discorrer acerca da separação dos Poderes da União. Estes, previstos no artigo seguinte, traz a classificação de poderes independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário[10]. Um dos precursores e lapidadores deste atual modelo, o pensador iluminista Montesquieu em sua obra expõe:

A liberdade política, em um cidadão, é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se tenha essa liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão.

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.

Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.[11]

Ou seja, ainda que independentes e harmônicos entre si, é intrínseco que um não deve se sobressair para com o outro, ocorrendo até mesmo entre estes uma limitação. O Poder não pode e não deve estar concentrado em uma só pessoa ou até mesmo em um só corpo de magistratura, sob pena de decisões arbitrárias e manifestamente injustas.

Tema do presente, me aterei em discorrer acerca do Poder Judiciário. Este é regido pelo Capítulo III da CRFB/1988 comportando os arts. 92 ao 126. Grosso modo, o Poder Judiciário é incumbido da aplicação das leis. Nas palavras de Gilmar Mendes, ministro da Corte Suprema brasileira:

A Constituição de 1988 confiou ao Judiciário papel até então não outorgado por nenhuma outra Constituição. Conferiu-se autonomia institucional, desconhecida na história de nosso modelo constitucional e que se revela, igualmente, singular ou digna de destaque também no plano do direito comparado. Buscou-se garantir a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário. Assegurou-se a autonomia funcional dos magistrados.

(...)

Destaca-se que, diferentemente do Legislativo ou do Executivo, que se encontram em relação de certo entrelaçamento, o Poder Judiciário, ou a Jurisdição, é aquele que de forma mais inequívoca se singulariza com referência aos demais Poderes. Konrad Hesse observa que não é o fato de o Judiciário aplicar o Direito que o distingue, uma vez que se cuida de afazer que, de forma mais ou menos intensa, é levado a efeito pelos demais órgãos estatais, especialmente pelos da Administração. Todavia, o que se caracterizaria a atividade jurisdicional é a prolação da decisão autônoma, de forma autorizada e, por isso, vinculante, em casos de direitos contestados ou lesados.

As garantias do Poder Judiciário, em geral, e do magistrado, em particular, destinam-se a emprestar a conformação de independência que a ordem constitucional pretender outorgar à atividade judicial. Ao Poder Judiciário incumbe exercer o último controle da atividade estatal, manifeste-se ela por ato da Administração ou do próprio Poder Legislativo (controle de constitucionalidade). Daí a necessidade de que, na sua organização, materialize-se a clara relação de independência do Poder Judiciário e do próprio juiz em relação aos demais Poderes ou influências externas.[12] 

Portanto, temos que a função principal do Poder Judiciário (função típica) é julgar (aplicação das leis em casos concretos). A função jurisdicional é demonstrada etimologicamente (juris dictio), da qual significa dizer o direito. E ainda assume outras funções de forma excepcional (funções atípicas) como legislar (Tribunais editando os próprios regimentos internos) e administrar (o próprio Judiciário contratando ou demitindo funcionários por exemplo)[13]

Feitas estas considerações, passo a discorrer sobre a efetividade do Poder Judiciário atualmente no Brasil. 

Nas últimas pesquisas de verificação da confiança na atuação do Poder Judiciário verificamos quedas recorrentes. Enquanto o Conselho Nacional de Justiça estipula em 70% um índice meta de confiança ao órgão[14], os estudos têm apontado resultados bem aquém do almejado. 

Na análise dos últimos anos, o índice de convicção baixou de 34% em 2013 até os atuais 24%[15], conforme pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas durante o primeiro semestre de 2017. Os números são significativos, isto porque nos anos anteriores não haviam grandes oscilações nas pesquisas realizadas. À título de curiosidade, as instituições com maiores quedas nos percentuais de confiança são o Governo Federal, o Ministério Público e as Grandes Empresas[16]

Ainda de acordo com a pesquisa citada, extraímos diversas informações. Uma delas é que a confiança não muda conforme a idade, ou seja, a percepção e a desconfiança demonstrada é geral e não atinge somente uma parcela da população e tampouco apenas uma região do país. Outro dado interessante também demonstra que a crença não varia significativamente de acordo com a aferição de renda da população, apesar de que as pessoas com renda mais baixa tendem a acreditar menos na justiça. A escolaridade é outro fator que não influencia significativamente na segurança em ingressar com uma demanda judicial[17]

Com relação às situações que mais ensejariam ações judiciais, verifica-se que a procura pela resolução de um conflito é principalmente buscada nas relações de consumo, seguida de perto pelas relações trabalhistas e posteriormente, as relações com o Poder Público, prestação de serviços e judicialização da saúde. Todavia, os conflitos que de fato levam as pessoas a buscar o Poder Judiciário são as questões trabalhistas, seguidas pelo direito do consumidor, direito de família e direito criminal. 

Apesar disso, mesmo com as recorrentes críticas e falta de confiança no Poder Judiciário, as pessoas ainda tendem a procurar o mesmo para a resolução de seus conflitos.  Nesta toada, na avaliação da população, os principais problemas que afetam o ingresso ao Poder Judiciário, estão ligadas à lentidão para a resolução da demanda pleiteada, ao custo, à desonestidade, à dificuldade no uso, em duvidar da competência e por considerar ser nada ou pouco independente frente a outros Poderes. 

Ainda, o Supremo Tribunal Federal, instância máxima do Judiciário brasileiro, avaliada à parte na pesquisa, também concentrou 24% de credibilidade pela população[18]

Estes dados refletem-se, em verdade, da expressa atuação da mídia que leva ao seu público a notícia que mais movimente e acentue um sentimento próprio de justiça da população, maquiando uma sensação de paz e explorando um sentimento de impunidade, conforme o que convém. Afinal, vendas são necessárias para o funcionamento da instituição. Inclusive, verifica-se através das pesquisas que a confiança nas redes sociais, na imprensa escrita e em emissoras de televisão representam, respectivamente, 37%, 35% e 30% em termos de credibilidade, não apresentando mudanças significativas nos últimos cinco anos. Ou seja, acredita-se mais na mídia no que na própria justiça. Discorre Chaves Junior: 

A mídia, além de interferir direta e rapidamente no segmento de controle formal, atua nos momentos em que se sente ameaçada em seus interesses. Identificada qualquer ameaça, os meios de comunicação de massa lançam mão de uma campanha de lei e ordem, com objetivo de criar uma sensação de pânico generalizado, ocasionando uma pressão pública às agências políticas ou judiciais, com objetivo de deter tais ameaças. Estas campanhas se realizam através da distorção pelo aumento de espaço publicitário dedicado aos fatos de sangue, da invenção direta de fatos que não aconteceram, da instigação pública para a prática de delitos mediante as mensagens “a impunidade é absoluta, os menores podem fazer qualquer coisa, os presos entram por uma porta e saem pela outra”, da instigação à violência coletiva, à autodefesa, glorificação de justiceiros etc.[19]

A população atenta aos processos mais midiáticos demonstrados pelo jornalismo brasileiro, muitas vezes através de investigações de próprios jornalistas e, inclusive, com a realização de simulações de crimes acontecidos, forma sua opinião na justiça pautado por tais processos difundidos através dos meios de comunicação. A mídia acaba por se tornar uma extensão do direito penal (informação verbal)[20]. Noutro norte, muitos outros são os casos de pessoas que dependem ou dependeram do resultado da justiça para “satisfações” pessoais ou rápidas resoluções e que ainda aguardam desfechos.

Nesta feita, há de se destacar que através destes processos, difundidos através dos meios de comunicação, que a grande maioria da população extrai e forma o seu próprio senso de justiça, pois torna-se pautado a partir do momento da condenação midiática (antes mesmo da processualista), onde o processo torna-se meramente uma ferramenta para se chegar a uma condenação, onde nem mesmo há mais a aparência de legalidade pois, como dito acima, a atenção da população logicamente tende à verificação do resultado e não do processo em si. Neste ponto reside o problema apresentado.

Não há mais o respeito à legislação vigente e tão somente processos conduzidos a fim de satisfazer uma população calejada e municiada pelos ditos discursos nos meios de comunicação de massa donde extrai-se a sensação de impunidade e, portanto, a condenação deve ser necessária, não importando a condução processual e direitos e garantias expressos na nossa Carta Magna.

Diminui-se esta impressão de impunidade pelo disfarce populista de condenações inoficiosas quando a base de mudança não passa pela colocação de alguém atrás das grades, mas sim de uma mudança legislativa apta a permitir tal condenação sem ofender os ditos limites e garantias fundamentais expressos na Carta Fundamental de Direitos de uma República Democrática.

Há convergência de todos os lados entre juristas que processos penais com envolvimento de políticos em desvios de dinheiro, improbidades administrativas, fraudes ou, em síntese, crimes tipicamente de ordem econômica ou tributária, são processos que muitas vezes beneficiam o praticante do ato lesivo. Isto porque este, amparado pela legislação em vigor, utiliza-se de recursos e mais recursos impondo uma morosidade (própria) objetivando a postergação do julgamento do delito cometido para a ocorrência da prescrição e assim ver-se livre de uma possível condenação; considerando ainda que tais crimes possuem penas relativamente baixas, portanto, comportando menores períodos para a ocorrência desta forma de extinção da punibilidade[21]. Todavia, este não é o único problema. Assim, leciona Aguiar:

O noticiário expôs, ao mesmo tempo, as várias questões que ficam sempre sem resposta. Em geral, as investigações sobre este tema, o dos crimes de colarinho branco, encontram grandes barreiras, em qualquer parte, não apenas pela sua incidência nula sobre as estatísticas ou sobre qualquer outra fonte de informações, mas porque as organizações políticas não consideram esta como uma área prioritária, por razões... óbvias. As implicações políticas típicas deste tipo de investigação impedem a colaboração das autoridades e tampouco os empresários delinquentes estão dispostos a colaborar. Talvez uma investigação sobre o contexto socioeconômico-político no qual uma conduta se torna criminalizada, possa explicar a grande debilidade da sanção penal para as infrações de negócios que tem, como contrapartida, a desproteção do cidadão comum e, em consequência, sua insegurança diante dos poderes econômicos e sociais. A impossibilidade de o Estado oferecer tutela jurídica à maioria da população é atribuída à politização dos sistemas de justiça e à predominância dos interesses grupais no Brasil, com um sistema punitivo que só se interessa pelos atos ilícitos perpetrados pelos politicamente selecionados, os desprotegidos, enquanto deixa de castigar certas condutas, ainda que elas estejam criminalizadas em códigos e leis penais especiais.[22] 

Ocorre que o foco da atenção não deve ser voltado ao réu, uma vez que este encontra-se amparado pela legislação vigente. Explico, não podemos ultrapassar ou até mesmo relativizar direitos e garantias fundamentais expressos na nossa Carta Maior a fim de impor uma condenação a quem quer que seja. A lei é uma só e deve ser aplicada a todos sem distinção[23]. Este, inclusive, é o símbolo da Justiça firmado através de Têmis, Deusa da Justiça na Mitologia Grega[24]. Mudanças e avanços legislativos são necessários e devem estar cada vez mais em evidência, onde justamente deveria estar o foco do problema. Discorre Giacomolli: 

As regras processuais, estabelecidas na Constituição Federal, são protetivas do cidadão, acusado ou não, culpado ou inocente, apenado ou não. São regras pré-existentes à investigação e ao processo penal. Ademais, esse sistema de proteção e garantia, no âmbito criminal, serve de barreira e de limite à intervenção estatal e não para incrementá-la. É certo que a Constituição abarca outros direitos, inclusive sociais, mas na área criminal, os princípios e os direitos são protetivos do status libertatis, exigindo, essencialmente, por pelo Estado, prestações negativas, enquanto que os direitos sociais, essencialmente, exigem prestações positivas. Portanto, a estrita legalidade (possui vínculos substanciais de tutela) limita poderes e “garante expectativas”; “garante liberdades.” Não há Estado de bem-estar social sem proteção das liberdades individuais e não há proteção da cidadania, da sociedade, sem proteção dos indivíduos, na medida em que esses integram a sociedade. A eleição política de proteção unidirecional é parcial e apartada da circularidade do pensamento complexo. Essa é gerada por indivíduos e existe em face destes, no plano individual e coletivo. Na tipologia criminal, vige, como núcleo essencial não amoldável e não removível, o princípio da estrita legalidade e, no processo penal, um topos hermenêutico protetivo das liberdades e não ampliativo da incidência da potestade punitiva ou do poder acusatório. Os direitos sociais exigem, essencialmente, prestações positivas, ampliação e extensão, mas os direitos protetivos da liberdade, além de ações afirmativas, protetivas, exigem importantes abstenções. Isso para vedar a violação dos direitos e das garantias constitucionais.[25]

O combate à corrupção evidentemente deve existir e é necessário. Assim, devemos lembrar que se há um corrupto, há também um corruptor. Ou seja, há empresários e instituições privadas que visam negociar com entes públicos para a obtenção de negócios lucrativos, seja em planos de obras públicas ou em privatizações de máquinas estatais. O estímulo para esta prática nefasta está ligado à diversos fatores como a falta de transparência nos tratos dos bens públicos, à fragilidade das instituições democráticas, como o próprio Judiciário, e na ausência de mecanismos de fiscalização populares destes órgãos. Assim, parece claro que este combate deve existir com o fortalecimento de soluções práticas que visam o oferecimento destes ditos mecanismos de fiscalização a instituições como o Ministério Público e a Polícia Federal para que se busque e investigue a origem do “quebra-cabeça”, mas não flexibilizando regramentos constitucionais.

Como dito, apesar de estes crimes do colarinho branco serem os processos mais evidentes nos noticiários, por detrás destes existem milhares de outros com o “senso comum” da população, por assim dizer, buscando sua própria justiça. Conforme exposto, o problema reside exatamente aqui. Não podemos fechar os olhos para os abusos cometidos em processos midiáticos, pois os mesmos abusos ocorridos no alto escalão, ocorrerão em outras esferas também. O abuso é sistêmico quando não combatido na essência. A justiça deve ser para todos e não para satisfazer um senso de justiça de uma população combalida e inflacionada midiaticamente no dia a dia.

Poderíamos classificar esse senso de justiça como o punitivismo. Os dados verificados da população carcerária brasileira atualmente são alarmantes. Um sistema que visa (teoricamente[26]) ressocializar um praticante de um ilícito penal, acaba por torná-lo ainda mais sedento por vingança pelo tratamento desumano praticado pelo Estado, considerando para tanto a taxa de reincidência de 24,4%[27] num prazo de cinco anos (dados de 2015 em pesquisa realizada pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Como consequência temos um sistema prisional caótico. Os dados apresentados pelo Conselho Nacional do Ministério Público[28] expõe que o sistema carcerário atual brasileiro comportaria cerca de 410 mil detentos, todavia, atualmente encontram-se encarcerados mais de 679 mil, constando ainda outros 143 mil mandados de prisão em aberto[29]. Ou seja, a proporção de vagas e detentos ultrapassa 165%. Reflexos de uma segurança pública? Evidentemente não. Considerando ainda que 40% dos detentos permanecem presos provisoriamente, ou seja, mais de 200 mil encarcerados seguem aguardando uma sentença para o seu processo. O problema passa longe da punição. Com estes alarmantes números, o Brasil tem a “honraria” em ostentar a terceira colocação no ranking de encarceramento, atrás apenas dos EUA, com praticamente 50% a mais de habitantes quando comparados com a população brasileira e a China e seus mais de um bilhão de cidadãos[30].

Conforme explicitado, o Judiciário é lento e carece de melhorias. No último ano, somente o Supremo Tribunal Federal julgou mais de 120 mil processos[31], reduzindo seu numeroso acervo. Ou seja, a média de julgamento de cada um dos seus onze ministros ultrapassa dez mil processos anuais, e chega a quase mil julgamentos em um mês. Em verdade, quem julga muito de fato não julga nada.

Em recente pesquisa divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), verificamos que estados como Rio Grande do Sul e São Paulo levam em média sete anos para o julgamento de um processo criminal[32]. A morosidade é evidente.

Atualmente o país tem 80 milhões de processos pendentes de julgamento, todavia, com a informatização do sistema judiciário, a celeridade para a resolução dos conflitos cresce. Em 2016, foram julgados quase 31 milhões de processos ao mesmo tempo que ingressaram no âmbito judiciário praticamente o mesmo número de demandas. Ainda que o processo seja lento, verifica-se uma crescente em virtude de medidas adotadas[33].

Ademais, ainda que a legislação avance lentamente visando a celeridade processual com métodos diversos para a solução de conflitos, muitas comarcas brasileiras carecem de espaço para tanto, além de servidores despreparados a lidar com essas situações.

Assim, temos que os debates governistas, oriundos de uma população inflamada por líderes políticos – na maioria com seus ideais populistas –, converge na busca de melhores caminhos e visões para um país de mais de duzentos milhões de habitantes e que ainda carece de uma boa governabilidade, porém, há de se atentar às reais causas para que se busquem resultados realmente satisfativos e não ilusões momentâneas.

Concluo meu apontamento assinalando que estamos próximos de uma eleição exercida pelo voto popular, fruto de anos de combate em busca de democracia a fim de podermos ter esta opção realizada pela própria população a fim de dirimir os rumos do nosso país. Todos sabemos que a mudança de um sistema é necessária, o questionamento que me refiro é: quem está disposto a mudá-lo de forma efetiva e coerente e não mascarando os reais efeitos ensejadores dos problemas atuais?

 

Notas e Referências

[1] FGV – Relatório ICJBrasil 1º Semestre/2017:. Disponível em: <  https://direitosp.fgv.br/sites/ direitosp.fgv.br/files/arquivos/relatorio_icj_1sem2017.pdf >. Acesso em: 16 set. 2018.

[2] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2011. p. 3.

[3] Art. 5º, II. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.

[4] ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral. / Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald. – 9ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. págs. 34-35.

[5] LOBO, Abelardo Saraiva da Cunha. Curso de Direito Romano: história, sujeito e objeto do direito : instituições jurídicas – Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2006. p. 579.

[6] “Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” BRASIL. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942.

[7] “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.

[8] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional – 38. ed., rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2012. p. 94.

[9] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo; tradução de Marco Aurélio Nogueira. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. págs. 17-18.

[10] BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.

[11] MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de, 1689-1755. O espírito das leis : apresentação Renato Janine; tradução Cristina Murachco. – São Paulo: Martins Fontes, 1996. – (Paidéia). p. 168.

[12] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 9 ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2014. págs. 901-902.

[13] MARTINS, Flávio. Curso de direito constitucional – 1 ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 1325.

[14] CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/gestao-e-planejamento /gestao-e-planejamento-do-judiciario/indicadores/486-gestao-planejamento-e-pesquisa/indicadores/ 13655-01-indice-de-confianca-no-poder-judiciario >. Acesso em 18 set. 2018.

[15] FGV – Relatório ICJBrasil 1º Semestre/2017:. Disponível em: <  https://direitosp.fgv.br/sites/ direitosp.fgv.br/files/arquivos/relatorio_icj_1sem2017.pdf >. Acesso em: 16 set. 2018.

[16] “As instituições que tiveram maior queda no seu grau de confiança foram: o Governo Federal, o Ministério Público e as Grandes Empresas. A confiança no Governo Federal caiu 23 pontos percentuais de 2014 a 2017, passando de 29% para 6%. O Ministério Público foi a segunda instituição mais afetada, uma vez que a confiança nesta instituição diminuiu 22 pontos percentuais: em 2014, a confiança era de 50%, em 2017, chegou a 28%. A confiança nas Grandes Empresas também sofreu uma queda de 14 pontos percentuais, passando de 43% para 29%.” FGV – Relatório ICJBrasil 1º Semestre/2017:. Disponível em: <  https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/relatorio_icj_1sem2017.pdf >. Acesso em: 16 set. 2018.

[17] FGV – Relatório ICJBrasil 1º Semestre/2017:. Disponível em: <  https://direitosp.fgv.br/sites/ direitosp.fgv.br/files/arquivos/relatorio_icj_1sem2017.pdf >. Acesso em: 16 set. 2018.

[18] FGV – Relatório ICJBrasil 1º Semestre/2017:. Disponível em: <  https://direitosp.fgv.br/sites/ direitosp.fgv.br/files/arquivos/relatorio_icj_1sem2017.pdf >. Acesso em: 16 set. 2018.

[19] CHAVES JUNIOR, Airto. Para que(m) serve o direito penal? : uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social / Airto Chaves Junior, Fabiano Oldoni. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 52.

[20] Fala do professor Juarez Tavares na palestra com o tema Democracia em Crise, auditório da OAB Florianópolis, em 01 set. 2018.

[21] “Art. 109.  A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se: I - em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze; II - em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze; III - em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e não excede a oito; IV - em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro; V - em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo superior, não excede a dois; VI - em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano.” BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

[22] AGUIAR, Maria Léa Monteiro de. Somos todos criminosos em potencial – Niterói: EdUFF, 2007. p. 21.

[23] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.

[24] “TÊMIS: É uma divindade grega por meio da qual a justiça é definida, no sentido moral, como o sentimento da verdade, da equidade e da humanidade, colocado acima das paixões humanas. Por este motivo, sendo personificada pela deusa Têmis, é  representada de olhos vendados e com uma balança na mão. Ela é a deusa da justiça, da lei e da ordem, protetora dos oprimidos. Na qualidade de deusa das leis eternas, era a segunda das esposas divinas de Zeus, e costumava sentar-se ao lado do seu trono para aconselhá-lo.” Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <  http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=biblioteca ConsultaProdutoBibliotecaSimboloJustica&pagina=temis > Acesso em: 18 set. 2018.

[25] GIACOMOLLI, Nereu José. Exigências e perspectivas do processo penal na contemporaneidade. In Criminologias e sistemas jurídico-penais contemporâneos II [recurso eletrônico] / Ruth Maria Chittó Gauer (Org.); Aury Lopes Jr. ... [et al.]. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. págs. 286-287.

[26] “Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984.

[27] IPEA – Reincidência Criminal no Brasil. Disponível em: < http://www.ipea.gov.br/agencia/images/ stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_criminal.pdf > Acesso em: 20 set. 2018.

[28] Conselho Nacional do Ministério Público. Sistema Prisional em números. Disponível em: < http://www.cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/sistema-prisional-em-numeros >. Acesso em: 20 set. 2018.

[29] O GLOBO. CNJ revela que país tem 143 mil mandados de prisão em aberto. Disponível em: < https://oglobo.globo.com/brasil/cnj-revela-que-pais-tem-143-mil-mandados-de-prisao-em-aberto-22816955 >. Acesso em: 20 set. 2018.

[30] EBC – Agência Brasil. Com 726 mil presos, Brasil tem terceira maior população carcerária do mundo. < http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para-726712-pessoas >. Acesso em 20 set. 2018.

[31] STF – Supremo Tribunal Federal. STF julga mais de 120 mil processos em 2017 e reduz acervo. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=365261 >. Acesso em: 20 set. 2018.

[32] Justificando. Em média 7 anos: SP e RS levam o dobro de tempo para julgar uma ação na Justiça Criminal. Disponível em: < http://justificando.cartacapital.com.br/2018/09/05/em-media-7-anos-sp-e-rs-levam-o-dobro-de-tempo-para-julgar-uma-acao-na-justica-criminal/ >. Acesso em: 09 set de 2018.

[33] CNJ – Estatísticas mostram evolução do combate à morosidade na Justiça. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/85361-estatisticas-mostram-evolucao-do-combate-a-morosidade-na-justica >. Acesso em: 20 set. 2018.

 

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