As Masmorras Tupiniquins!

04/10/2015

Por Renato Sigisfried Sigismund Schindler Filho - 04/10/2015

Rául Zaffaroni sempre se pergunta como a tradução de Lombroso pode florescer tão intensamente na Bahia africana de Nina Rodrigues.

BATISTA, 2015, p.47

Há quem diga que a escravidão acabou. É, escravidão mesmo que quero dizer, aquele velho mecanismo de espoliação de corpos e mentes tão utilizado durante a história do povo tupiniquim.

Aflição de mentes, pensamentos perdidos em meio ao desespero, ou melhor, pensamentos não nascidos, abortados em um sistema sufocante de repressão que não permite a reflexão.

Onde está o sopro do pensamento livre que normalmente nasce do não fazer, do acalmar a alma?

O ócio pode transformar-se em violência, neurose, vício e preguiça, mas pode também elevar-se para a arte, a criatividade e a liberdade. (MASSI, 2000)

Mas de fato não precisa pensar, ou melhor, não deve pensar, trabalhador deve produzir! E em um piscar de olhos o antigo ócio grego é esquecido, reprimido, ou convenientemente reservado aos donos do poder.

Já nos ensinaram:

(...) a acumulação de capital que impulsionará o mercantilismo, a manufatura e, logo, a Revolução Industrial forjará uma sociedade de classes através da luta para o disciplinamento de contingentes de mão de obra para o trabalho.

Para conter as massas empobrecidas, sem trabalho e jogadas à própria sorte, o neoliberalismo precisa de estratégias globais de criminalização e de políticas cada vez mais duras de controle social: mais tortura, menos garantias, penas mais longas, emparedamento em vida... (BATISTA, 2015, p.28)

Entretanto não estamos aqui para falar de disputas de classes, pelo menos não de forma direta, já que se trata de um tema subjacente à história do sistema punitivo, mas sim de nossas masmorras, ou melhor, se elas devem ou não conformar, conscientemente, nossas teorias.

Digo conscientemente, pois o inconsciente já conforma nossa visão de mundo, influenciando na interpretação do “ser” e do “dever ser”.

O Direito não é algo suscetível de sensação, mas sim, é significação que o homem empresta em seu agir e interagir, por conseguinte, enquanto sentido e significado, linguagem. Linguagem essa que objetiva definir o que é lícito ou ilícito. O Direito só existe, destarte, como linguagem (PASSOS, 2005, p.1).

O direito é um conceito, e como tal remete a outros conceitos, sendo auferível, portanto, através de associação. Sendo assim, o mais prestigiado conceito de direito é apenas um entre vários, de sorte que representa uma análise, um ponto de vista, baseado em vários outros, mais ou menos exatos, como expressão da linguagem (QUEIROZ, 2012, p. 35).

A interpretação, portanto, não pode ser considerada como ato de desvelamento de uma verdade essencial, como ato de descrição de um significado previamente dado, mas sim como ato de constituição do sentido, de construção (ÁVILA, 2014, p.51).

Pois bem: como vamos preencher os conceitos penais e processuais penais?

No processo de escolha das teorias, e não só de escolhas, de criação/modificação dessas, devemos levar em consideração aspectos de nossa realidade, ou a análise deve ser meramente abstrata?

É que sistemas abstratos, para proteger a segurança jurídica, pecam na conexão dos institutos com a realidade. Como será dito a seguir, a adoção de medidas abstratas pode ser aprioristicamente adequada na medida em que são analisadas em um patamar irreal, mas podem se tornar inócuas quando cotejadas com aspectos criminológicos.

Grande parte dos acadêmicos politicamente engajados está envolvida no empreendimento inadiável que é o desenvolvimento de um pensamento decolonial, ou seja, o repensamento do discurso para que tenhamos uma estrutura de pensamento voltada para a particularidade da nossa realidade marginal, como diria Zaffaroni. A distância que separa nossos jardins devastados dos jardins floridos da Europa é incomensurável: afinal, nós convivemos diariamente como um sistema penal predador de direitos humanos. Eles não conhecem nada remotamente semelhante a isso.  (KHALED JR., 2015)

Em um suspiro nos deparamos com um alvoroço de teorias sofisticadas, de tecnologias sensacionais que prometem acabar com a criminalidade, e que, em mais um suspiro, viralizam-se no pensamento coletivo como soluções definitivas.

São tão sofisticadas que nem são nossas!  Pensam os tupiniquins. A grande verdade, se é que existe alguma verdade nesse mundo de incertezas, é que não damos tanta importância ao que é nosso, nossas teorias, nossos problemas.

Ou tentamos resolver nossos problemas com soluções alheias, sem ao menos adequá-las a nossa realidade. Uma catástrofe que atinge comumente aos marginalizados.

Por que interiorizamos tão profundamente uma ideologia tão destruidora de nossos povos, de nossa cultura? Como nos deixamos aprisionar tão intensamente por um quadro teórico que nos conduziu a nos constituirmos em território degredo, campos de concentração, zonas de truculência e extermínio sem limite? (BATISTA, 2015, p.46)

As vezes nem parece que somos copatriotas de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e  Rômulo de Andrade Moreira, já que precisamos viajar quilômetros para estudar em universidades com nomes impronunciáveis só para apreender que tudo se pondera, que a higidez de uma garantia tem que ser ponderada com o interesse público, colocando na mesma balança interesses de nível concreto e abstrato. Pasmem!

(...) não é possível ponderar, de um lado, o interesse abstrato à segurança pública ou o “interesse de coletividade”, e, de outro, o interesse concreto relativo à liberdade de um indivíduo, isso porque, como demonstrou Ronald Dworkin, em sua obra Levando os direitos a sério (e o nome dessa obra é bem significativo para a atual quadra histórica), não é legítimo o sopesamento de interesses de densidade distinta, sob pena de se tornar possível a violação de qualquer interesse individual mediante a desculpa retórica de se estar protegendo “o interesse público”, a “segurança de todos” ou mesmo “combatendo a corrupção”. Aliás, essa ponderação entre interesses de densidades distintas era normal na Alemanha nazista (...) (CASARA, 2015)

E não é só; nossa produção legislativa parece ser ditada por uma pauta midiática que alimenta o recrudescimento do sistema, como se brandos nós fôssemos. Paradoxalmente tentamos ou tomamos medidas encarceradoras, vide pauta do Congresso Nacional, mesmo com um sistema carcerário superlotado.

As teorias alienígenas que pinçamos são justamente aquelas que alimentam um regime segregador, ou se não alimentam, damos um jeito de abrasileirar, com o desiderato  único e exclusivo de escravizar nossos pares. Inventamos até nomes novos, difíceis. Vai entender!

Nada contra a importação, desde que nos liberte.

Os decretos de prisão preventiva devem levar em consideração nossas masmorras, como pretendido, dentre outros desideratos, na ADPF 347? Os conceitos da teoria do delito devem ser interpretados, leia-se fixação do sentido, levando em consideração elementos criminológicos? Para os processualistas: e o conceito de jurisdição penal? É Direito? Poder? Dever? Contra-poder?

(...) o Direito não pode se afastar da realidade que pretende normatizar, o objeto da técnica jurídica compreende, ao mesmo tempo, elementos de ordem fática e normativa. (DUCLERC, 2015, p. 12)

Quando pensamos no cabimento do Habeas Corpus devemos menosprezar o fato do Judiciário brasileiro ser extremamente reacionário? Que prefere aplicar um Código fascista no lugar de uma Carta Política cidadã?

Talvez devêssemos ser mais agnósticos, no sentido de descrer encegueradamente no sistema e reconhecer nossos paradoxos, como o faz o professor Elmir Duclerc (2015) ao tratar do processo penal:

Uma teoria agnóstica do processo penal, portanto, é aquela que não pretende ignorar ou ocultar ideologicamente este paradoxo, mas, antes, precisa reconhecê-lo na sua irracionalidade, procurando dar-lhe um tratamento minimamente racional, conforme uma lógica de redução de danos. (DUCLERC, 2015, p. 12)

O ponto fraco dos sistemas abstratos não está, tão somente, no fato de se encontrarem em posição defensiva contra a política criminal, mas, em maior grau, no desprezo das peculiaridades do caso concreto, onde, em muitos casos, a segurança jurídica é salva às custas da justiça (ROXIN, 2000, p.85).

Entender a teoria do delito, sem conectá-la com os aspectos da política criminal, faria surgir “uma dupla medida, que faz com que possa ser dogmaticamente correto o que é político-criminalmente errado, e vice-versa” (2000, p.17).

O direito penal é muito mais a forma, através da qual as finalidades político-criminais podem ser transferidas para o modo de vigência jurídica. Se a teoria do delito for construída neste sentido, teleologicamente, cairão por terra todas as críticas que se dirigem contra a dogmática abstrata-conceitual, herdada dos tempos positivistas. (ROXIN, 2000, p.82)

Creio que nossas teorias deveriam ser mais negras, mais indígenas, mais pés rachados e descalços!


Notas e Referências:

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2014;

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Renavan, 2015;

CASARA, Rubens Roberto Ribeiro Casara. Relativização da Presunção de Inocência: sintoma de uma cultura autoritária. 2015. Disponível em: < http://justificando.com/2015/09/26/relativizacao-da-presuncao-de-inocencia-sintoma-de-uma-cultura-autoritaria/ >. Acesso em 25 set 2015;

DUCLERC, Elmir. Por uma Teoria do Processo Penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

KHALED, Salah H.. Garantismo à La Carte: integral, desnatado, ou semi-desnatado?. 2015. Disponível em: < http://justificando.com/2015/09/26/garantismo-a-la-carte-integral-desnatado-ou-semi-desnatado/> Acesso em 01 out 2015.

QUEIROZ, Paulo. Curso de direito penal: parte geral. 8.ed. Salvador: Juspodivm, 2012;

MASI, Comenico. O ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextante. 2000;

PASSOS, Jose Joaquim Calmon de Passos. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005;

ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.


*Assessoria Linguística: Fernanda Quaranta Lobão Bairral.


Renato Sigisfried Sigismund Schindler Filho

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Renato Sigisfried Sigismund Schindler Filho é Advogado Criminal. Pós-Graduado em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de Direito). Pós-Graduado em Direito e Magistratura (Universidade Federal da Bahia em convênio com a Escola de Magistrados da Bahia). Membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal.

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Imagem Ilustrativa do Post: Man of concern // Foto de: Lisa Brewster // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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