As educadoras e educadores sociais e os direitos das crianças e dos adolescentes: por uma “pluriversidade” nas ruas

06/09/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Uma homenagem à Paulo freire

A historiadora Arlete Farge, no seu livro “O sabor do Arquivo”, afirma-nos que quando o historiador ou a historiadora encontra documentos relevantes para seus trabalhos de pesquisa, sentem-se descobrindo um “maná que se oferece, justificando plenamente o nome de fonte” (Farge, 2009, p. 15) Assim foi meu sentimento quando encontrei a documentação produzida pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Considero, inclusive, que foi uma das alegrias proporcionadas pelo meu estágio pós-doutoral, realizado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Para além dos problemas relacionados ao cotidiano de meninos e meninas em situação de rua, essa documentação sensível narra a história dos chamados educadores e educadoras de rua. Nos anos de 1980, período marcado pela redemocratização política no Brasil, essas mulheres e homens desafiaram a lógica punitivista do Código de Menores - dispositivo legal que vigorava antes do Estatuto da Criança e do Adolescente -, contribuindo com novas formas de pensar e agir na prática educativa com e para as garotas e garotos que vivenciaram (e ainda vivenciam) as mais diferentes formas de abandonos e de vulnerabilidades.

Foi através da atuação do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua que as políticas higienistas e coercitivas passaram a ser questionadas e até o próprio Código de Menores. A emergência do Movimento se apresenta como um marco histórico para a luta dos direitos humanos de meninos e meninas. Foi nas ruas das cidades brasileiras e latino-americanas que “o grito” por justiça social e dignidade humana aconteceu, impactando diretamente com a forma de pensar a Justiça da Infância e da Juventude. (Miranda, 2021)

Ao me debruçar sobre essas fontes documentais, encontrei a publicação Paulo Freire e Educadores de Rua: uma abordagem crítica, uma iniciativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef e da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – Funabem. Neste livro, encontra-se uma análise do encontro de Freire com as/os educadoras/es, realizado em São Paulo, no ano de 1985. No texto, registra-se uma reflexão sobre a atuação prática do trabalho do “educador de rua” e os desafios do trabalho com as crianças e os adolescentes, diante das mais diferentes injustiças sociais e formas de opressão cotidiana, por elas e eles vivenciadas.

Destaca-se que uma das questões mais ressaltadas por Paulo Freire foi a possibilidade das educadoras e educadores carregarem o compromisso de se colocar como educandos e educandas, exercitando o movimento de aprender e ensinar mutuamente. Este processo do educador-educando, da educadora-educanda era fundamental para buscar compreender todo o processo de “pensar a prática”, romper com os autoritarismos e cultivar uma prática democrática, uma vez que, para além de pedagógica, toda prática era política e ideológica (Freire, 1985).

Freire afirmava que, para os educadores e educadoras, o exercício de “pensar a prática” seria fundamental para transformar as diferentes injustiças sociais vividas pelos meninos e meninas e que para isto a análise científica era fundamental para evitarmos “visões provisórias e ingênuas”, inclusive, para entender “o próprio fenômeno dos meninos de rua” (Freire, 1989, p. 13).

Este documento foi fundamental no meu trabalho de pesquisa, por permitir analisar como foi construído o próprio Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e como foi elaborado o pensamento de Freire sobre educação popular para além da chamada educação regular ou escolar. Esta fonte permitiu produzir análises sobre a história dos meninos e meninas em situação de rua também coloca em tela como as educadoras e educares narraram os processos educativos nas ruas, praças, calçadas e tantos outros lugares onde a proteção e a defesa dos direitos da criança e do adolescente não se faziam presentes.

Importante ressaltar que este documento precisa ser datado historicamente. Daí a relevância de percebermos o movimento da história, nas suas mudanças e nas permanências. Destaca-se a atualidade do diálogo de Freire com as educadoras e educadores no enfrentamento às injustiças sociais e as violações de direitos humanos e até no debate sobre o fortalecimento das mobilizações coletivas em defesa dos educadores e educadoras sociais. Depois de décadas da sua publicação, é fundamental recapitularmos o que Paulo Freire nos chama atenção: “os saberes dos educadores de rua precisam ser aprofundados pelos próprios educadores” (Freire, 1985, p. 17).

A leitura do texto produzido por Freire também suscitou o debate sobre a atuação dos educadores e educadoras atualmente, que vem sendo marcado pelo enfrentamento das mais diferentes violações de direitos humanos vividos neste cenário marcado pela necropolítica, produzindo resistências a este poder que dita “quem pode viver e quem deve morrer” (Mbembe, 2018). Neste momento que vivemos, caracterizado pelo avanço da onda conservadora, de perseguição aos movimentos sociais, de negação da ciência e perseguição as universidades e pela negação das ideias do próprio Paulo Freire, é de fundamental importância o diálogo respeitoso entre as educadoras e os educares sociais com as pesquisadoras e pesquisadores que atuam nas universidades.

Para enfrentar a “política da morte”, o encontro com os diferentes saberes e fazeres pode provocar a construção de “políticas de vida”. Para Boaventura, os ambientes nas universidades conspiram para sufocar programas que dialogam com os movimentos sociais, legitimando “o modelo tradicional de universidade e de produção científica”. Daí a importância da universidade se encontra com as ruas e suas complexidades, para que assim possa se transformar numa pluriversidade, como nos fala Boaventura de Sousa Santos. (Boaventura, 2015)

O tempo nebuloso que vivemos exige-nos dialogicidade, uma vez que só por meio do diálogo os diferentes mundos podem se encontrar. A presença das educadoras e educadores sociais nos espaços acadêmicos é fundamental até para pensamos outra universidade. Ao abrir caminhos para pensarmos políticas públicas que concebessem as crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e de cidadania, inclusive, fazendo-nos pensar na possibilidade da participação ativa de meninos e meninas na política.

Os documentos que registram a atuação do Movimento se apresentam como fonte para a História das crianças e dos adolescentes e das mobilizações em torno da educação social e esta História precisa ser narrada e disseminada. O processo de pesquisa e as vivencias extensionistas me fazem acreditar ainda mais no trabalho das educadoras e educadores sociais e na possibilidade de abrimos caminhos para atuação na graduação, na pós-graduação, na extensão... dentro e fora das universidades...

Ler Paulo Freire me fez lembrar das educaras Helena e Dudui.... dos educares Adriano, Silvino e Tonho.... educadores e educadoras que atuam em Pernambuco (minha terra e de Paulo Freire) e tantas outras e outros que contribuíram, de forma potente, com a produção do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nós que fazemos as universidades e produzimos o chamado saber científico, precisamos nos encontrar com as ruas, praças, calçadas uma forma de produzirmos a “pluriversidade” que sonhamos e que, assim como Paulo Freire, acreditar que “só na luta se espera com esperança”.

 

Notas e Referências 

DIETZ, Gunther  & GUILHERME, Manuela. Da universidade à pluriversidade: Reflexões sobre o presente e o futuro do ensino superior: entrevista com Boaventura de Sousa Santos. Revista Lusófona de Educação, 2015. 31, 201-212

FARGE, Arlete. O sabor do arquivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Ediçoes, 2018.

MIRANDA, Humberto da Silva. Entre chegadas e partidas:: do Projeto Alternativas ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (Brasil, década de 1980). Revista Brasileira De História &Ciências Sociais, 13(25), 2021, 200–222.

UNICEF, Fundo das Nações Unidas para Infância. Paulo Freire e os educadores de rua: uma abordagem crítica. Bogotá: Unicef, 1989.

 

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