As Diretrizes antecipadas de vontade (testamento vital) - Por Juliano Ralo Monteiro e Camila Bertoni Carneiro dos Santos

10/11/2017

Como forma de preservação da autodeterminação dos cuidados de saúde existe a possibilidade de o paciente, prevendo situações futuras em que não poderá exprimir conscientemente sua vontade, deixar antecipadamente consignado quais procedimentos médicos deseja ou não sejam tomados.

Trata-se do chamado “desejo prévio” ou “testamento biológico”, que também recebe os nomes de “voluntad vital antecipada” no direito espanhol, de “living will” no direito norte-americano, de  “testament de vie” no direito francês  ou “diretrizes antecipadas de vontade” no direito português e brasileiro[1].

Enquanto em Portugal uma ampla regulamentação foi estabelecida no plano normativo, havendo notícia de que mais de dezessete mil portugueses já concluíram seu testamento vital[2], no Brasil as diretrizes antecipadas encontram-se aprovadas pelo Conselho Federal de Medicina por meio da Resolução 1.995 de 31 de agosto de 2012[3].

Testamento vital[4] é conceituado por Roxana Cardoso Brasileiro Borges como “um documento em que a pessoa determina, de forma escrita, que tipo de tratamento ou não tratamento deseja para a ocasião em que se encontrar doente, em estado incurável ou terminal, e incapaz de manifestar sua vontade”[5].

Verifica-se por meio da elaboração de uma diretriz antecipada, sob a forma de um testamento vital, que o paciente terá a possibilidade de prorrogar sua autonomia para o futuro, quando não mais tiver condições de exprimir sua vontade, preservando o respeito à sua vontade e dignidade, ao invés de na fase final de sua vida morrer sozinho e sem voz[6].

Vale registrar que o testamento vital normalmente será utilizado para aqueles que não desejam deixar um procurador para cuidados de saúde. Nada impede, entretanto, que o paciente além de deixar constituído um procurador para os cuidados de sua saúde, também estabeleça as diretrizes antecipadas. Para essas hipóteses o Conselho Federal de Medicina determina que em eventual conflito entre o determinado pelo procurador e o testamento vital, prevalecerá este último. Da mesma forma, o testamento vital prevalecerá sobre os desejos da família (Resolução CFM nº 1.995/12, art. 2º, § 3º).

Ainda de acordo com a Resolução, uma vez estabelecido o testamento vital ou mesmo um procurador para cuidados da saúde, o médico se torna obrigado a acatar o seu teor, salvo se verificar que o documento contraria o Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.995/12, art. 2º, § 2º).

Em acréscimo, o testamento vital pode ser livremente revogado ou modificado. No entanto, não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente (Resolução CFM nº 1.995/12, art. 2º, § 5º).

A Resolução 1.995/12 já é um primeiro avanço ao tema, mas ainda é muito pouco, sobretudo, se comparando ao sistema português, a começar com o que diz respeito à forma da diretriz antecipada.

No Brasil, a Resolução CFM nº 1.995/12 determina que competirá ao médico registrar no prontuário do paciente as diretivas antecipadas de vontade que lhe foram diretamente comunicadas pelo paciente (Resolução CFM nº 1.995/12, art. 2º, § 4º).

Pensa-se ser esse o maior equívoco de referida Resolução, uma vez que a segurança jurídica de um instituto de grande importância ficará esvaziada. Alguns questionamentos podem ser feitos de modo a demonstrar a fragilidade desse sistema criado: uma simples anotação em um prontuário médico garantirá ser fidedigna referida declaração de vontade? Quando várias pessoas têm acesso ao prontuário do paciente, em total desrespeito ao sigilo do prontuário, como garantir que terceiros não apaguem ou insiram dados nessa diretriz? Na medida em que não há um sistema de unificação e cada paciente tem um prontuário em cada clínica ou hospital, como garantir a efetividade dessa diretriz antecipada?  O que garantirá que o paciente mudou de ideia em relação à registrada no prontuário?

Reconhece-se o esforço do Conselho Federal de Medicina em trazer à discussão um tema de extrema importância, disciplinando o assunto dentro de sua competência. No entanto, a ausência total de normas regulamentando um assunto de tamanha utilidade pública ainda se encontra envolto a incertezas. Esse é um tema delicado e que merece maiores atenções dos legisladores nacionais como resposta jurídica aos avanços proporcionados pela medicina e ciência.

Mais do que nunca o ser humano mostra-se capaz de controlar a vida e a morte. Por isso é preciso questionar se esse vácuo legislativo não está a retirar dos cidadãos direitos provenientes dessa nova realidade médica.

A análise da Lei portuguesa nº 25/2012 demonstra o amadurecimento daquele país para o tema, pois foram capazes de criar um sistema que melhor resguarda a verdadeira autodeterminação dos cidadãos para os cuidados de saúde.

De início, interessante mencionar que em Portugal a Lei nº 25/2012 determinou uma profunda reformulação do sistema de Registros Públicos, criando o Registro Nacional do Testamento Vital (RENTEV) vinculado ao Ministério da Saúde e apto a recepcionar, registrar, organizar e manter atualizada, quanto aos cidadãos nacionais, estrangeiros e apátridas residentes em Portugal, a informação e documentação relativas ao documento de diretivas antecipadas de vontade e à procuração de cuidados de saúde (art. 15/1 da Lei nº 25/2012).

Mas os avanços vão além. Podem ser destacados como principias progressos da legislação portuguesa: (1) estabelece um rol não taxativo que diz respeito aos temas fundamentais que merecem ser pontuados nas diretrizes antecipadas[7]; (2) institui que as diretivas antecipadas de vontade serão formalizadas através de documento escrito, assinado presencialmente perante funcionário devidamente habilitado do Registro Nacional do Testamento Vital ou Notário (RENTEV), com a inserção de dados fundamentais que deverão constar no testamento vital[8]; (3) estabelece como capacidade para a outorga das diretrizes antecipadas que as pessoas, cumulativamente: a) sejam maiores de idade; b) não se encontrem interditas ou inabilitadas por anomalia física e psíquica; c) se encontrem capazes de dar o seu consentimento consciente, livre e esclarecido; (4) prevê como inexistentes as diretivas antecipadas que: a) sejam contrárias à lei, à ordem pública ou determinem uma atuação contrária às boas práticas; b) cujo cumprimento possa provocar deliberadamente a morte não natural e evitável, tal como prevista nos artigos 134.º e 135.º do Código Penal; c) o outorgante não tenha expressado, clara e inequivocamente, a sua vontade; (5) quanto à eficácia determina a lei que se constar do RENTEV um documento de diretivas antecipadas de vontade, ou se este for entregue à equipe responsável pela prestação de cuidados de saúde pelo outorgante ou pelo procurador de cuidados de saúde, esta deve respeitar o seu conteúdo, sem prejuízo do disposto na presente lei. Ademais, deixa claro que as diretivas antecipadas de vontade não devem ser respeitadas quando: a) Se comprove que o outorgante não desejaria mantê-las; b) Se verifique evidente desatualização da vontade do outorgante face ao progresso dos meios terapêuticos, entretanto verificado; c) Não correspondam às circunstâncias de fato que o outorgante previu no momento da sua assinatura; d) em casos de urgência. Ainda, a lei estabelece que o testamento vital terá um prazo de validade de cinco anos contados de sua assinatura, sucessivamente renovável, mantendo-se em vigor nos termos outrora consignadas no caso de recair a incapacidade do paciente; (6) o documento de diretivas antecipadas de vontade é revogável ou modificável, no todo ou em parte, em qualquer momento, pelo seu autor, desde que obedecida a forma de sua instituição; (7) por fim, mostra-se assegurado aos profissionais de saúde que prestam  cuidados de saúde ao outorgante o direito à objeção de consciência quando solicitados para o cumprimento do disposto no documento de diretivas antecipadas de vontade.

A análise do sistema português bem demonstra o quanto ainda há de se avançar sobre o tema em solo nacional.

 

[1] A origem do testamento vital ocorreu nos Estados Unidos da América no final da década de 60 e foi idealizado pelo advogado Luis Kutner, um influente ativista de direitos humanos e virou lei no país em 1990, como uma resposta a imensa batalha judicial criada no caso de Nancy Cruzan.  ORBON, Margaret J.: The 'Living Will' -An Individual's Exercise of His Rights of Privacy and Self-Determination. Loyola University of Chicago Law Journal. v. 7, no. 3, Summer 1976, p. 714. Mais recentemente, o caso de Terri Schiavo reacendeu a importância de se deixar estabelecido uma diretriz antecipada de vontade.

[2] Conforme noticiado pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde de Portugal e divulgado no Jornal Econômico em 25 de outubro de 2017. A popularização do testamento vital ocorreu após a criação de um aplicativo denominado MySNS Carteira, que permite ao cidadão acessar a “um conjunto de funcionalidades, desde receber notificações, consultar vacinas, alergias, seu testamento vital, a guia de tratamento” entre diversas outras funcionalidades. Disponível em: <https://www.google.com.br/search?q=17+mil+portugueses+já+realizaram+seu+testamento+vital&oq=17+mil+portugueses+já+realizaram+seu+testamento+vital&aqs=chrome..69i57.9851j0j4&sourceid=chrome&ie=UTF-8>. Acesso em 26 de outubro de 2017.

[3] A título de exemplo, vale conhecer o teor da Consulta nº 18.688/12 realizada perante o Conselho Regional de Medicina de São Paulo antes da aprovação da referida Resolução 1.995/12 em que o médico indagou seu Conselho Regional sobre “o que pode e deve um cidadão fazer, em termos documentais, de tal sorte que possa estar assegurado, na condição de paciente terminal, que não será objeto de tratamentos ou procedimentos paliativos, com o objetivo de prolongar inutilmente o que ainda de sobrevida lhe restaria?” Segue a ementa de resposta à consulta: “reconhecendo que o paciente tem direito a uma morte digna, escolhendo como e onde morrer, recusar ou solicitar certos tratamentos, medicamentos e intervenções, bem assim interrompê-los, é juridicamente possível dispor em documento visando assegurar a garantia constitucional de sua liberdade, inclusive de consciência. Mas não há no ordenamento jurídico pátrio nenhum modelo, fórmula ou previsão legal expressa dos contornos a orientá-lo, porém também não há em sentido contrário, impedindo sua confecção à míngua da previsão de traços que deverá observar. Mas fundamentalmente, mais do que um documento com apelo à formalidade, deverá ser o resultado de um processo envolvendo paciente, familiares, médicos assistentes, a fé religiosa, construído com a conscientização de todos acerca de nossa vontade e nossos desejos, com o respeito às individualidades, e amadurecido com a compreensão e aceitação de nossa finitude”.

[4] José de Oliveira Ascensão critica a expressão testamento vital. Para o autor, esse nome se encontra inapropriado porquê de nenhum testamento se trata, ao contrário: “o testamento só valeria para depois da morte, enquanto que esta vontade é expressa para operar ainda em vida, em situação de terminalidade ou quando uma manifestação de vontade não for efetivamente possível”. ASCENSÃO, José de Oliveira. A terminalidade da vida. Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 436.

[5] BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro.  Direito da Personalidade e autonomia privada. Coleção Agostinho Alvim. São Paulo: Saraiva. 2007, p. 241. Na resolução 1.995/12 do Conselho Federal de Medicina define como Diretiva Antecipada de vontade como “o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. Já a lei portuguesa 25/2012 amplia essa definição: “As diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, são o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente”.

[6] De acordo com Tom Beauchamp e James Childress os “living wills” e as procurações duráveis protegem os interesses de autonomia e podem reduzir o estresse das famílias e dos profissionais de saúde que teme tomar a decisão errada, mas também geram problemas práticos e morais. Em primeiro lugar, relativamente poucas pessoas redigem um documento ou deixam instruções explícitas. Não é provável que essa situação sobre uma alteração significativa com o aumento da conscientização do público e da educação dos pacientes. Em segundo lugar, um responsável designado pode não estar disponível quando necessário, pode ser ou estar incapaz de tomar boas decisões para o paciente ou pode ter um conflito de interesses (por exemplo, em virtude da perspectiva de uma herança) ou do ganho de uma posição melhor nos negócios da família). Em terceiro lugar, alguns pacientes que mudam suas preferências em busca de tratamento não chegam a modificar suas instruções, e alguns, ao se tornar legalmente incapazes, protestam contra as decisões do responsável designado. Em quarto lugar, as leis específicas dos estados muitas vezes são escritas para restringir o uso de diretrizes antecipadas. (...) Em quinto lugar, os living wills não proporcionam a base para que os profissionais de saúde desconsiderem instruções que não se mostram como sendo do melhor interesse do paciente, ainda que o paciente não pudesse ter previsto esta circunstância enquanto capaz. Os responsáveis legais também tomam decisões das quais os médicos discordam radicalmente e alguns casos pedem aos médicos que ajam contra suas consciências. Em sexto lugar, alguns pacientes não têm uma compreensão adequada do conjunto de decisões que um profissional de saúde ou um responsável podem ter de tomar, e, mesmo com essa compreensão, com frequência é difícil antever situações clínicas e possíveis experiências futuras” (BEAUCHAMP, Tom. L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Tradução de Luciana Pudenzi, São Paulo: Loyola, 2002, p. 270/271).

[7] Podem constar do documento de diretivas antecipadas de vontade as disposições que expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante, nomeadamente: a) Não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções vitais; b) Não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou desproporcionado no seu quadro clínico e de acordo com as boas práticas profissionais, nomeadamente no que concerne às medidas de suporte básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte; c) Receber os cuidados paliativos adequados ao respeito pelo seu direito a uma intervenção global no sofrimento determinado por doença grave ou irreversível, em fase avançada, incluindo uma terapêutica sintomática apropriada; d) Não ser submetido a tratamentos que se encontrem em fase experimental; e) Autorizar ou recusar a participação em programas de investigação científica ou ensaios clínicos (Lei 25/2012, art. 2º/2).

[8] De acordo com a lei, os dados essenciais a constar do documento são a) A identificação completa do outorgante; b) O lugar, a data e a hora da sua assinatura; c) As situações clínicas em que as diretivas antecipadas de vontade produzem efeitos; d) As opções e instruções relativas a cuidados de saúde que o outorgante deseja ou não receber, no caso de se encontrar em alguma das situações referidas na alínea anterior; e) As declarações de renovação, alteração ou revogação das diretivas antecipadas de vontade, caso existam. Pensa-se que, pela proximidade dos sistemas brasileiro e português, esses podem ser considerados, ao menos no plano doutrinário, como os elementos essenciais para o testamento vital em âmbito nacional.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Engaged Hands // Foto de: Kenneth Lu // Sem alterações

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