Introdução.
A convivialidade[1] é a capacidade de uma sociedade (con)viver harmoniosamente, com favorecimento ao respeito, à tolerância e as trocas reciprocas entre os Seres Humanos e os Seres Humanos e a Natureza.
A convivialidade foi teorizada para refletir os problemas decorrentes do processo de industrialização e do trabalho para a produção em massa, responsável pelo surgimento da sociedade do aparato - uma sociedade fria e sem alma. Uma análise histórica da sociedade, sem grande profundidade, é capaz de demonstrar a partir da revolução industrial o quanto a sociedade moderna, individualista e egoísta, é resultado de uma combinação de mão de obra escrava –primeiro a escravidão no trabalho e segundo a escravidão do consumo.
A escravidão no trabalho gera a mais-valia para os grandes empresários, ao passo que a escravidão do consumo estabelece o processo de alienação social; ambas situações estudadas por Karl Marx Marx, para quem o trabalho constituía a mais importante expressão da natureza humana e que quando o homem perdia o controle sobre o trabalho entrava em um processo que conduziria à sociedade a uma ordem social alienada, ou seja; uma sociedade de desigualdade crescente, de pobreza em meio a plenitude, de antagonismo social e de luta de classes.
A ausência da convivialidade nas relações sociais produz, subjetivamente, a falta de respeito e a intolerância entre os seres vivos e, materialmente, a quebra do pacto social.
As dimensões da convivialidade.
A convivialidade propõem o estabelecimento de uma relação harmoniosa que seja capaz de promover a convivência da dimensão da produção e da dimensão do cuidado (cuidado com a natureza e com os seres vivos). É preciso não confundir a convivialidade com a sustentabilidade ou com a mera convivência. Sobre sustentabilidade (de sustentável), sabe-se que é a característica de um processo ou de um sistema que permite a sua permanência por um certo tempo (período) sem que haja comprometimento do nível de qualidade. No meio ambiente, o conceito de sustentabilidade está atrelado ao uso dos recursos naturais de forma a não comprometer as próximas gerações ou, ainda, com a ideia de interação entre o Ser Humano e o meio ambiente (natural, construído, cultural e do trabalho). A convivialidade difere da sustentabilidade por conter em sua definição a compaixão para alcançar o equilíbrio entre a sociedade e a natureza. Portanto, não se trata de uma técnica ou de um modelo de relacionamento entre os meios de produção e entre o homem e a natureza, pois, em verdade, a convivialidade busca o sentido de mútuo pertencimento, quando todos os seres são compreendidos como membros detentores de igualdade de direitos e amados pela simples existência.
Igualmente, não se deve enlear convivialidade com convivência, uma vez que a convivência se limita aos relacionamentos sociais de cordialidade e respeito diário (dimensões importantes), sem, contudo, atuar para limitar o poder de dominação do Ser Humano sobre a Natureza. A convivialidade pretende estabelecer o pacto do cuidado com tudo que existe e vive, limitando a ação de intervenção nos ambientes através da justiça equitativa.
A convivialidade, em uma aproximação ambiental, é a resposta para a grave crise ecológica pela qual perpassa o planeta, oriunda do processo de exploração dos recursos naturais para alimentar ao crescimento industrial. A convivialidade, portanto, é uma resposta ao processo irresponsável de desgabo com o ambiente, cujo horizonte de assolação pode ser uma catástrofe de dimensões inimagináveis.
A convivialidade é uma oportunidade de conversão do Ser Humano e da Humanidade para os valores da preservação, do bem-estar e da cooperação através de um sistema de produção, diferente do capitalismo, que seja capaz de produzir a aplicar a tecnologia como uma ferramenta a favor de tudo que vive e existe no meio ambiente, atendendo as necessidades humanas sem gerar alienação ou mais-valia.
Leonardo Boff[2] explica que é possível estabelecer um projeto de convivialidade em meio ao caos da sociedade moderna. O teólogo sustenta a existência de quatro princípios ou eixos que transcendem a lógica dominante:
O princípio da comum humanidade: com todas as nossas diferenças, formamos uma única humanidade, a ser mantida unida.
O princípio da comum socialidade: o ser humano é social e vive em vários tipos de sociedades que devem ser respeitadas em suas diferenças.
O princípio de individuação: mesmo sendo social, cada um tem direito de afirmar sua individualidade e singularidade, sem prejudicar os outros.
O princípio da oposição ordenada e criadora: os diferentes podem se opor legitimamente, mas sempre tendo o cuidado de não fazer da diferença uma desigualdade.
Os princípios de comum humanidade, comum socialidade, individuação e oposição ordenada e criadora; além de representarem o (único) caminho para a crise ecológica do planeta, reflete a precípua necessidade de cuidar de GAIA[3], um organismo vivo, único e exclusivo, que acolhe e alimenta todos os Seres Humanos.
A convivialidade: da compaixão à misericórdia.
Dito acima, a convivialidade difere da sustentabilidade pela existência da compaixão, uma expressão do cuidado com o outro, exigindo que o Ser Humano deixe seu mundo particular e passe a viver o mundo do outro, compartilhando toda sorte das dores, das angustias e das alegrias – é a capacidade de compartilhar a paixão do outro e de estar com e no lugar do outro.
Para Leonardo Boff[4] a compaixão requer, primeiro, a renúncia de dominar e, no limite, de matar qualquer ser vivo, recusando a violência contra a natureza e, depois, procura construir a comunhão a partir dos que mais sofrem e mais são penalizados, pois, apenas estando e cuidando primeiro do últimos, dos marginalizados e da mãe natureza, poder-se-á alcançar uma sociedade integradora.
Para a cultura do judeo-cristianismo, explica BOFF (1999, p. 127), misericórdia significa ter entranhas e com elas sentir a realidade do outro, especialmente de quem sofre. A misericórdia, diferente da compaixão, significando consentir mais do que entender e mostrar capacidade de identificação e de compaixão com o outro.
Logo, desenvolver compaixão e a misericórdia é o mínimo essencial para a convivialidade - para o cuidado com o outro e com a natureza. O Ser Humano não compreenderá a importância do meio ambiente e, muito menos terá preocupação com o meio ambiente enquanto não se colocar com SER do Ambiente e, sobretudo, enquanto não assumir (compreender) o sofrimento de GAIA como sendo o próprio sofrimento e que as dores, as mortes e as desgraças que chegam são provocadas pela ação degenerada de autodestruição de GAIA.
Conclusão.
Vivemos tempos de angustia e somos tomados por aflições sobre o futuro da vida na terra; não faltando informações, relatórios e dados estatísticos que relacionam o avanço da degradação ambiental e as dificuldades de permanência do Ser Humano no Planeta. A convivialidade mostra-se como sendo uma importante alternativa de relacionamento entre os seres existentes e vivos do planeta, cuja principal característica é a implementação da ética do cuidado com tudo que existe e que vive.
A compaixão e a misericórdia, embora sejam sentimentos, em princípio, religiosos, são subjetividades elementares que devem ser desenvolvidos e praticados por todos os Seres Humanos em substituição à lógica utilitarista e fluída com que os grandes industriais e detentores do capital do mundo tratam toda a existência no planeta.
O Ser Humano precisa assumir o lugar do outro (outro ser humano ou outro como sendo a natureza), para assim poder compreender a fome na humanidade, a injustiça, a falta de emprego, a falta de moradia, a falta de saúde, a falta de dignidade; a extinção de espécies da fauna e da flora; os grandes eventos climáticos – compreender a infelicidade e a dor.
Notas e Referências
[1] Expressão atribuída ao pensador nascido em Viena Ivan Illich. Dentre as perspectivas de análise, foi pensador crítica do processo industrial e escritor na área de ecológica política e autor do livro A Convivialidade.
[2] Disponível em https://leonardoboff.wordpress.com/2016/07/23/revolucoes-silenciosas-a-convivialidade/. Acesso em 15 de fev. 2019.
[3] Expressão criada pelo britânico James E. Levolock, para quem o planeta terra é um organismo vivo e com condições físicas e químicas que não se reproduzem no universo.
[4] BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. 7º ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1999.
Imagem Ilustrativa do Post: Toronto // Foto de: Ana Paula Prada // Sem alterações
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