As Dificuldades Científicas do Entendimento da Espiritualidade

23/06/2015

Por Luiz Ferri de Barros - 23/06/2015

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"Que posso fazer se alguém não compreende?  Que exulte dizendo: Que mistério é este?  Que exulte e prefira encontrar-te, não te compreendendo, a não te encontrar, compreendendo" Agostinho[1]

                                                                                                                                                                          

I

Desde há longo tempo, o desenvolvimento técnico-científico da Medicina vem gerando situações de constrangimento entre aquela parcela de profissionais de saúde que até hoje não encontraram formas conciliatórias de relacionar-se com a espiritualidade de seus clientes (ou as suas próprias manifestações anímicas como pessoas, não importa se com o estetoscópio pendurado ao pescoço ou não).  Se esta é questão central para vários médicos, certamente igualmente afeta muitos daqueles, em todas as áreas, que se consideram cientistas.

Rigorosamente, o exame profundo da espiritualidade foge ao domínio da Ciência e aos cientistas é permitido apenas a investigação de certos fenômenos a ela relacionados, de forma restrita e pontual, o que talvez nunca venha a ser suficiente para oferecer-lhes o esclarecimento que desejariam obter sobre o tema.  Sob esta perspectiva, em relação à espiritualidade, a Ciência busca o entendimento de um todo desconhecido, apenas a partir de partes restritas e superficiais, que se constituem em certo resíduo visível, sem dispor de linguagem nem de instrumental conceitual apropriados para encaixar tais partes de forma cognoscível.

A epígrafe utilizada no início deste texto, por ser extraída de Santo Agostinho, pode induzir o leitor desatento a considerar que adentrarei por caminhos de explanação teológica; mas este não é o caso.  Primeiro porque busco em Agostinho o filósofo, não o teólogo, e em segundo lugar porque entre cientistas também se podem encontrar enunciados que evocam similaridade com o de Agostinho, apontando para uma certa inutilidade da compreensão para que nos aproximemos dos fenômenos, como é caso da seguinte sentença dos astrônomos contemporâneos Barrow and Tipler: "Quanto mais acreditamos compreender o universo, mais ele nos parece  sem sentido."[2]

II

"Ter espírito, ser um 'ente dotado de espírito', significa sobretudo ser capax universi, capaz de abarcar e de ser receptivo ao todo do mundo". Josef Pieper[3]

O culto contemporâneo à Ciência -- e seus inegáveis êxitos nos mais variados campos -- não modifica sua natureza intrínseca, em especial no que se refere às suas limitações, definidas em sua própria origem. A precisão científica deriva exatamente de uma estrita delimitação de campo e, necessariamente, gera um conhecimento fragmentário, conforme discute Pieper em diversos de seus textos.

Pieper também reafirma a tese sustentada por outros autores de que "modestamente críticas em relação a si mesmas, as ciências se limitam ao que pode ser conhecido com precisão, ao particular e, portanto, ao concreto".[4]   Em outras palavras, a Ciência só se propõe questões que possa resolver.  Mais grave que isto, eu diria, em muitos casos ignora ou desdenha tudo aquilo que não consiga compreender.

Esta fragmentação do conhecimento, derivada da especialização científica que hoje atinge níveis superlativos, teve início com a crescente constituição das ciências modernas a partir de sua desvinculação da Filosofia.  Sob este aspecto, foi decisiva a obra de Descartes, em especial o Discurso do Método, em 1637, originalmente escrito para orientações em Geometria. A essência do método cartesiano consiste exatamente na subdivisão dos problemas em partes as menores possíveis, para sua resolução independente e, ao final, a revisão de todas as partes.[5]

Em anos recentes, com ares novidadeiros e métodos indefinidos, muito se tem ouvido dizer de preocupações holísticas nas ciências, para não se dizer das infrutíferas tentativas de melhor nível de compreensão dos diversos objetos de estudo a partir do concurso de equipes multidisciplinares ou interdisciplinares.

Sucede que a tentativa de recomposição do todo nunca será eficaz pela justaposição de partes que já tenham sido anteriormente dissecadas, em especial no que se refere ao estudo do homem.  Na ficção científica o resultado disto já foi retratado e não há quem não conheça o exemplo do personagem Frankenstein.

Para que se possa estudar a espiritualidade, em suas manifestações religiosas ou leigas, são necessários "homens de espírito", no sentido intelectual do termo. Para Pieper, isto significa que "ao contrário do animal, que está encerrado num meio fragmentário, num 'mundo circundante', ter espírito significa existir face ao conjunto da realidade, vis-avis de l'univers.".

Onde encontrar os homens de espírito que possam oferecer luzes ao significado da espiritualidade leiga que é cultivada nos milhões de grupos de auto-ajuda atualmente existentes no mundo, por exemplo? Por certo o fenômeno não é insignificante para que não mereça ser estudado.  Muitos dos grandes cientistas são homens de espírito, mas estes não constituem a maioria da comunidade científica. Muitos homens de espírito não fazem parte da comunidade científica e se os cientistas desejarem melhor aproximação com a natureza e o significado da espiritualidade precisarão ter a humildade de procurá-los ou, ao menos, de ouvi-los quando por vezes se expressam.

III

"Anima est quodammodo omnia." "A alma é, de certo modo, todas as coisas." Aristóteles[6]

A nenhum lugar chegará a comunidade médico-científica em relação aos estudos sobre a espiritualidade que se cultiva nos grupos de auto-ajuda, para continuar no mesmo exemplo, caso não tenha clareza da estrita delimitação de campo de cada uma das ciências na área médico-psicológica. Também será necessário considerar que, frente à totalidade do conhecimento, existe uma hierarquia epistemológica mais ampla, que igualmente delimita campos - mais vastos - e que igualmente não pode ser violada.  A espiritualidade em-si é de ordem transcendental e não é passível de ser tratada em nível científico.

Rigorosamente, a Medicina, tanto quanto a Psicologia ou a Sociologia, apenas dispõem de instrumental para legitimamente pesquisar e tentar interpretar os fenômenos concretos -- observáveis -- que, devidamente registrados e comprovados, sejam atribuídos à espiritualidade. Não é difícil entender, assim, porque a questão do entendimento da espiritualidade dos grupos de auto-ajuda não avançou muito desde a década de 1940 na esfera do entendimento médico e psicológico, foros em que continua sendo primordialmente associada, erroneamente, a cultos religiosos.  (Foram mais significativas, recentemente, as análises sociológicas desses grupos, enfatizando sua marcante influência nas sociedades contemporâneas[7] , o que pode ser explicado pelo fato de que sua exponencial expansão constituiu-se em fato social que não poderia ser ignorado por sociólogos atentos e competentes.)

Entretanto, se o que se deseja é a percepção -- senão a compreensão -- da espiritualidade em si mesma e não de manifestações que a ela são atribuídas, tal natureza de pesquisa e estudo não mais se situa no âmbito da Ciência.

O estudioso que queira adentrar esta esfera deverá iniciar-se no campo da Teologia, caso sua investigação seja de ordem estritamente religiosa, e não se prejudique pela presença de dogmas, ou no campo da Filosofia, para uma investigação mais ampla.

De forma exatamente inversa à da Ciência, que só se propõe questões que estejam a seu alcance resolver, a Filosofia convive há milênios com questões para as quais não encontra solução e nem se cogita que possam haver soluções. Isto não significa que a disciplina, mãe de todas as ciências, sirva de obscuro entretenimento para filósofos que se ocupam de assuntos inúteis. Pelo contrário, ao dedicar-se às questões que representam os grandes mistérios humanos, ao longo de séculos a obra acumulada dos filósofos constitui-se em infindável repositório de reflexões inspiradoras para o desenvolvimento das ciências, das artes e do conhecimento humano como um todo.

Tomás de Aquino, ao referir-se ao espírito humano, de forma análoga ao sentido que Aristóteles atribui à alma, indicado na epígrafe acima, "atribui ao espírito humano a potência natural de convenire cum omni ente, 'ir junto', entrar em positiva relação com qualquer ente; e, Max Scheler fala de 'abertura para o mundo' e de 'posse-do-mundo' (Welt-haben); todos estes pensadores estão falando da mesma situação da realidade. (...) Esta situação implica que um ente espiritual (e portanto também o homem) só realiza as suas verdadeiras potencialidades quando divisa o todo da realidade e a ele se abre expressamente."[8]

Como se diz em teoria educacional, creio que há uma "falta de prontidão" (no caso, falta de interesse) da parte da comunidade médico-científica para a real assimilação de quaisquer argumentos que lhes sejam apresentados em relação a este assunto -- e creio que este é o fato mais importante que deve aqui ser assinalado.  Escrever mais sobre o tema, neste momento - seria malhar em ferro frio.

Mas vale salientar que as únicas menções específicas que até agora apresentei relacionadas ao "espírito humano" referem-se a sentidos intelectuais do termo, atributos e qualidades do "homem de espírito", do estudioso de "mente aberta", qualquer que seja sua área e, a seguir, avançarei apenas uma das idéias a propósito de espiritualidade.

Indicando o estudo dos filósofos para quem se interesse por examinar a natureza e o sentido da espiritualidade, leiga ou religiosa, cabe-me desde já assinalar que o campo é infinito.  Trata-se de campo infinito porque, de uma ou de outra forma, todos os grandes filósofos discutiram questões relacionadas à espiritualidade.  Além disto, e principalmente, a espiritualidade em-si, enquanto representativa da vivacidade do ser, de suas potencialidades de existência assim como de reconstrução da existência, representa -- ela mesma -- a dimensão de infinito que habita em cada homem, não importa a finitude de suas circunstâncias.  Este é um dos primeiros de seus mistérios: de que forma um princípio de vida, de natureza transcendental -- potência criativa e transformadora infinita -- pode ser abarcado pela existência humana?

Ao encontrar a possibilidade da coexistência entre a finitude do homem e a transcendência de sua espiritualidade, mesmo sem a compreensão de como isto se dê -- como sugere Agostinho --, o cientista não será obrigado a abandonar a precisão de sua Ciência, a ela incorporando conceitos que as ciências não alcançam, mas terá avançado largos passos em relação a tornar-se um "homem de espírito", "capax universi -- capaz abarcar e de ser receptivo ao todo do mundo", nas palavras de Pieper.

A vantagem que a Ciência pode alcançar a partir do momento em que os cientistas desistam de examinar os fenômenos que fogem ao domínio científico sob as lentes das ciências refere-se exatamente à manutenção de sua precisão, de um lado, e à preservação da integridade daquilo que está sendo estudado. Quando a Ciência se dispõe a estudar realidades que não se coadunam com seu campo e com os métodos científicos, acabam os cientistas por promover distorções da realidade por indevido reducionismo e simplificação.

Para alcançar a amplitude indefinida da espiritualidade em-si, com instrumental conceitual e linguístico adequado, sem adentrar as restrições dogmáticas da Teologia,  reafirmo, serão necessárias incursões ao mundo dos filósofos, pensadores que sempre orientam os seus estudos para a compreensão universal daquilo  que estudam.  A Filosofia e, em certos casos, especialmente algumas de suas vertentes, como a Ética e a Axiologia (Filosofia dos Valores), pode oferecer universo conceitual e lingüístico adequado para exame das questões relacionadas à espiritualidade leiga que se pratica nos grupos de auto-ajuda.

Para os cientistas que cultivam o racionalismo cartesiano e julgam impróprias tais incursões, vale citar o próprio Descartes, a título de incitação aos estudos, ainda que preservando o recorte de apenas mencionar espírito na acepção de intelecto"Eu não sou, portanto, falando precisamente, mais do que uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um intelecto ou uma razão, termos cujo significado me era antes desconhecido".[9]  


Notas e Referências:

[1] Santo Agostinho. Confissões. Paulus, São Paulo, 1984, 10ª edição, p.22.

[2] Barrow, John D. and Tipler, Frank J. Tipler.  The Anthropic Cosmological Principle. Oxford, Oxford UP, 1986. In:  The Book of the Cosmos Imagininig the Universe from Heraclitus to Hawking An Helix Anthology. Dennis Richard Danielson (org.) Perseus Publishing, Cambridge, Massachussetts, 2000

[3] Pieper, Josef.  Abertura para o Todo: A Chance da Universidade. Apel Editora, São Paulo, 1989. p. 24.

[4] Op. Cit. p.30

[5] Descartes. Discurso do Método para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. In: Descartes, Obra Escolhida. Difel, 1962, São Paulo. p. 39

[6] Apud Pieper. Op. Cit. p. 24.

[7] Vide: Giddens, Anthony. Para Além da Esquerda e da Direita. São Paulo, UNESP, 1995, pp. 25. 138, 139 e 147. Vide também outras obras do mesmo autor.

[8] Pieper.  Op. Cit. p.24.

[9] Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia.  São Paulo, 1991, Mestre Jou.


Originalmente publicado em: Revista Internacional d'Humanitats. Ano VI – 6, 2003. Co-edição do Departament de Ciències de l´Antiguidat i l´Edad Mitjana da Universitat Autònoma de Barcelona e do Departamento de Filosofia e Ciências da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Disponível em: http://www.hottopos.com/rih6/ferri.htm


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito, às terças-feiras.                                                         

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