AS DECISÕES DE MÉRITO NO CPC/15 E A RATIFICAÇÃO DE UM POSICIONAMENTO      

09/09/2018

 Coluna Advocacia Pública em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta Araújo

  1. INTRODUÇÃO

                        O tema a ser enfrentado neste ensaio refere-se à análise dos pronunciamentos judiciais, enfrentando a evolução interpretativa sobre os conceitos de sentença e de decisões interlocutórias e fins atingidos pelo CPC/15.

                        Já possuo outros textos e livros publicados[i] em que enfrento o tema ligado às interlocutórias de mérito e a (in) existência de sentenças parciais, a partir das reformas ocorridas no CPC/73. Agora, com o CPC/15, acredito que, de um lado, as discussões conceituais tendem a diminuir ou mesmo encerrar e, de outro, ganha espaço os aspectos práticos ligados à formação da coisa julgada em decorrência das decisões parciais de mérito (como no julgamento antecipado parcial do mérito – art.356, do CPC/15) e os reflexos no sistema de cumprimento, nos recursos e na ação rescisória.

                        Uma coisa é certa: especialmente após as alterações ocorridas nos arts. 162, §1º, 267, 269 e 273 do CPC/73, parte da doutrina e jurisprudência passaram a admitir a existência de sentenças parciais de mérito[ii] (decisões que, mesmo não encerrando a fase de conhecimento, se enquadram nos arts. 267 e 269 da legislação processual), enquanto a outra parte defendeu a permanência conceitual das decisões interlocutórias de mérito.

                        A redação original do §1º, do art. 162, do CPC/73 consagrava sentença como o “ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa”. Prevalecia, portanto, os efeitos, as consequências do ato final de encerramento do processo.

Contudo, após as reformas ocorridas na legislação processual, passou este dispositivo a dispor que sentença “é o ato que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei” (redação oriunda da Lei 11.232/2005).

A partir desta nova redação, a doutrina e jurisprudência passaram a divergir quanto a sua interpretação conceitual. Neste contexto, surgiu o entendimento que defendia a existência de sentenças parciais, recorríveis mediante apelação (por instrumento) e de resoluções interlocutórias de mérito, nos casos de decisões que não encerravam a fase de conhecimento, apesar de enquadradas nos arts. 267 e 269, da legislação processual de 1973.

Em verdade, a sentença de mérito, em que pese ser um único pronunciamento judicial, pode ser analisada sob o enfoque de vários capítulos decisórios, o que irá ensejar, de um lado, a multiplicidade de interesse recursal – cada um com possível (eis) sucumbente (s) – e de outro a imutabilidade de seu conteúdo em momentos diferenciados.[iii]-[iv]

Aliás, é razoável apontar uma crítica em relação ao conceito de sentença consagrado nos arts. 162, § 1º e 269 do CPC/73. Destarte, o primeiro dispositivo a conceitua como qualquer ato que se enquadre nos arts. 267 e 269, do CPC. Por outro lado, mesmo nos casos previstos no art. 267, a rigor não há extinção do processo, considerando que este prosseguirá para a fase de cumprimento no que respeita ao pedido acessório (despesas judiciais, honorários, etc.).[v]

Por outro lado, durante o andamento da relação jurídica processual é admissível à existência de decisões de conteúdo meritório capazes de influir no seu prosseguimento. Por exemplo, se o juiz indefere a inicial de reconvenção por decadência (ou resolve o mérito desta – ex vi do art. 285-A do CPC/73[vi]) e, na mesma decisão, também rejeita citação de um litisconsorte passivo requerida pelo réu na contestação da ação, este pronunciamento é interlocutório definitivo (para a reconvenção) e processual (para a ação[vii]).

In casu, se for resolvido o mérito da reconvenção, é razoável afirmar que o pronunciamento deve ser conceituado como decisão interlocutória de conteúdo definitivo,[viii] uma vez que a reconvenção se processa em simultaneus processus. O mesmo ocorre nos casos em que o réu, devidamente citado, reconhece juridicamente um dos pedidos cumulados (art. 269, II, do CPC/73), impugnando os demais, hipótese em que haverá a cisão do julgamento do mérito[ix].

Não se deve esquecer, apesar de não acompanhar, que havia entendimento pautado no CPC/73 que admitia a existência de sentença parcial de mérito, sujeito ao recurso de apelação.

A resolução de mérito, portanto, pode estar contida não só na sentença, mas também nas interlocutórias de mérito, capazes de formar coisa julgada e provocar o ajuizamento de rescisória.

            Contudo, apesar de reconhecer a divergência interpretativa advinda da redação do art. 162 do CPC73, defendi a existência das interlocutórias de mérito[x], como nos casos envolvendo resolução da reconvenção, a exclusão de um litisconsorte do processo ou mesmo o reconhecimento parcial do pedido. A rigor, a sentença permanecia, na redação reformada do CPC/73, sendo o ato final de interligação entre as fases de conhecimento e cumprimento, o que não impede que possam ser proferidas decisões interlocutórias de mérito durante o andamento do processo[xi].

            A legislação processual de 2015 também enfrenta os apectos ligados aos conceitos dos pronunciamentos judiciais. No art. 203, o legislador procura classificá-los e, em resumo, passa a indicar que sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz encerra a fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução. Por outro lado, decisão interlocutória é qualquer procedimento judicial decisório que não se enquadre na descrição de sentença.

            Ora, já foi observado no decorrer deste ensaio que, nos termos da redação do art. 162 do CPC/73, desenvolveram-se duas correntes interpretativas para tentar conceituar as decisões que, no curso do processo, resolvem parcialmente o mérito (decisões interlocutórias de mérito ou sentenças parciais de mérito).

            Esta bifurcação interpretativa gerou reflexos no sistema recursal, na formação progressiva da coisa julgada, no cumprimento de sentença e na rescisória. Contudo, é razoável entender que o CPC/15 pretende colocar uma última pá de cal nesta discussão, tendo em vista que, em várias passagens, menciona a possibilidade de cisão do julgamento de mérito e a sua sujeição ao recurso de agravo de instrumento.

            Ademais, o CPC/15 passa a conceituar sentença como o ato que põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, ou à execução. Portanto, pelo que se pode perceber, procura o novo texto conceituar este pronunciamento pelos seus efeitos (suas consequências) e pela recorribilidade.

            Acredita-se, portanto, que o CPC/15 deixa clara a possibilidade de, no curso da relação processual, ocorrer decisão com caráter definitivo parcial (como no caso do julgamento antecipado parcial, exclusão de um litisconsorte, apreciação da reconvenção, etc), sendo conceituada como interlocutória de mérito e não sentença parcial, estando sujeita ao recurso de agravo de instrumento (art. 1015, II, VII e 343, §2º).

No tema, aliás, vale citar o Enunciado 103, do Fórum Permanente de Processualistas Civis:

“103. (arts. 1.015, II, 203, § 2º, 354, parágrafo único, 356, § 5º) A decisão parcial proferida no curso do processo com fundamento no art. 487, I, sujeita-se a recurso de agravo de instrumento. (Grupo: Sentença, Coisa Julgada e Ação Rescisória; redação revista no III FPPC-Rio)

E quais seriam os reflexos deste entendimento? Penso que será possível, reafirmando um posicionamento anterior[xii], a formação progressiva da coisa julgada e a possibilidade de execução definitiva de partes do mérito resolvidas e imunizadas em momentos diferenciados.

Com efeito, a partir do momento em que o CPC/15 deixa clara a possibilidade de decisão interlocutória de mérito, também passa a consagrar a formação progressiva de coisa julgada e a multiplicidade de momentos para o cumprimento das decisões proferidas no curso do processo.

Ora, na formação do título executivo, a natureza do provimento jurisdicional é menos importante do que a conseqüência processual dele decorrente, razão pela qual pouco importa se o caso concreto diz respeito a uma sentença propriamente dita ou uma decisão interlocutória: possuindo conteúdo meritório e cognição suficiente para a formação de coisa julgada, é possível seu cumprimento definitivo. Assim, em que pese a parte Especial, Livro I, Título II, do CPC/15, mencionar cumprimento de sentença, é dever afirmar que as disposições lá contidas são cabíveis também para as decisões interlocutórias (cumprimento provisório ou definitivo).

 

Aliás, é possível a formação prematura de título executivo parcial em decorrência de conduta da própria parte, que deixou, por exemplo, de interpor agravo de instrumento da interlocutória de mérito ou apresentou recurso parcial diante de uma sentença em capítulos (art. 1015, II, 1008 e 1013, §1º, do CPC/15).

Nestes casos, os capítulos não impugnados podem, desde já e dependendo do caso concreto, ensejar execução definitiva, mesmo inexistindo efetivamente o trânsito em julgado total da sentença.[xiii]

Aliás, o Enunciado 100, do Fórum Permanente de Processualistas Civis, expressa que:

  1. (art. 1.013, § 1º, parte final) Não é dado ao tribunal conhecer de matérias vinculadas ao pedido transitado em julgado pela ausência de impugnação. (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal, Teoria Geral dos Recursos, Apelação e Agravo)

Em suma: há a possibilidade de fracionamento dos capítulos de mérito e dos momentos de formação da coisa julgada. Este raciocínio ligado ao conceito de interlocutória de mérito também reflete no prazo para ajuizamento de ação rescisória.

Realmente, é necessário rever alguns conceitos tidos como intangíveis no sistema. A coisa julgada é consequência de decisão de mérito e não apenas de sentença de mérito e pode ser formada em momentos diferentes durante o andamento da relação processual.

Por outro lado, o CPC/15 provoca uma revisitação do tema (prazo para rescisória em caso de resolução parcial ou mesmo recurso parcial), incluindo o posicionamento de alguns julgados que consagram a coisa julgada como fenômeno que ocorre apenas após o julgamento do último recurso. A rigor, aliás, deverão ser revisitados conceitos tradicionais como o de coisa julgada, rescisória, trânsito em julgado, objeto da rescindibilidade e prazo decadencial para desconstituição do decisum.

            Há a necessidade de uma cuidadosa interpretação do CPC/15 em relação a estes assuntos, pois, de um lado, o legislador consagra a possibilidade de resolução parcial de mérito e rescisória contra partes de uma mesma decisão (art. 966, §3º) e, de outro, afirma que a ação rescisória se extingue em dois anos contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo (art.975 - com pequena mudança terminológica em relação ao Enunciado 401 da Súmula da Jurisprudência Predominante do STJ[xiv] – em contraposição ao julgado do STF no RE 666589/DF).

            Um raciocínio razoável a ser desenvolvido é que o prazo bienal apenas começará a fluir após a última decisão proferida no processo, o que não impedirá o ajuizamento imediato da rescisória em caso de coisa julgada advinda da resolução parcial de mérito ou recurso parcial. Assim, nada impedirá que o prejudicado proponha de imediato sua rescisória, em que pese seu prazo decadencial ainda não esteja fluindo.

            Há, portanto, pela leitura do art. 975, do CPC/15, a fixação de uma condição para o início da fluência do prazo bienal para manejo da demanda desconstitutiva. Partindo deste raciocínio, a coisa julgada poderá, em casos de julgamento antecipado parcial ou de recurso parcial, provocar a ação rescisória em prazo muito superior aos dois anos (contado de cada capítulo de mérito não impugnado), eis que a redação do art. 975, do CPC/15 indica como termo final o biênio contado do trânsito em julgado da última decisão no processo.

            A questão será resolvida, na prática, pela análise do interesse processual para o manejo da rescisória: se o bem jurídico já tiver sido satisfeito em decisão parcial de mérito (art. 356, §3º do CPC/15), não haverá interesse no manejo da demanda desconstitutiva muito tempo depois.

 

Notas e Referências

[i] Sobre o tema ver, dentre outros, o livro, de minha autoria, intitulado Coisa julgada progressiva & resolução parcial de mérito. Curitiba, Juruá, 2007, o artigo Tutela antecipada do pedido incontroverso: estamos preparados para a nova sistemática processual? Revista de Processo n. 116, São Paulo : Revista dos Tribunais, 2004 e o texto publicado na coletânea em homenagem ao professor José de Albuquerque Rocha (decisão interlocutória de mérito no projeto do novo CPC: reflexões necessárias. In O projeto do Novo Código de Processo Civil – Fredie Didier Jr, José Henrique Mouta e Rodrigo Klippel – organizadores, Salvador : Juspodivm, 2011, pp. 219-230.

[ii] A tese da unicidade da sentença tem sido excepcionada pelo cabimento de sentenças parciais. Sobre o tema ver, dentre outros: DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 6ª edição, São Paulo : Malheiros, 2009, v. 3, p. 700 e REDONDO, Bruno Garcia. Sentença parcial de mérito e apelação em autos suplementares. RePro n. 160, jun/2008, pp. 154-155.

[iii] Sobre os capítulos da sentença e a aplicação no sistema recursal, vide: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao código de processo civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. v. 5. p. 352-4.

[iv] A propósito, em vários momentos, o CPC/15 mencionada a exporessão capítulos , deixando clara a necessidade de interpretar cada item de um mesmo julgado (o que será ratificado posteriormente).

[v] Comentando as reformas advindas da Lei nº 11.232/05, observa Araken de Assis: “o provimento que extingue o processo sem julgamento de mérito, consoante reza o art. 267, caput, deixado incólume pela reforma – o art. 162, § 1º, neste particular, dispõe que sentença é o ato ‘do juiz que implica alguma das situações previstas’ no art. 267 – tampouco o extinguirá realmente: ao menos quanto ao capítulo acessório da sucumbência comportará execução a favor do réu vencedor (...)”. ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 19.

[vi] Redação semelhante a do art. 332, §1º, do CPC/15.

[vii] No CPC/15, este pronunciamento de exclusão de um litisconsorte está sujeito expressamente a agravo de instrumento (art. 1015, VII).

[viii] “Reconvenção. Indeferimento liminar. Recurso cabível. Cabe agravo, e não apelação, do provimento judicial que indefere liminarmente a reconvenção, ainda que por equívoco haja sido o pedido reconvencional autuado em apartado. Recurso especial não conhecido”. (STJ – RESP 20313/MS – 4ª Turma – Rel. Min. Athos Gusmão Carneiro. J. em 18/05/1992. DJ de DJ 08.06.1992 p. 8623, RT vol. 698 p. 221).

[ix] Mitidiero assim se manifesta acerca do reconhecimento parcial do pedido e a cisão do julgamento da causa: “o reconhecimento a que alude o Código no art. 269, II, é o reconhecimento total. O reconhecimento parcial não dá ensejo à extinção do processo, embora possa dar lugar à cisão da decisão de mérito da causa, por obra do art. 273, § 6º, do CPC”. MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2005. t. II. p. 555.

[x] No tema, ver ARAÚJO, José Henrique Mouta. Coisa julgada progressiva e resolução parcial de mérito. Curitiba: Juruá, 2007. Ver também o ensaio O cumprimento de sentença e a 3ª etapa da reforma processual – primeiras impressões. Revista de Processo, São Paulo : RT, n. 123, pp. 156-158.

[xi] “Em que pese a alteração legislativa, é preciso continuar compreendendo a sentença como o ato que, analisando ou não o mérito da demanda, encerra uma das etapas (cognitiva ou executiva) do procedimento em primeira instância. O encerramento do procedimento fundar-se-á, como se disse, ora no art. 267, ora no art. 269 do CPC – isso é certo. Mas não há como retirar da noção de sentença – ao menos até que se reestruture o sistema recursal – a idéia de encerramento de instância”. DIDIER JR, Fredie, BRAGA, Paula Sarno e OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. Vol. 2, 4ª edição, Salvador : Juspodivm, 2009, p. 282.

[xii] ARAÚJO, José Henrique Mouta. Coisa julgada progressiva e resolução parcial de mérito. Curitiba: Juruá, 2007, além do ensaio intitulado O cumprimento de sentença e a 3ª etapa da reforma processual – primeiras impressões. Revista de Processo, São Paulo : RT, n. 123, pp. 156-158

[xiii] No mesmo sentido, observa Nery Júnior que: “entendemos ser possível a execução definitiva da parte da sentença já transitada em julgado, em se tratando de recurso parcial, desde que observadas certas condições: a) cindibilidade dos capítulos da decisão; b) autonomia entre a parte da decisão que se pretende executar e a parte objeto de impugnação; c) existência de litisconsórcio não unitário ou diversidade de interesses entre os litisconsortes, quando se tratar de recurso interposto por apenas um deles”. NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. São Paulo: RT, 2004. p. 454.

[xiv] Enquanto no E. 401 da Súmula da Jurisprudência Predominante do STJ indica que o prazo se inicia a partir da última decisão no processo, o art. 975 consagra que o prazo encerra em dois anos, a contar da última decisão no processo. Neste último caso, portanto, não há o indicativo do início da fluência, mas apenas de seu encerramento, pelo que será possível ao intérprete deduzir que poderá ajuizar a rescisória mesmo antes da última decisão no processo, desde que parte do objeto já tenha transitado em julgado.

 

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