Por Naiara Czarnobai Augusto - 03/10/2016
Inauguramos a coluna abordando um tema ainda incomum para muitos operadores jurídicos, mas cuja realidade impõe que seja dedicada atenção especial às tendências do mundo atual que influenciam a vida da humanidade.
Como afirmava o saudoso Professor José Cirilo Vargas ao replicar os ensinamentos de Nelson Hungria, “o mundo em que o Direito se move não é o mundo da natureza bruta, governado apenas pela lei da causalidade”, de modo que “o Direito está relacionado diretamente com o ‘desconcertante espetáculo da vida’, com o mundo social, todo ele impregnado de exigências morais, religiosas e econômicas, às quais a ordem jurídica pode, em dado momento, estender sua tutela”.
De fato, as normas são criadas para regular situações e comportamentos já evidenciadas pela sociedade e que representam valores jurídicos relevantes para se buscar e manter o almejado bem-estar social.
Todavia, já neste último século, percebemos que o avanço tecnológico tornou necessária uma constante e galopante atualização do complexo normativo, a fim de promover a adequação das leis à atualidade vivenciada pelos sujeitos de direitos.
Com este intuito, ainda que com certo atraso, já que a rede mundial de computadores está disponível no Brasil há mais de três décadas, foi publicado o Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014), posteriormente regulamentado pelo Decreto n. 8.771/2016, e que tem como um de seus fundamentos a finalidade social da rede.
Além de disciplinar os direitos e garantias dos usuários, o referido diploma legal trata, dentre outros assuntos, da provisão de conexão e de aplicações de internet, com previsão de proteção aos registros, aos dados pessoais e às comunicações privadas, bem como estabelece a atuação do poder público.
Embora o Marco Civil da Internet evidencie uma conceituação moderna de legislação aplicável às evoluções tecnológicas, juntamente com a conhecida Lei Carolina Dieckmann (Lei n. 12.737/2012), que dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos, o fato é que no Brasil existem diversas normatizações sobre a matéria, como a Lei n. 12.735/2012, que tipifica condutas realizadas mediante uso de sistema eletrônico, digital ou similares, que sejam praticadas contra sistemas informatizados, bem como a regulamentação do comércio eletrônico pelo Decreto n. 7.962/2013, além de diversas outras, que estabelecem a aceitável utilização de recursos eletrônicos.
Assim, considerando que a rede mundial de computadores ultrapassa barreiras fronteiriças dos Estados e Nações, revela-se de suma importância a atuação integralizada dos entes públicos para fiscalização e para normatização de condutas realizadas por meio da Internet, Deep Web, Deep Net, Invisible Web, Under Net, Gidden Web, Free Net e Dark Net.
Isso porque a internet não é apenas um meio pelo qual o usuário possui acesso a uma infindável coleção de dados, informações culturais e de entretenimento, mas também tem se revelado como um poderoso instrumento de realização de ações criminosas articuladas, de difícil elucidação e que exige um aparato científico cada vez mais sofisticado das polícias judiciárias e órgãos de perícia oficial no sentido de desvendar tudo o que ocorre, inclusive, através de conteúdos não indexados.
Um exemplo de instrumento além do submundo da Internet é a moeda criptografada Bitcoin, que não é restrito a uma nação, mas possui alcance universal, e existe exclusivamente na realidade virtual, sem simbologia física que expresse seu valor econômico.
Tanto a aquisição quanto a circulação de Bitcoins exige uma cadeia de assinaturas digitais desenvolvidas a partir de algoritmos desta unidade monetária, de modo que cada proprietário consegue transferir a representatividade de valores outra pessoa por meio de um hash que não é repetível. Antes, porém, é necessário que o interessado adquira uma wallet, carteira virtual onde são armazenadas moedas criptografas e que permite a transação pela rede.
Essa prática ensejou o estabelecimento de escritórios de especialistas em investimentos desta natureza, de modo que qualquer pessoa poderá se tornar proprietário de criptomoedas, cuja produção é denominada “mineração”. A sua comercialização sem qualquer registro oficial dos dados dos envolvidos permite que tal mecanismo seja utilizado para atuação criminosa por meio de pagamentos digitais, favorecendo a lavagem de capitais, por exemplo, em decorrência da necessidade de disfarçar renda circulável a partir do tráfico de pessoas, armas e entorpecentes.
O referido processo de mineração basicamente se constitui na capacitação computacional para atuação na solução de demandas complexadas para validação das transações em criptomoedas, cuja remuneração se efetiva justamente com o pagamento de moedas digitais, com isto provocando o aumento de capital e favorecendo sua circulação.
Atualmente há empresas no mercado que oferecem o serviço de instrução e realização do processo de mineração de modo confiável, movimentando trocas que superam 5 milhões de dólares em um único dia.
Livre de qualquer especulação, impacto tributário ou econômico, o Bitcoin tem sua circulação descentralizada e ausente de qualquer controle público, e também não sofre influência de crise no sistema financeiro real, havendo apenas a possibilidade de impacto por instabilidades no sistema de dinheiro digital.
Por sua mascarada “vantajosidade”, já que não dependem de um órgão central para sua produção e distribuição, as moedas criptografadas, e o Bitcoin, em particular, estão cada vez mais presentes no cenário econômico e comercial, ultrapassando a conceituação de “meio de troca eletrônica”.
Tanto assim, que instituições financeiras estão investindo em ações estratégicas para em breve também atuar no sistema digital conhecido como blockchain, de arquitetura computacional autorregulada, e cuja tecnologia permite que as moedas criptografadas tenham início a partir de autenticação de computadores que detêm algoritmos de criptografia avançada, evitando fraudes e prejuízos por falhas nas comunicações de dados. Tecnicamente, o sistema que regula a transação de bitcoins é estruturalmente mais seguro do que os atuais mecanismos de comunicações bancárias (mais em < http://epoca.globo.com/vida/experiencias-digitais/noticia/2016/09/bancos-estao-de-olho-no-blockchain-por-que.html>).
Essa realidade não se revela muito distante sequer para o uso governamental do blockchain, conforme relatório elaborado pelo Conselho da Agenda Global para o Futuro do Software e da Sociedade do Fórum Econômico Mundial (FEM), alertando para o fato de que em até cinco anos algumas nações poderão realizar a cobrança de impostos sobre o bictoin por meio do referido sistema.
Então, considerando essa perspectiva, é possível prever que em pouco tempo o Poder Judiciário será surpreendido com pedidos de interferência em relações comerciais malsucedidas cujo principal recurso econômico é criptomoeda? Nossos contadores judiciais estão capacitados para trabalhar com atualizações desses “valores” não expressados em estatísticas econômicas oficiais? O que dizer de pedidos de indenização em moedas digitais?
No Brasil, a Medida Provisória n. 542/94 instituiu o Real (R) como unidade do sistema monetário a partir de 1/7/94, e embora seja permitido que outras moedas circulem no país, não há regulamentação específica para uso de moedas digitais (como milhas aéreas ou dots) ou criptomoedas com expressivo valor econômico. Todavia, mesmo com a existência de uma moeda oficial no país, o cumprimento de obrigações de pagar, salvo estipulação em contrário, pode ser efetivado do modo que se revelar mais conveniente aos reciprocamente obrigados, inclusive por meio de moedas digitais.
Apesar das incertezas no que se refere à ausência de regulamentação e a possibilidade de arbitrariedades no sistema regulador das criptomoedas, é recomendável que estejamos constantemente alertas para refletirmos sobre as implicações jurídicas, sobretudo para se evitar risco sistêmico para o funcionamento da economia, destacando-se sua principal ameaça como manobra para viabilizar a lavagem de ativos obtidos por meios ilícitos.
Há que se destacar também que, em razão do restrito alcance dos Bitcoins em meio popular, denota-se que, por ora, a possibilidade de realização de negócios comerciais com pessoas físicas e jurídicas localizadas no estrangeiro e por consequência a admissão de circulação de diversos tipos de moedas, inclusive digitais, permite ao julgador atuar conforme a experiência e a analogia ante a lacuna legal, e as demandas judiciais não ficariam sem solução.
De todo modo, devemos nos manter atentos aos avanços econômicos decorrentes das aplicações financeiras realizadas a partir de criptomoedas, já que, muito em breve, essa tendência econômica promoverá reflexos no ordenamento jurídico, e, como bem sabemos, o Direito não socorre quem dorme!
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Naiara Czarnobai Augusto é Graduada em Direito e Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Atualmente trabalha no Núcleo Técnico Especializado e no Núcleo de Inteligência do Centro de Apoio Operacional Técnico do Ministério Público de Santa Catarina, ao qual está vinculado o Laboratório de Tecnologia no Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (LAB-LD) do MPSC.
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