As contribuições da Psicologia Cognitiva para a compreensão do senso comum penal

08/02/2017

Por Paola Bianchi Wojciechowski - 08/02/2017

 “Falar é lutar!” Jean-François Lyotard 

Talvez a tarefa mais urgente, na atualidade, seja a de construir um (contra)discurso criminológico crítico que fale à população e tenha a robustez necessária para – a despeito de não encontrar eco nos grandes meios de comunicação – transcender os círculos acadêmicos, os ambientes universitários e o âmbito jurídico. Infelizmente, a corrente crítica da Criminologia é uma perspectiva teórica que não alcança grande parte das pessoas e, portanto, não consegue fazer frente ao discurso oficial – midiático popularista[1] punitivista.

Além dos tradicionais meios de comunicação, não se pode olvidar do punitivismo que se espraia pela web, especialmente através das redes sociais (facebook, twitter), sites de compartilhamento de vídeos em formato digital (youtube, vimeo, etc.) e portais de notícias. Muitos usuários das redes sociais reúnem-se em torno de nichos e guetos virtuais, encastelados e protegidos pelas telas de seus computadores, tablets e smartphones, no interior dos quais se sentem à vontade para dar vazão ao ódio e à intolerância compartilhados em relação a um dado objeto/sujeito – sempre materializado no “outro”, não raras vezes, no “outro criminoso”. Tal ódio compartilhado usualmente se constitui, inclusive, como fator de agregação de dado grupo.

Nesse contexto, ao mesmo tempo em que as redes sociais exercem um importante papel na democratização das formas de se produzir conteúdo informativo, elas parecem estimular o surgimento e a proliferação de “fast thinkers[2], os quais, tantas vezes, sequer se preocupam com a fonte ou a veracidade daquilo que é reproduzido ou compartilhado[3]. Uma vez compartilhado, aquele fato – real ou não – adquire nuances de realidade. E, a essa altura, pertinente lembrar do teorema de William I. Thomas, sociólogo da escola de Chicago: “Se o homem define certas situações como reais, elas são reais em suas consequências”[4].

Esse cenário revela a urgência da formação de um discurso criminológico crítico dotado de potencial para fazer frente ao “senso comum penal”[5]. Tendo tal objetivo como norte, opta-se, aqui, por retirar da Psicologia Cognitiva e das teorias do processo dual[6], alguns insights que podem fornecer valiosos elementos de compreensão na luta a ser travada no campo comunicacional[7].

Décadas de pesquisas realizadas nas ciências cognitivas indicam que metáforas e histórias, infelizmente, são mais potentes do que ideias e, além disso, são mais fáceis de lembrar, sobretudo quando acompanhadas por imagens. Sob este prisma, você necessita de uma história para deslocar outra história[8].

Quanto à questão criminal, o que se observa na prática é que a visão das pessoas molda-se a partir da história narrada nos meios de comunicação (criminologia midiática). Os noticiários e os programas jornalísticos destinados a tratar exclusivamente da criminalidade – Cidade Alerta e congêneres – contam histórias inteligíveis à população, as quais ficarão acessíveis/disponíveis à memória por muito tempo, sobretudo porque, em geral, acompanhadas de imagens sanguinárias do crime[9]. Em contraposição, tem-se o discurso acadêmico jurídico/criminológico, fundamentalmente amparado em abstrações – estatísticas, citações, pesquisa acadêmica –, construído em uma linguagem que se distancia do popular e que, muitas vezes, é veiculado por meios restritos aos profissionais/estudantes da área jurídica.

Em suma, tem-se a concretude do crime – do corpo da vítima, da violência exposta, das fotografias, do audiovisual, do meme, da imagem – vs. a abstração do discurso criminológico crítico.

Ocorre que descobertas realizadas no âmbito das teorias do processo dual indicam que nós cultivamos um desdém incapacitante pelo abstrato[10], já que grande parte de nossas operações cognitivas cotidianas – automáticas e intuitivas – negligenciam a informação ausente. Em um contexto de baixa informação, muitas vezes, limitamo-nos a tomar conclusões precipitadas a partir daquilo que se vê. A observação dessa tendência – de enfocar a evidência presente em detrimento da evidência ausente – foi sintetizada no seguinte postulado: “O que você vê é tudo o que há” (“what you see is all there is)”[11].

O pensamento abstrato é uma atividade mental laboriosa, que, como tal, demanda foco, atenção e o engajamento de um modo de pensar deliberado/controlado, durante o qual se observa um alto consumo de energia cognitiva[12]. Daí decorre, também, a nossa incapacidade de lidar com eventos não ocorridos (não-eventos).

Isso explica, por exemplo, porque não é comum observar um empenho na prevenção de crimes. Os atos preventivos não aparecem e, portanto, normalmente, são negligenciados e/ou não são recompensados[13]. Uma política pública capaz de evitar centenas de crimes – v.g. a instalação de iluminação pública em um local em que há a prática reincidente de crimes de estupro – poderia passar despercebida, já que os crimes prevenidos são não-eventos. A punição rigorosa de um único “criminoso”, por outro lado, é um espetáculo – reprisado inúmeras vezes – e ficará impresso na memória, evocando sentimentos negativos difíceis de se resistir.

No mesmo sentido, as estatísticas – tantas vezes esclarecedoras no que diz respeito à Política Criminal e à Criminologia – escapam-nos. Kahneman explica que pensar estatisticamente é extremamente difícil e extenuante para as pessoas[14].

A partir das contribuições da Psicologia Cognitiva, há, ainda, outro aspecto bastante pertinente para se pensar a constituição do senso comum penal: a constatada confusão entre familiaridade com ilusões de veracidade. Ao se dedicarem à pesquisa dessa correlação entre impressão de familiaridade e nossa tendência a julgamentos de verdadeiro/falso, Psicólogos identificaram que a repetição frequente de uma afirmação faz com que ela se torne familiar, o que, por sua vez, deixa-nos propensos a acreditar em sua veracidade. Essa ideia foi sintetizada por Kahneman na emblemática frase: “Um jeito confiável de fazer as pessoas acreditarem em falsidades é a repetição frequente, pois a familiaridade não é facilmente distinguível da verdade”[15].

Essas poucas nuances das nossas atividades mentais permitem entrever que a Psicologia Cognitiva – e, em especial, as teorias do processo dual – podem servir como importantes ferramentas teóricas na tentativa de desnudar o senso comum penal, pois é possível observar que o discurso punitivista aproveita-se, também, de inúmeras tendências e vulnerabilidades do próprio modo através da qual a mente opera.

O diálogo do Direito com outras áreas do conhecimento pode auxiliar na elaboração de um discurso acadêmico que se preste, não para afirmar autoridade, mas para criar pontes dialógicas aptas a permitir ou facilitar a reversão de perspectivas com o outro.

E – talvez devido à utopia que faz caminhar – acredito que, sim, há que se ter a serenidade necessária para contrapor-se ao senso comum, não com ironia, desdém ou desprezo, mas com informação tangível àquele com quem se dialoga. O objetivo é fomentar a dúvida; fornecer evidências; demonstrar que evidência se contrapõe com evidência – não com opinião –; evidenciar os contornos políticos dos conflitos sociais que estão na gênese da criminalização e marginalização da população excluída; separar os ruídos (informação tóxica e que falseia a realidade) dos sinais; promover esclarecimento, através de discursos e práticas emancipatórias, levando em conta a realidade do interlocutor; incitar a identificação com o outro e a reversibilidade de perspectivas. Combater a desinformação e as incompreensões acerca da “questão criminal” é tarefa diária a ser exercitada no micro e no macrocosmo.

Vivemos tempos sombrios. É tentador bradar a todo o momento contra a escuridão. No entanto, nessas horas mais escuras, ocorre-me um Provérbio Chinês: “Mais vale acender uma vela, do que bradar contra a escuridão!”

Que o discurso criminológico crítico sirva para iluminar todos os espaços de convivência.


Notas e Referências:

[1] O termo “popularismo penal” foi cunhado por Eugênio Raul Zaffaroni, que o descreveu como um fenômeno que invoca práticas demagógicas amparadas no sentimento de vingança, as quais se prestam à aprovação de leis penais casuísticas mais rigorosas, via exploração do medo da população (ZAFFARONI, Eugenio Rául. A esquerda tem medo, não tem política de segurança pública. Revista Brasileira de Segurança Pública, ano 01, n. 01).

[2] BOURDIEU, Pierre. Sobre la televisión. Tradución de Thomas Kauf. Barcelona: Anagrama, 1997, p. 40-41.

[3] No contexto das redes sociais – sobretudo twitter e facebook –, em que a leitura muitas vezes se resume às headlines ou a narrativas de experiências subjetivas, tornou-se comum a disseminação de notícias e histórias falsas, justificando-se, inclusive, o emprego do termo hoax para designar esses boatos disseminados via web.

[4] THOMAS, William I; THOMAS, Dorothy Swaine. The Child in America: Behavior problems and programs. New York: Alfred A. Knopf, 1928, p. 572.

[5] ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008 , p. 07.

[6] As teorias do processo dual agregam inúmeros modelos teóricos edificados em torno da distinção de dois modos de pensamento coexistentes: um automático/intuitivo – chamado de Sistema 1 – e o outro deliberado/controlado – chamado de Sistema 2. Décadas de experimentos realizados nas ciências cognitivas, sobretudo na Psicologia Cognitiva, revelaram que a intuição, por ser automática, rápida e facilmente evocada, pode se sobrepor à deliberação ou orientá-la. Percebeu-se, portanto, que nossas decisões, usualmente, não são fruto de deliberação, mas decorrentes da confiança em atalhos cognitivos (heurísticas) – respostas intuitivas guiadas por nossas impressões, sensações, sentimentos, afetos. As implicações do Sistema 1 – e suas heurísticas – e Sistema 2 ao Processo Penal foram exploradas, de modo pioneiro, por Alexandre Morais da Rosa, em seu “Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos”.

[7] Zaffaroni já nos incitou a travar a batalha no campo comunicacional. Aliás, simplificar e tornar palatável à população o conhecimento criminológico foi a proposta dos 25 artigos semanais publicados por ele no jornal Página 12, da Argentina que, mais tarde, foram compilados no livro “A questão criminal”.

[8] TALEB, Nassim Nicholas. A lógica do Cisne Negro: O impacto do altamente improvável. Tradução de Marcelo Schild. 10. ed. Rio de Janeiro: BestBusiness, 2016, p. 26.

[9] Daniel Kahneman e Amos Tversky, ao estudarem atalhos cognitivos usados nas tomadas de decisões (heurísticas do Sistema 1), identificaram que, usualmente, julgamos a frequência de um evento ou de uma categoria segundo “a facilidade com que as ocorrências vêm à mente”. Assim, eventos proeminentes e dramáticos, com ampla cobertura na mídia, serão facilmente – de maneira automática e involuntária – recuperados da memória, sendo julgados como eventos objetivamente frequentes. No mesmo sentido, experiências pessoais, fotografias, imagens e exemplos ficarão mais disponíveis na memória do que fatos vivenciados por terceiros, textos e estatísticas. A heurística da disponibilidade explica, portanto, porque algumas questões se destacam na mente da população, em detrimento de outras – às vezes mais frequentes – que são negligenciadas (TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases. Science, New Series, vol. 185, n. 4157, sep. 1974, pp. 1124-1131).

[10] TALEB, Nassim Nicholas. A lógica do Cisne Negro: O impacto do altamente improvável. Tradução de Marcelo Schild. 10. ed. Rio de Janeiro: BestBusiness, 2016, p. 112.

[11] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: duas formas de pensar. trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 112.

[12] Conforme destacado por Daniel Kahneman, a ideia de energia mental não se resume a uma simples metáfora. Nesse sentido, o psicólogo Roy Baumeister e seus colegas descobriram que, em comparação com as demais partes do corpo, o sistema nervoso consome mais glicose, sobretudo quando envolvido em uma atividade mental trabalhosa – em um raciocínio difícil ou ocupado em uma tarefa que demande autocontrole (KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar... p. 57).

[13] TALEB, 2016, p. 23.

[14] KAHNEMAN, 2012, p. 23.

[15] KAHNEMAN, 2012, p. 82.


Paola Bianchi Wojciechowski. Paola Bianchi Wojciechowski é Mestra em Direito pela PUC-PR. Especialista em Criminologia, Direito Penal e Política Criminal pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Bacharel em Direito pela PUC-PR. Assessora Jurídica no MPPR. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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