Por Eduardo Januário Newton – 29/09/2016
Tardiamente, a comunidade jurídica se viu surpreendida com o advento do Decreto nº 8.858, de 26 de setembro de 2016, que possui a seguinte redação:
“Art. 1º. O emprego de algemas observará o disposto neste Decreto e terá como diretrizes:
I – o inciso III do caput do art. 1º e o inciso III do caput do art. 5º da Constituição, que dispõem sobre a proteção e a promoção da dignidade da pessoa humana e sobre a proibição de submissão ao tratamento desumano e degradante;
II - a Resolução no 2010/16, de 22 de julho de 2010, das Nações Unidas sobre o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangkok); e
III - o Pacto de San José da Costa Rica, que determina o tratamento humanitário dos presos e, em especial, das mulheres em condição de vulnerabilidade.
Art. 2º. É permitido o emprego de algemas apenas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, causado pelo preso ou por terceiros, justificada a sua excepcionalidade por escrito.
Art. 3º. É vedado emprego de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do sistema penitenciário nacional durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar e após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada.
Art. 4º. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.” (destaquei)
A análise que será realizada se propõe a efetivar um diálogo com o recente artigo publicado por Rômulo de Andrade Moreira[1], cujo título é “A regulamentação do uso de algemas na execução”. Independentemente da admiração nutrida pelo professor baiano, o seu texto se mostra corajoso e, desde já, merece o devido reconhecimento por parte dos estudiosos do direito comprometidos com o projeto constitucional instituído em 05 de outubro de 1988.
Com fulcro no enunciado do verbete da Súmula Vinculante nº 11 e, ainda, com base na Lei nº 4.898/65, Rômulo sustenta que o uso abusivo de algemas implica na possibilidade de responsabilização do agente público por tipos penais previstos na Lei de Abuso de Autoridade.
Todavia, e é aqui que se encontra o diálogo, é perfeitamente possível refletir sobre uma outra consequência pelo uso indevido e desnecessário do emprego de algemas. Para tanto, é necessário adotar como premissa o reconhecimento de que o processo penal não é um “mero” instrumento de aplicação do Direito Penal, mas sim uma ferramenta racional e ética para a limitação do exercício do poder punitivo.
Assim, toda e qualquer formalidade há de ser vista como algo de extrema relevância, sendo, portanto, imprescindível superar a lógica de que a nulidade, para ser reconhecida, necessita da prova do prejuízo. Esse primado – pas nullité sans grief – é uma consequência imediata do equivocado reconhecimento da existência de uma Teoria Geral do Processo.
A crítica ao que o senso comum teórico aponta sobre a questão das nulidades no processo penal foi realizada da seguinte maneira por Alexandre Morais da Rosa:
“Entretanto, o regime de nulidades do CPP (arts. 563-573), além de ultrapassado, é confuso. Adota a compreensão mitológica da verdade substancial (CPP, art. 566 – 4.4), mantém dispositivos revogados noutros locais do próprio CPP (art. 564, III, “a”, “b”, “c”, III), bem como indica compreensão civilista, incompatível com o devido processo legal substancial, ausência de prejuízo – ‘pas nullité sans grief – (CPP, art. 563). Assim é que superada a distinção arbitrária e sem sentido entre nulidade relativa e absoluta, todas as hipóteses de violação ao devido processo legal substancial (8.1) devem ser declaradas nulas, manejando-se a noção de doping.”[2] (destaquei)
O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a Reclamação nº 22.527/RJ, já decidiu que a realização de um interrogatório de um réu algemado, desde que não seja justificada o emprego dos grilhões, é nula e também dos demais atos processuais subsequentes, o que inclui a sentença condenatória. Essa decisão demonstra, assim, mais uma importante consequência para o uso indevido de algemas.
A questão que deve ser colocada consiste no uso de algemas, quando da efetivação da prisão-captura, ocorrer desprovido de qualquer fundamentação escrita.
O Decreto Federal nº 8.8858/16 trata da obrigatoriedade da fundamentação para o emprego das algemas no preso, o que se coaduna com a necessidade dos atos administrativos, até mesmo para que se viabilize o controle posterior, serem fundamentados. Aliás, essa preocupação com o uso de algemas sequer pode ser considerada como uma novidade, pois há dispositivo centenário que já tratava sobre o tema. Eis o teor do artigo 28, Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871:
“ O preso não será conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deverá ser justificado pelo conductor; e quando não o justifique, além das penas em que incorrer, será multado na quantia de 10$000 a 50$000 pela autoridade a quem fôr apresentado o mesmo preso.” (redação original)
A partir do novo regramento sobre o uso de algemas, bem como com lastro no teor da Súmula Vinculante nº 11
“Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”. (destaquei)
É perfeitamente possível afirmar que o emprego de algemas, quando não ocorrer a devida fundamentação, torna nula a prisão, sendo certo que, por imperativo constitucional[3], esse encarceramento deverá ser cessado imediatamente em razão do relaxamento da prisão.
Quando da realização da audiência de custódia, recomenda-se, então, que a defesa traga ao conhecimento da autoridade judicial o descumprimento das normas que tratam da fundamentação, e por escrito, para o manejo de algemas, o que viabilizará o futuro pedido de relaxamento de prisão. A eventual conversão do flagrante em prisão preventiva não retira a mácula existente, o que permite a apresentação do pleito de relaxamento posteriormente, bem como a provocação do STF por meio da Reclamação.
Dessa forma, além das consequências firmadas por Rômulo de Andrade Moreira em seu citado texto, mostra-se possível assinalar que o desrespeito ao quadro normativo que regula o uso de algemas implica na nulidade da prisão-captura, que é uma das etapas da prisão em flagrante.
Essas eram as minhas considerações, espero que tenha conseguido dialogar com o professor baiano e, quem sabe, este texto constitua tão-somente um marco inicial de outras conversas. A conferir.
Notas e Referências:
[1] O artigo se encontra disponível no seguinte sítio eletrônico: http://emporiododireito.com.br/a-regulamentacao-do-uso-das-algemas-na-execucao-penal-por-romulo-de-andrade-moreira/
[2] ROSA, Alexandre Morais. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2014. p. 370
[3] Art. 5º, inciso LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária.
. Eduardo Januário Newton é Mestre em direitos fundamentais e novos direitos pela UNESA. Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010). E-mail: newton.eduardo@gmail.com .
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