As cidades, os entulhos e a ressignificação socioambiental - Por Wagner Carmo

17/12/2017

Com a edição da Constituição de 1988, a organização do meio ambiente construído ou físico - as cidades, passou a ser disciplinada de forma direta pelo art. 182[1], determinando ao Poder Público a fixação de diretrizes gerais com a finalidade de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.  

O texto constitucional, para tanto, estabelece que as cidades devem ser organizadas segundo as regras estatuídas pelo Plano Diretor, observando, ainda, o Estatuto das Cidades - Lei n.º 10.257/2001.

Segundo o ordenamento jurídico, o desenvolvimento das funções sociais e a garantia do bem-estar na cidade ocorre quando a política urbana atende os dispositivos contidos no art. 2º da Lei n.º 10.257/2001, com destaque para os seguintes direitos: a) direito à terra urbana e direito à moradia; b) direito ao saneamento básico e direito à infraestrutura urbana; c) direito ao transporte e ao serviço público; f) direito ao trabalho e ao lazer; g) direito à gestão democrática, incluindo audiências públicas; h) direito à proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural, físico, cultural e do trabalho.

Os direitos estabilizados revelam a ressignificação do conceito e da função das cidades para o Brasil. Vê-se, que as cidades, sob o ponto de vista legal, devem ser ou devem se transformar em um espaço de integração social – integração que envolve as inúmeras áreas de atividades coexistentes com a vida urbana e com o sistema econômico.

Entretanto, a realidade revela que há um fosso entre as regras estipuladas pela Constituição Federal e a pratica desenvolvimentista de urbanização e de consolidação das cidades no Brasil.

A ideia do presente artigo é discutir as mazelas da integração social a partir da globalização e os impactos nas cidades e nos Seres Humanos.

As cidades e os entulhos.  

As cidades, espaços construídos pelo homem, estão distribuídas por todo o espaço territorial do Brasil e do mundo. Ao estudar a formação das cidades, seja qual for o caminho – histórico ou sociológico, inevitavelmente encontraremos as dicotomias sociais, econômicas e ambientais.

No processo de formação das cidades, os aspectos sociais envolvem o êxodo rural, a favelização, a segregação cultural, educacional e profissional; a violência; o subemprego; a divisão de classe; a fome, a miséria, o desemprego, a falta de assistência medica/social e o conflito por moradia.

Sob a feição econômica, as cidades evoluíram e se transformaram no centro de poder político-econômico do sistema capitalista.

Já em relação aos elementos ambientais, o desenvolvimento das cidades revela problemas ligados a fragilização psicológica do Ser Humano; a degradação do ambiente natural; a ocupação irregular de áreas de preservação permanente; a destruição da fauna e da flora; a geração de resíduos sólidos e de esgoto; a redução de espaços públicos de convivência e de áreas verdes; a poluição do ar e a poluição sonora; o aumento do clima e a impermeabilização do solo, entre outros problemas.

Dentre as mazelas decorrentes do processo de formação das cidades, destaca-se o que Robert Castel[2], denomina de angustia que alimenta a insegurança. A insegurança, na perspicácia de Sigmund Freud[3], revela os sofrimentos humanos, incluindo o medo de sofrer e a miséria social.

O medo de sofrer e o medo da miséria social possui interface direta com a turbulência psicológica que envolve o Ser Humano e o crescimento das cidades. Os cidadãos, com as mudanças por que perpassaram as cidades, perderam os vínculos comunitários e, por consequência, os laços de solidariedade. A solidariedade cedeu lugar à competição e o resultado foi a solidão e a sensação do estado de cada um por si – o cidadão passou a perceber que não poderia (e não pode) contar com a solidariedade do vizinho ou do membro da comunidade. A cidade passou a ser um espaço de medo; medo do desemprego, medo da fome, medo da convalescência física.

As cidades, pensadas e criadas[4] para garantir segurança, felicidade, prosperidade social e paz aos cidadãos, foram encalacradas pela ordem econômica globalizada. Antes do processo de globalização, os problemas sociais e ambientais incidentes nas cidades eram compreendidos e resolvidos por critérios políticos regionais e locais. Ocorre, porém, que a interligação econômica e política do mundo fez surgir problemas estruturais supralocais, cujo impacto é local e a resolução, entretanto, não pode e não consegue ser realizada apenas por critérios locais. As cidades, sozinhas e isoladas, não possuem condições políticas, técnicas e econômicas/orçamentárias para dissipar as dificuldades – os cidadãos e os gestores das cidades não controlam e não compreendem as causas e os motivos das dificuldades e das mudanças.

Zygmunt Bauman[5] explica que a política local – e particularmente a política urbana – encontra-se hoje desesperadamente sobrecarregada, a tal ponto que não consegue operar. Ou seja, as cidades se transformaram em depósitos de problemas causados pela globalização. 

A ressignificação socioambiental.

Gerir as cidades, a partir do cenário econômico estruturado pela globalização, mostra-se difícil, pois, a conciliação entre os valores comunitários e as exigências econômicas e sociais requer uma tomada de decisão – rever os rumos do crescimento da cidade para retomar a vida original ou limitar-se a seguir o caminho da fragmentação e do medo que tantas cidades já começaram a percorrer.

Portanto, o desafio é identificar e compreender o (novo) significado das cidades hoje. Para Zygmunt Bauman, a transformação das cidades nasce do efeito de   um duplo movimento; por um lado, é nas grandes áreas urbanas que se concentram as funções mais avançadas do capitalismo, que tem se reacomodado segundo uma lógica de rede, cujos núcleos estruturais são justamente os cenários globais. Por outro lado, as cidades tornam-se objeto de novos e intensos fluxos de população e de uma profunda redistribuição da renda, seja nos bairros nobres, com a formação de uma elite global móvel e altamente profissionalizada, seja nos bairros populares, com a ampliação dos cinturões periféricos, onde se junta uma enorme quantidade de populações deserdadas.

Para Zygmunt Bauman, os movimentos de transformação das cidades resultaram em pressões no tecido social, com a consequente verticalização das relações sociais – os ricos tendem a se tornar ainda mais ricos, desfrutando das oportunidades disponibilizadas pela ampliação dos mercados, enquanto os mais pobres afundam na miséria, destituídos de sistema de proteção social.

Em meio as transformações, as cidades estão sendo dilaceradas economicamente e engolidas pela voracidade da cultura globalizada. As cidades e seus cidadãos estão perdendo a identidade cultural e familiar.

Conclusão.

A ordem econômica mundial continuará a promover alterações significativas na organização das cidades, bem como continuará a confrontar a cultura local. A efetivação da garantia do bem-estar na cidade, prevista no art. 182 da Constituição, requer o enfrentamento da realidade globalizada de forma direta e sem ingenuidade. Requer, também, a reinvenção da relação socioeconômica e dos vínculos de solidariedade cultural, comunitária, familiar e afetiva. 

 

[1] Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

[2] CASTEL, R. A insegurança social: o que é ser protegido? Petrópolis: Vozes, 2005

[3] FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.  

[4] Diz-se pensada e criada, compreendendo a visão história de formação do Estado e a constituição do contrato – liberdade versus segurança.

[5] BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Brick Rubble // Foto de: Pug50 // Sem alterações

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