As autoridades. Ficção académica - Paulo Ferreira da Cunha

23/03/2017

Por Paulo Ferreira da Cunha – 23/03/2017

Estava em discussão uma tese portentosa, de três grossos volumes, cheia de notas eruditas em letra miudinha. Demorou dez ou doze anos a fazer, com muitas e severas vigílias (hoje já não se podem fazer teses em 20 ou 30 anos, ou até nem as fazer de todo… “andar a fazê-las”: e contudo deveria poder-se, porque cada um tem o seu ritmo). E com todas as referências a Platão, Aristóteles e a São Tomás de Aquino, pois o tema era clássico. Não descurou a Patrística e o Direito Romano. O candidato estava visivelmente exausto. Mas divisava-se por entre a circunspeção do decorum académico a felicidade inerente ao dever cumprido.

A banca parecia esmagada com tanto trabalho, tanta argúcia, tão boa argumentação. Há felizmente muitas bancas que sabem reconhecer o mérito…

Lembremo-nos que, numa discussão de tese, ou dissertação, quem deve saber mais do tema é mesmo o candidato. E ele sabia. E a banca, como era de gente de bem, não lhe levou a mal…

Comentário de um inteligente, do público, no intervalo, pretendendo obviamente valorizar-se: "Deficiente trabalhito, porque não citou Fulano (um senhorito qualquer da moda que nunca tratou do tema) na apresentação oral, nem o citou em nenhum passo da defesa". E torcia a cara, como quem tivesse comido algo enjoativo.

As pessoas que o circundavam, não sabendo nada do assunto, começaram a duvidar do valor da tese… Apenas os amigos do candidato se mantiveram sem mácula fiéis.

Como vamos fiar-nos nesta communis opinio? Uns não sabem nada, nem querem saber. Outros querem fazer passar o nicho de mercado em que se "anicharam" ou aninharam... "a propos et sans propos". E para eles o saber é apenas o que eles tomam como propriedade sua. A sua capelinha, o seu ídolo…

Não pude deixar de pensar: e se a tese fosse sobre tema moderno, e arguissem da falta dos clássicos? Aí depende… Um clássico calha sempre bem. Mas precisa de ser a propósito. Pode haver uma cornucópia de citações e alusões clássicas feitas sem o mais pequeno critério, só para épater le bourgeois. Mas o burguês, hoje em dia, irá espantar-se com alguma coisa já? Nem isso.

Tempos negros para a pesquisa, apesar de toda a explosão quantitativa. Demasiada mistificação, que obnubila alguns excelentes pesquisadores que despontam. Às vezes penso que de geração espontânea…

Obviamente tudo o que dissemos é ficção. Real é a preocupação pela qualidade das teses e das dissertações, e pela justiça na sua apreciação: das bancas e do público.


Paulo Ferreira da CunhaPaulo Ferreira da Cunha é Membro do Comité ad hoc para o Tribunal Constitucional Internacional. Professor da Escola de Direito da Universidade Anhembi-Morumbi (Laureate International Universities). Professor da Académie Internationale de Droit Constitutionnel. Possui graduação (Licenciatura em Direito), com o Curso complementar em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1984), Mestrado em Direito – Ciências Jurídico-Políticas pela mesma Faculdade (1988), Doutorado em Direito (História do Direito / Filosofia do Direito) pela Université Panthéon-Assas, Paris II. E ainda Doutorado em Direito. Ciências Jurídico-Políticas, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1995), reconhecido em 16.4.2014 pela Universidade de São Paulo como Doutor em Direito, área de Direito do Estado. Agregação em Direito Público (similar à Livre-docência) pela Universidade do Minho (2000). É Pós-doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2013). Lattes:  http://lattes.cnpq.br/4615065392733954


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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